Martinho Júnior | Luanda
1- Em Angola, no momento em que o
mês em que se assinala o Dia de África chega ao fim, a comunidade de membros da
ex-Segurança do Estado está de parabéns, por que tem demonstrado estar, década
após década, acima de qualquer suspeita que manche o seu dever patriótico, que
contra ela possa existir, interna ou externamente!
Num estado cuja superestrutura
ideológica fez uma deriva entre um carácter socialista que a 11 de Novembro de
1975 se inspirava no marxismo-leninismo (foi “sob o olhar silencioso de
Lenin” que se proclamou o Partido do Trabalho), a um estado tão vulnerável
aos impactos do capitalismo neoliberal como o de hoje, com todos os traumas
acumulados para além dos inerentes às trajectórias de guerra e por que essa
deriva se reflectiu de forma muito sensível no ambiente humano que compunha os
instrumentos do poder (onde se inseriam quer as FAPLA, quer a Segurança do
Estado), provas sobejas de fidelidade e coerência para com os juramentos então
feitos, ganham outra evidência, fazendo parte do seu percurso em vida!
O patriotismo tornou-se para essa
franja de angolanos, uma constante prova de vida, face a todo o tipo de
adversidades, quando até em relação às preocupações correntes, a esmagadora
maioria desses camaradas mancha alguma de corrupção tiveram ao longo de sua
vida!
É verificável que essa fidelidade
e essa coerência substantiva se alimentam dum vínculo único, duma sociologia e
duma antropologia que em Angola é um caso aparte, quer se queira ou não e,
pelos sacrifícios silenciosos que têm sido sobejamente exigidos, é um
património comum que é muito pouco conhecido pela maioria, embora mereça
respeito e se tenha tornado já, por si, um exemplo de dignidade!
Esse percurso comporta uma outra
narrativa que não sendo a oficial, suscita uma radiografia de transparência
inerente aos dilemas internos vividos pelo MPLA e pelo estado angolano, (em
grande parte um dossier por abrir pelos próprios autores de história), desde o
11 de Novembro de 1975, também ela, a narrativa, acima de qualquer suspeita, pelas
evidências patrióticas de que se nutre!
Quanto mais não seja por essa
razão, a comunidade de membros da ex-Segurança do Estado, continua a ser um
assunto de estado, quanto ao seu papel, quanto aos seus sacrifícios, quanto a
tantas falências que se foram acumulando e de que têm sido directas vítimas,
algo que acabou por encurtar a vida de muitos dos seus componentes… tudo isso
num abandono de tal ordem que muitos dos dirigentes que passaram pelas chefias
de então, se alhearem dessa comunidade evocando todo o tipo de justificações e
argumentos, acabando por, de facto, não terem mexido uma palha em prol da
reinserção social e do apoio solidário que agora em tempo de paz e democracia é
devida a todos os angolanos!
É legítimo perguntar-se: se
alguns dos antigos membros da ex-Segurança do Estado estão a ser tratados desse
modo, o que se esperar nas obrigações humanas e solidárias para com o resto da
sociedade?
Antes de alguma vez se alcançar
por parte do estado angolano o reconhecimento dos próprios direitos à dignidade
inerentes a essa comunidade, direitos tão duramente conquistados, essa
comunidade cumpriu e cumpre silenciosamente com deveres patrióticos jurados
desde outras épocas, ainda que pela lei da vida, em função dos traumas, do
desamparo e em muitos casos da miséria, muitos dos seus membros tenham vindo
mais rapidamente a desaparecer, ou estejam a desaparecer!...
2- No mês em que se comemora o
Dia de África, faleceu entre outros membros da Acção Social Para Apoio e
Reinserção, ASPAR, (a associação que representa os membros do ex-MINSE) o
camarada 1º sargento das Tropas Guarda Fronteira de Angola, TGFA, que em vida dava
pelo nome de Tomás Afonso, mais conhecido por Bravo.
O malogrado, era natural de
Quimbele, nasceu a 5 de Julho de 1956, estudou no Uíge e em 1976 ingressou na
Juventude do MPLA ainda no Quimbele (o município mais a leste da Província).
Em 1978, com 22 anos,
incorporou-se nas fileiras da Tropa Guarda Fronteira de Angola, TGFA, então
enquadrada nos organismos do Ministério da Segurança do Estado.
Teve cursos de formação que
concluíram em 1979, passando a integrar o efectivo da 4ª Região das TGFA, percorrendo
os mais diversos postos fronteiriços da Província do Uíge, além do período que
esteve ao serviço do próprio Comando Regional: Quicua, Camuanga, Cuango,
Quibiengue, Quissacandica…
O seu trabalho na maior parte dos
casos esteve adstrito à Logística, onde era um quadro bem conhecido na área de
fardamento, pois tinha ganho habilitações de alfaiate e tinha-se tornado
valioso para fazer face às exigências de então.
Em 2002 foi vítima de doença e
para recuperar foi dispensado, não voltando contudo mais às fileiras.
Preencheu assim 24 anos ao
serviço das TGFA, todos esses anos em tempo de guerra.
O 1º sargento Tomás Afonso foi
desmobilizado, recebeu a quantia que lhe era devida pela desmobilização, mas
como não havia mais qualquer tipo de apoio e vivia em Luanda, fazendo uso de
sua profissão de alfaiate, passou a ganhar assim o seu sustento e o de sua
vasta família (10 filhos e 20 netos).
Segundo os relatos de sua
família, foi agarrado à máquina de costura que acabou por falecer, pelas 17H00
do dia 9 de Maio de 2018, num ignoto e modesto exemplo de abnegação, trabalho e
dignidade, desde logo para com as suas próprias obrigações familiares e
sociais.
Quando chegou ao conhecimento da
ASPAR o seu falecimento, solicitou-se um apoio para a sua família, quer para os
gastos do seu funeral, quer do seu óbito, aos serviços de competência, que
resultou num suporte financeiro, num gesto que toda a comunidade, por ter sido
pouco frequente, muito tem publicamente a agradecer!
3- A comunidade de membros do
ex-MINSE, que na sua juventude obedeceu ao MPLA e aos juramentos então feitos
em tempo de guerra, malgrado os exemplos patrióticos que tem vindo a dar apesar
dos enormes sacrifícios e abandono a que tem sido sujeita, apesar do seu
suporte em final de vida ser ainda um malparado assunto de estado, continua a
aguardar que sejam passadas à execução todas as orientações que não foram
cumpridas de há cerca de 8 anos a esta parte e afectam uma parte substancial
dos seus membros!
Não faz sentido, entre outras
coisas, que se captem investimentos externos, sem melhor “arrumar a casa” e
este caso merece ser atendido de acordo com as políticas de reconstrução,
reconciliação nacional e reinserção social.
A ASPAR, coerente com seus
deveres, tem exortado o estado angolano ao cumprimento dessas decisões, que
efectivamente, são um assunto de estado e estão a ser proteladas com uma
factura humanamente pesada para pessoas que estão na ponta final de sua existência
e mesmo assim em silêncio e disciplinadamente vão aguardando pelo socorro à sua
própria dignidade.
Tem acontecido episódios humanos
dos mais degradantes por falta de apoio de alguns: desde famílias que se
desagregam, a pais que são escorraçados dos seus lares e morreram na rua, no
mais completo desamparo.
Quando a crise económica e
financeira se agudiza, a precariedade tem vindo logicamente a aumentar!
4- No mesmo mês de Maio, e em
cima das comemorações do Dia de África, uma delegação importante de antigos
membros do Batalhão Búfalo e das South Africa Defence Forces, SADF, que
prestaram serviço ao “apartheid”, estiveram de visita às Províncias do
Cuando Cubango e do Cunene, onde foram recebidas pelas autoridades, tendo até
em jeito de boas-vindas, havido um almoço no Palácio do Governo em Ondjiva.
Em nome da paz, da reconciliação
e da busca pela melhoria das condições de vida, tudo se torna possível, até por
que muitos membros dessa delegação manifestaram interesse em investir em
Angola, particularmente nas áreas dos Parques Naturais Transfronteiriços do
sudeste angolano, integrados no Kavango and Zambeze Trans Frontier
Conservation Area, KAZA-TFCA.
É evidente que este fluxo, é
redundante das iniciativas do cartel de diamantes, que a partir do estatuto
ganho no Botswana tem vindo a encarar o espaço físico-geográfico-ambiental , no
seu relacionamento com o homem, de forma a implementar equilíbrios, também por
que tem os olhos no turismo dos endinheirados de todo o mundo que são atraídos
pelo exotismo africano, bem como à originalidade e à criatividade do
acolhimento.
Essa iniciativa contrasta contudo
com o tratamento no mínimo negligente a que tem sido sujeita a comunidade
representada pela ASPAR e não se pode deixar de ter como referência, que o
Governador do Cunene, general Kundi Pahiama, que passou pela direcção da
Segurança do Estado, do Interior, dos Antigos Combatentes e Veteranos da
Pátria, etc., uma pessoa que poucos sinais deu no sentido da resolução dos
problemas humanitários, mantendo-se ausente da solidariedade institucional que
neste caso afectam a comunidade de membros do ex-MINSE, em nome da paz, da
reconciliação e dos investimentos recebe oficialmente, antigos combatentes do
Batalhão Búfalo e das SADF!...
Disse o general Kundi Pahiama na
altura:
“Estamos irmanados. Devemos estar
unidos a partir de agora, não só com políticas, mas sobretudo com trabalho
prático. Por isso, convido os sul-africanos a investirem cá, nos mais variados
domínios”.
É evidente que, sem ferir as
políticas de paz, de concórdia e de investimentos no espaço da SADC, há contudo
bastos motivos internos para levar a cabo a ingente tarefa de “corrigir o
que está mal e melhorar o que está bem”!
Luanda, 1 de Junho de 2018 - Martinho
Júnior
Fotos:
- O 1º sargento Tomás Afonso,
membro da Acção Social Para Apoio e Reinserção;
- Foto do acto de entrega de
valores do apoio do estado angolano ao funeral e óbito do 1º sargento Tomás
Afonso;
- Visita ao Cuando Cubango e
Cunene, de membros dos ex-Búfalos e ex-SADF que prestaram serviço ao “apartheid”;
Desfile comemorativo do 40º
aniversário da independência nacional, a 11 de Novembro de - 2015, em que uma
delegação da ASPAR representou a comunidade de membros da ex-Segurança do
estado.
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