Caminhão e automóvel são pivôs de
um modelo de “desenvolvimento” que traz consigo o latifúndio, e especulação
imobiliária e as cidades segregredas. Quais os caminhos para virar a
página?
Roberto Andrés | Outras Palavras
Uma greve de caminhoneiros não
seria capaz de parar o Brasil na década de 1950. Pessoas continuariam se
deslocando pelas cidades; o abastecimento de produtos seria mantido; milhões
de animais não estariam sendo sacrificados; não estaria faltando
insumos em hospitais, escolas, postos de saúde, etc.
Há legitimidade em se opor à
escalada dos preços dos combustíveis, mas o impacto descomunal da greve coloca em
questão nossa extrema dependência de estradas, asfalto, pneus e derivados de
petróleo. Vale lembrar que nem sempre foi assim: nos tornamos uma república
rodoviarista ao longo do século 20, a despeito da ampla malha ferroviária e do
imenso potencial hidroviário que o país já teve.
Em artigo na revista Piseagrama,
Fernanda Regaldo reconta a triste história de desmonte da Rede Ferroviária
Federal, que já foi a maior empresa pública do país, à frente da Petrobrás. Nos
anos 1950, os trens intermunicipais no Brasil transportavam cerca de cem
milhões de passageiros por ano – e hoje não chegam a transportar 2 milhões em
suas poucas linhas.
A história passa pela construção
desenfreada de estradas, tornada pauta nacional por Juscelino Kubitschek e
levada a cabo nos anos de chumbo, junto ao abandono paulatino das ferrovias.
“No afã privatizante do governo FHC, o sistema ferroviário do país foi
completamente desmembrado e concedido à iniciativa privada, quase sem
condicionantes de interesse público”, relembra a autora.
Nas mãos de poucas empresas
ligadas à mineração, nossa malha ferroviária restante ficou restrita à
exportação de minério, grãos e biocombustíveis. E a maior parte do transporte
de cargas e passageiros que estrutura a dinâmica interna do Brasil foi para as
rodovias.
Esse modelo onera a logística do
país, gera grande impacto ambiental e milhares de mortes. Estima-se que
caminhões gastam cerca de dez vezes mais diesel do que trens para transportar a
mesma carga; e que mais de 10 mil pessoas morrem por ano no Brasil em acidentes
envolvendo caminhões.
As cidades seguiram na mesma
toada. Um estudo de
Ailton Brasiliense, presidente da Associação Nacional de Transporte Público, a
ANTP, compara São Paulo em 1950 com Belo Horizonte em 2010: com 60 anos de
distância, as duas cidades tinham a mesma população (cerca de 2,4 milhões) e a
mesma área territorial. No entanto, São Paulo tinha 70 mil veículos em 1950 e,
Belo Horizonte, 1,4 milhão em 2010.
O mesmo número de pessoas vive e
se desloca na mesma extensão territorial com 20 vezes menos carros. Como isso é
possível? A diferença é que São Paulo tinha, em 1950, mais de 600 quilômetros
de trilhos de bondes. Bondes que tinham tarifas populares, andavam com gente
saindo pelas janelas, não poluíam o ar e geravam pouquíssimos acidentes.
Com o espraiamento das cidades,
que, como bem
lembra Raquel Rolnik, sempre serviu a proprietários que têm seus terrenos
valorizados, a dependência petrolífera se acentuou cada vez mais. Além disso, a
produção de alimentos foi se distanciando dos polos de consumo, passando a ser
feita em grandes monoculturas, altamente dependentes do diesel (assim como de
agrotóxicos).
Tudo isso criou um país que,
quando funciona a pleno vapor, gera poluição, doenças, mortes, mal estar. Não
deixa de ser sintomático que a paralisação tenha como efeito colateral, além
das perdas produtivas, melhorias em muitos aspectos da vida cotidiana.
Durante a greve dos
caminhoneiros, as cidades estiveram desobstruídas e silenciosas, com vias
livres para bicicletas e pedestres. Em BH, o número de ciclistas praticamente
dobrou e a poluição do ar em São Paulo reduziu
pela metade depois de uma semana sem gasolina. Se esse padrão fosse
mantido, milhares de
mortes geradas por problemas respiratórios seriam evitadas.
Revela-se a fragilidade das
escolhas que nos legaram uma economia ineficaz, poluente e violenta. A revisão
desse caminho é para ontem: agroecologia, agricultura urbana, trens, metrôs,
bondes, energia eólica e solar, acesso à terra, reciclagem e compostagem de
lixo, entre outros, conformam a agenda urgente vislumbrada na fissura aberta
por esses dias de paralisação.
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