Surpresa: nos EUA e Inglaterra,
uma nova geração de economistas rejeita a ideia de adaptar-se ao sistema e
formula projetos opostos à ditadura das corporações e das finanças. Quem são
eles? Que ambiente político favorece esta ousadia?
Andy Beckett | Outras Palavras | Tradução: Marianna
Braghini
Por quase meio século, algo vital
tem faltado na política do campo da esquerda em países ocidentais. Desde os
anos 1970, a
esquerda mudou o modo de pensar de muitas pessoas sobre preconceito, identidade
pessoal e liberdade. Ela expôs as crueldades do capitalismo. Algumas vezes
ganhou eleições e às vezes governou de forma eficaz. Mas não tem sido capaz de
mudar, em essência, as relações de riqueza e o trabalho em nossas sociedades –
nem de oferecer uma visão convincente sobre como isso pode ser feito. A
esquerda, em resumo, não teve uma política econômica.
A direita tem. Privatização,
desregulamentação, impostos menores para as empresas e e os ricos, mais poder
para empregadores e acionistas, menos poder aos trabalhadores. Articuladas,
estas políticas recrudesceram o capitalismo e o tornaram mais onipresente que
nunca. Imensos esforços foram feitos para tornar o capitalismo inevitável e
para retratar como impossível qualquer alternativa.
Neste ambiente cada vez mais
hostil, a abordagem econômica da esquerda tem sido reativa. Ela resiste a estas
enormes mudanças, frequentemente em vão e muitas vezes voltando-se ao passado,
nostálgica. Por muitas décadas os mesmos dois analistas críticos do
capitalismo, Karl Marx e John Maynard Keynes, continuaram a dominar a
imaginação econômica da esquerda. Marx morreu em 1883, Keynes em 1946. A última vez que suas
ideias tiveram uma influência significativa em governos ocidentais ou eleitores
foi há 40 anos, durante os turbulentos dias finais da social democracia
pós-guerra. Desde então, direitistas e centristas rotulam qualquer argumento em
favor de superar o capitalismo – ou mesmo de freá-lo, como um desejo de fazer o
mundo “retroceder aos anos 70” .
Alterar nosso sistema econômico tem sido apresentado como uma fantasia — tão
possível quanto viagens no tempo.
No entando, há anos o sistema
começou a falhar. Em vez de uma prosperidade sustentável e compartilhada,
produziu estagnação dos salários, cada vez mais trabalhadores na pobreza,
desigualdade crescente, crises bancárias, convulsões de ultra-direita e
iminente catástrofe climática. Até mesmo políticos da direita reconhecem, por
vezes, a seriedade da crise. Na conferência do Partido Conservador britânico do
ano passado, o chanceler, Philip Hammond, admitiu que “uma lacuna se abriu” no
Ocidente “entre o que uma economia de mercado proporciona, em teoria …e a
realidade”. Ele continua: “Muitas pessoas sentem isso…o sistema não está
funcionando para elas.”
Começa a surgir a noção de que um
nova forma de economia é necessária: mais justa, mais inclusiva, menos
exploradora, menos destruidora da sociedade e do planeta. “Estamos num momento
em que as pessoas estão muito mais abertas à ideias econômicas radicais,”
admite Michael Jacobs, um ex assessor do primeiro-ministro inglês Gordon Brown.
“Os eleitores revoltaram-se contra o neoliberalismo.” A crise financeira de
2008 e as antes impensáveis intervenções dos governos que a detiveram
desacreditaram duas ortodoxias centrais do neoliberalismo: a de que o
capitalismo não tem como fracassar e a de que o governo não deve intervir para
mudar o funcionamento da economia.
Um gigantesco espaço político se
abriu. Uma rede emergente de intelectuais, ativistas e políticos começou a
aproveitar a oportunidade. Eles estão tentando construir um novo tipo de
economia de esquerda: que se reporte às falhas da economia do século XXI, mas
que também explique, de forma prática, como futuros governos de esquerda podem
criar um sistema melhor.
Christine Berry, uma jovem
acadêmica britânica freelancer, é uma das figuras centrais da rede. “Estamos
destrinchando a economia de volta ao básico,” ela diz. “Queremos que a economia
pergunte: ‘Quem é dono dos recursos? Quem tem o poder nas empresas?’ O discurso
convencional econômico ofusca estas questões, para beneficiar os poderosos.”
A nova economia de esquerda quer
ver a redistribuição do poder econômico, para que todos o detenham — assim como
o poder político é de todos, em uma democracia saudável. A redistribuição do
poder poderia incluir a participação dos trabalhadores no controle das
empresas, a reorganização das economias locais para favorecer arranjos éticos
(em vez de grandes corporações), ou a cooperativas tornando-se normas.
Essa “economia democrática” não é
uma fantasia idealista: partes dela já estão sendo construídas. Sem esta
transformação, argumentam os novos economistas, a crescente desigualdade de
poder econômico irá em breve tornar a democracia impraticável. “Se queremos
viver em sociedades democráticas, então precisamos…permitir que as comunidades
modelem suas economias locais,” escrevem Joe Guinan e Martin O’Neill, ambos
prolíficos defensores da nova economia, em artigo recente para o Institute
for Public Policy Research (IPPR). “Já não é mais o suficiente ver a
economia como uma espécie de domínio tecnocrático à parte, no qual os valores
centrais de uma sociedade democrática, de alguma forma, não se aplicam.” Além
disso, Guinan e O’Neill afirmam, tornar a economia mais democrática ajudará a
revitalizar a democracia: as pessoas são menos propensas a sentir raiva ou
apatia quando incluídas em decisões econômicas que afetam fundamentalmente suas
vidas.
O projeto ambicioso dos novos
economistas significa transformar a relação entre capitalismo e o Estado, entre
trabalhadores e patrões, entre economia local e global, entre aqueles com
ativos econômicos e aqueles sem. “Poder e controle econômico devem ser mais
igualitários”, sustenta um relatório do ano passado da New Economics Foundation (NEF) – um thinkthank radical de
Londres que age como incubadora para muitas das novas idéias do novo movimento.
No passado, governos britânicos
de centro-esquerda tentaram remodelar a economia por meio de impostos —
geralmente focados em rendimentos em vez de outras formas de poder econômicos —
e por nacionalização, o que significava substituir a elite do setor privado por
outra, designada pelo Estado. Em vez de tais intervenções tão limitadas, os
novos economistas querem ver mudanças muito mais sistêmicas e permanentes. Eles
querem — no mínimo — mudar como o capitalismo funciona. Mas, crucialmente,
querem que esta mudança seja apenas parcialmente iniciada e supervisionada pelo
Estado, e não controlada por ele. Eles visualizam uma transformação que
acontece de forma quase orgânica, dirigida por trabalhadores e consumidores –
uma espécie de revolução não-violenta em câmera lenta.
O resultado, alegam os novos
economistas, será uma economia adequada à sociedade, em vez de, como
atualmente, uma sociedade subordinada à economia. A nova economia, sugere
Berry, na verdade não é economia. É “uma nova visão de mundo”.
A chegada de um novo conjunto
significativo de ideias tende a gerar certas reações. O tema lota eventos.
Jovens pesquisadores gravitam em sua direção. Intelectuais mais velhos, porém
inquietos, estão intrigados. Novas instituições são criadas ao seu redor.
Jornalistas convencionais inicialmente o descartam.
Como todos novos economistas que
conheço, Michael Jacobs fala bem rápido, em frases curtas, como se houvesse
muito o que explicar no tempo disponível. Um ambientalista de longa data, ele
descreve a rede emergente de novos economistas como “um ecossistema”. Há um contagiante
senso de tabus políticos e econômicos sendo quebrados e de um possível novo
consenso nascendo.
“Há sites britânicos e
norte-americanos que publicam muito de nossas coisas, como o OpenDemocracy, a
Jacobin e a Novara. Há pessoas produzindo coisas enquanto trabalham para thinkthanks —
ou montando novos thinkthanks. E pelas redes sociais as ideias se
espalham, colaborações acontecem, muito mais rápido do que quando a economia de
esquerda era sobre reuniões e panfletos,” diz Jacob. “É um pouco incestuoso,
mas bastante empolgante.”
Este fermento está começando a se
solidificar em um movimento. A New Economy Organizers Network (Neon), uma cisão da NEF,
localizada em Londres, oferece oficinas para ativistas de esquerda, para
aprender como “construir apoio para uma nova economia” — por exemplo, construir
narrativas efetivas a respeito na imprensa tradicional. Stir to Action, uma organização
militante localizada em Dorset, publica uma “revista para a nova economia”
quadrimestral e organiza sessões de orientação em cidades que tendem à
esquerda, como Bristol e Oxford: Cooperativas de trabalhadores: como
começar, ou Propriedade Comunitária: e se nós mesmo administrarmos?
“Há um impulso totalmente novo
para ativismo relacionado a economia,” diz o editor da revista, Jonny
Gordon-Farleigh, que anteriormente esteve envolvido em protestos
anticapitalistas e ambientalistas. “O movimento passou do opor-se ao propor”.
O que aparece com essa
movimentação é a possibilidade, pela primeira vez em décadas, de um governo do
Partido Trabalhista receptivo às novas ideias econômicas de esquerda. John
MaDonnell, ministro do governo paralelo [shadow cabinet] de Jeremy Corbyn
parece entender isso,” diz Gordon-Farleigh, cautelosamente. “Ele tem um pouco
de história compartilhada com alguns de nossos movimentos. Fez comentários
interessantes…sobre introduzir uma cooperativa proprietária das ferrovias, por
exemplo.”
Outros no movimento são mais
otimistas. No outono [nórdico] passado, um artigo com boa repercussão de Guinan
e O’Neil no jornal de esquerda Renewal, alegou que McDonnell poderia estar
planejando nada menos que uma “transformação da economia britânica…um programa
radical para desmantelar e afastar o poder corporativo e financeiro”, em
benefício dos menos privilegiados. Guinan me disse: “John McDonnell é
extremamente curioso intelectualmente. Não vi outra figura política nesse nível
de senioridade cujas portas estejam tão abertas a novos pensamentos.”
James Meadway, até recentemente
um dos conselheiros chave de McDonnell, está agora escrevendo um livro sobre
“uma economia para os muitos”. Entre 2010 e 2015, ele trabalhou no NEF, onde
seus relatórios e artigos esboçaram muitos dos argumentos dos novos
economistas. Diversos integrantes do NEF me disseram que desde que McDonnell
tornou-se ministro-sombra, as costumeiras relações entre think-tanks de
esquerda e o Partido Trabalhista foram invertidas: em vez de tentar
desesperadamente chamar a atenção do partido para suas propostas, eles estavam
lutando para acompanhar o apetite do partido por elas. “Estão basicamente
perguntando, ‘Vocês tem mais alguma coisa aí atrás do armário?’” diz um
satisfeito, mas levemente perplexo, veterano do NEF. “Nós rabiscamos algo e
damos a eles qualquer coisa que consigamos inventar, o mais rápido que
pudermos.”
Em julho passado, o NEF publicou
um relatório em defesa de um aumento significativo do número de cooperativas
britânicas. Em uma das páginas finais, quase sem nenhum alarde, o relatório
também propôs que empresas convencionais tenham que dar ações a seus
funcionários, para criar o que NEF chamou de um “fundo inclusivo de posse”. Em
setembro, com algumas modificações, a proposta tornou-se política do Partido
Trabalhista. “Eu nunca vi nada assim, de idéia do thinkthank para uma política
adotada!” diz Mathew Lawrence, um dos autores do relatório. Este mês, uma versão
da política também foi adotada pelo candidato presidencial dos EUA, Bernie
Sanders.
E ainda assim, fora do círculo de
McDonnell e da esquerda radical, a nova economia tem passado largamente
despercebida – ou tem sido casualmente ridicularizada. Os buracos negros do
Brexit e a disputa de liderança do Partido Conservador são parcialmente
responsáveis, sugando a atenção de tudo o mais. Mas é também a natureza radical
da própria nova economia. Transformar ou acabar com o capitalismo tal como o
conhecemos — os novos economistas diferem sobre qual é o objetivo — é uma idéia
difícil para a maioria dos políticos e jornalistas britânicos. Depois de meio
século aceitando o status quo econômico, eles associaram qualquer
alternativa de esquerda ou com a desatualizada social democracia do pós-guerra
ou com autoritarismo de esquerda, com a atual Venezuela ou a União Soviética.
Não importa o quão frequentemente
McDonnell diga em entrevistas que ele quer ver uma economia democrática, o
adjetivo que mais lhe é aplicado ainda é “Marxista”. “O novo pensamento
econômico é quase como uma frequência que não pode ser ouvida,” diz Guinan.
Mas com o neoliberalismo
fraquejando, e a direita desprovida de outras ideias econômicas, a nova
economia da esquerda pode ter um longo futuro – ainda que o Partido Trabalhista
não volte ao governo. Parodiando uma fala de Thatcher, agora há uma
alternativa.
O sonho de uma economia
democrática oscilou nas margens da política de esquerda por pelo menos um
século. Durante os anos 1920, os teóricos socialistas britânicos GDH Cole e RH
Tawney escreveram livros frescos e provocativos, argumentando que trabalhadores
deveriam administrar as empresas eles próprios, em vez de se submeterem a
patrões e acionistas – ou ao Estado, como teóricos mais ortodoxos do Partido
Trabalhista previam. Na vida econômica, como na política, argumentou Tawney em
1921, “os homens não devem ser governados por uma autoridade que não podem
controlar”.
Este empoderamento de
trabalhadores foi concebido para ser o primeiro passo de uma transformação mais
ampla. “O real objetivo,” escreveu Cole em 1920, deve ser “arrancar o poder
econômico das classes proprietárias, pedaço por pedaço”, para finalmente “tornar
possível uma distribuição equitativa da renda nacional e uma reorganização
razoável da sociedade como um todo”.
No entanto, Cole era vago sobre
como aconteceria a inversão desta ordem tradicional. Ele descartava uma
revolução, e uma greve geral, baseando-se no fato de que trabalhadores não
tinham o acesso necessário a armamentos ou recursos econômicos para derrotar
seus patrões em uma luta industrial prolongada. Um governo trabalhista ousado
poderia, teoricamente, aprovar a legislação necessária; mas os governos
trabalhistas dos anos 1920 e 1930 eram tímidos e não duraram muito.
Quando o Partido Trabalhista
adquiriu a confiança e o tempo para reconfigurar a economia, durante os
governos dos primeiros-ministros Clemente Attlee, na década de 1940 e de Harold
Wilson, na década de 60, o partido escolheu fazê-lo por meio dos planos e
burocracias de Whitehall [N.T.: centro administrativo do Reino Unido], tais
como o Departamento de Assuntos Econômicos (DEA, na sigla em inglês) de Wilson,
em vez de por meio da democratização da economia. Os resultados foram mistos: o
DEA durou apenas cinco anos.
Somente nos anos 1970 um poderoso
político trabalhista interessou-se em democratizar a economia. Tony Benn foi
bastante atento ao aumento do individualismo durante a década. “Mais pessoas
querem fazer mais para elas mesmas,” escreveu em 1970. “A tecnologia libera
forças que permitem e encorajam descentralização… Deve ser um objetivo
prioritário dos socialistas trabalhar pela redistribuição de poder.”
Em 1974, Wilson tornou Benn
ministro da Indústria. A economia estava em dificuldades. Benn supervisionava e
subsidiava cooperativas administradas por trabalhadores em três grandes
negócios que estavam padecendo: o Scottish Daily News, um jornal de
Glasgow, a Kirkby Manufacturing and Engineering, um produtor de radiadores
em Liverpool e a Meriden, produtora de motocicletas em West Midlands. Os
desafios que estas cooperativas encaravam — falta de investimento prévio e
fortes rivais domésticos e estrangeiros — eram agravados por antipáticos
funcionários, economicamente conservadores, no departamento de Benn. Um
relatório imparcial de 1981 sobre as cooperativas, feito pela revista de
esquerda New Internationalist, descreveu-as como condenadas desde o
início – elas eram “gigantes incapazes”.
A cooperativa Scottish Daily
News durou cinco meses. A cooperativa Kirby foi melhor. Eric
Heffer, um ministro que trabalhou para Benn, encontrou lá administradores de
centrais sindicais “transformados por suas experiências” de ajudar a administrar
os negócios. Eles se tornaram “administradores-trabalhadores reais”. A
cooperativa resistiu à recessão dos anos 70. Mas logo após a eleição de 1979, o
governo de Margaret Thatcher terminou o experimento ao cancelar os subsídios da Kirby.
A Meriden sobreviveu à mudança de governo e mais outra recessão no
início dos anos 1980. Mas declarou falência em 1983.
O próprio Benn durou apenas um
ano no ministério da Indústria, antes de ser removido por Wilson, que nunca
aceitou completamente seu radicalismo. Benn nunca mais esteve à frente de algum
posto econômico central. A saga “solapou a opção por cooperativas nos círculos
de formulação de políticas do Partido Trabalhista nas décadas seguintes”, diz
Gordon-Farleigh.
Da demissão de Benn em 1975 à
eleição de Jeremy Corbyn como líder trabalhista, 40 anos depois, a hierarquia
do partido aceitou amplamente que a economia deveria ser baseada em lucro,
competição, e administração de cima para-baixo. As tentativas de Benn e outros
na esquerda britânica, durante os anos 70, de estabelecer o que eles por vezes
chamavam, provocativamente, de “controle dos trabalhadores” foram largamente
esquecidas, ou lembradas como apenas mais uma das utopias fracassadas de uma
década ridicularizada. A chance de uma economia democrática parecia ter
passado.
Ainda assim, durante os anos
magros que se seguiram para a esquerda britânica, outro experimento em
democratização da economia começou – do outro lado do Atlântico, em um país
menos associado com revoltas contra o capitalismo. Foi mais local, mas também
mais profundo do que o apoio de Benn a cooperativas vulneráveis, e buscava
mobilizar o poder dos consumidores, em vez dos produtores.
Gar Alperovitz é um economista e
ativista norte-americano de 83 anos. Desde os anos 1960, tem persistentemente
promovido inovações econômicas que colocam objetivos sociais antes de
comerciais. Frequentemente, tem sido uma figura periférica, mas atraiu bastante
atenção intermitentemente. Em 1983, apareceu com destaque em uma matéria de
capa da Time sobre o futuro da economia. Em 2000, na Universidade de
Maryland, co-fundou o Democracy Collaborative, um centro para pesquisa
sobre como recuperar a vida política e econômica de regiões em declínio nos EUA
– que por sua vez também se expandiu gradualmente em um corpo ativista.
“Cidades norte-americanas com
problemas estão em um estágio mais avançado de declínio de que suas
equivalentes britânicas,” diz Guinan, que trabalhou no Democracy
Collaborative por uma década. “Mas o governo norte-americano local também
tem maiores poderes. Por isso, é possível criar novos modelos radicais da base
para cima.”
Em 2008, o Democracy
Collaborative começou a trabalhar em Cleveland, uma das grandes cidades
mais pobres dos EUA, que tem perdido empregos e moradores há décadas. Os
ativistas seguiram uma estratégia de Alperovitz chamada “construção de riqueza
comunitária”. Ela busca acabar com a dependência destas economias locais em
dificuldade, de relações com corporações distantes, extratoras de riqueza –
como as redes de varejistas. Em vez disso, tenta articular estas economias ao
redor de negócios locais, mais socialmente conscientes.
Em Cleveland, o Democracy
Collaborative ajudou a montar uma companhia de energia solar, uma
lavanderia industrial, uma horta hidropônica no centro da cidade. Os três
empreendimentos eram de propriedade de seus funcionários, e uma parte de seus
lucros ia para uma espécie de companhia central, encarregada de estabelecer
mais cooperativas na cidade. Os três empreendimentos tiveram sucesso, por
enquanto. O objetivo do projeto foi resumido em termos francos, quase
populistas, por um dos co-fundadores do Democracy Collaborative, Ted Howard, em
2017: “Parem com o vazamento de dinheiro para fora de nossa comunidade.” Mas a
“construção de riqueza comunitária” também tem um propósito mais sutil: é uma
demonstração concreta de que decisões econômicas podem ser baseadas em mais do
que os limitados critérios do neoliberalismo.
Howard estava falando em uma
conferência de nova economia na Inglaterra, que foi organizada por McDonnell.
Os dois têm uma relação próxima. Ano passado, McDonnell introduziu Howard em
outro evento do Partido Trabalhista, em Preston: “Nós o trazemos com alguma
regularidade agora, para explicar o trabalho que fez.”
McDonnell interessa-se há muito
tempo em descentralizar e democratizar a economia. Ele frequentemente cita
Tawney, Cole e Benn em palestras. Durante os anos 80, era o representante líder
e efetivamente o chanceler do Conselho da Grande Londres [GLC, na sigla em
inglês], que buscava experimentos ao estilo de Benn, de cooperativas com apoio
estatal, com resultados similarmente mistos, até que foi abolido por Thatcher
em 1986.
Contrária à imagem que o
retratam, como um monstro estatista, McDonnell acredita que há limites em até
que ponto a esquerda consegue aumentar impostos e gastos públicos. Em sua
perspectiva, muitos eleitores não estão dispostos, ou estão incapazes, de pagar
mais impostos – especialmente quando os padrões de vida estão apertados. Ele
também acredita que governos centrais perderam sua autoridade. São vistos
simultaneamente como muito fracos, com pouco dinheiro devido à austeridade; e
também como muito fortes, muito intrusivos e impositivos em relação à seus
cidadãos. Em vez de depender do Estado para criar uma sociedade melhor, um dos
aliados próximos de McDonnell, argumenta que governos de esquerda, em nível
nacional ou municipal “têm de ousar mudar o funcionamento da economia”.
Nos anos recentes, com o estímulo
de McDonnell e Jeremy Corbyn, e a orientação do Democracy Collaborative,
muitos dos princípios do “modelo de Cleveland” foram adotados pelo Conselho
administrado pelo Partido Trabalhista na pequena (e anteriormente industrial)
cidade de Preston, em Lancashire. A regeneração tem sido promovida como o
prenúncio da Grã-Bretanha sob um governo Corbyn.
A cidade de Preston, um centro
urbano que declinou por décadas, agora tem um mercado renovado e movimentado,
novos estúdios artísticos em antigos escritórios do Conselho, e café e cerveja
artesanal sendo vendidas em containers marítimos modificados. Todos
estes empreendimentos tem sido facilitados pelo Conselho. De forma menos
visível, mas provavelmente mais importante, outras instituições públicas – um
hospital, uma universidade, uma delegacia policial – foram persuadidas pelo
Conselho a buscar bens e serviços locais sempre que possível, tornando-se o que
o Democracy Collaborative chama de “instituições âncora”. Elas agora
gastam quase quatro vezes mais de seus orçamentos em Preston do que faziam em
2013.
O líder do Conselho é Matthew
Brown, um homem intenso, angular, de 46 anos, que foi parcialmente estimulado a
entrar na política ao ver Benn na televisão quando era adolescente. “O que
estamos fazendo em Preston é bom senso, mas é também ideológico,” me disse
Brown, quando nos conhecemos em seu diminuto escritório. “Nós estamos vivendo
uma crise sistêmica do capitalismo e temos que criar alternativas.” Ao fazê-lo
– especialmente num momento em que Conselhos locais estão sendo altamente
enfraquecidos pelos cortes governamentais – Preston está, de forma pequena mas
visível, minando a autoridade do neoliberalismo, que depende do dogma segundo o
qual outras opções econômicas não são possíveis.
O Conselho, continuou Brown
orgulhosamente, estava “apoiando pequenos negócios locais em vez de grandes
capitalistas”. Ele estava usando isso como alavanca para fazer as empresas se
comportarem de forma mais ética: pagamento de salário mínimo, recrutamento de
equipes mais diversas. E estava buscando tornar a cidade um lugar onde
cooperativas são o mainstream e não nichos: “Minha intenção é
levá-las a dirigir 30% ou 40% de nossa economia.
Perguntei se ele tinha dúvidas
sobre a possibilidade de uma cidade com menos de 150 mil habitantes servir de
modelo para reformular a toda a economia britânica – e por consequência, outras
economias. “Não,” ele disse. “Eu sou bem determinado.”
Sente-se uma confiança nos novos
economistas, o que surpreende depois de todas as derrotas da esquerda durante
os anos 80 e 90. Mas com o capitalismo menos potente e popular do que antes, os
novos economistas acreditam que agora estão engajados no que o teórico político
Antonio Gramsci — uma grande referência para eles e McDonnell — chamou de
“guerra de posição”. Trata-se da acumulação estável de alianças, ideias e
credibilidade pública. Berry descreveu este processo como uma “transição” que
pode levar a uma economia diferente. McDonnell me disse em 2017 que ele queria
“uma transformação progressiva de nosso sistema econômico”.
Algumas horas depois de encontrar
Brown em Preston, falei com McDonnell novamente sobre a nova vitalidade
intelectual da esquerda. “Nós estamos começando a reconstruir o que tínhamos
com Tony Benn nos anos 70,”
ele disse. “Um conjunto de grupos de pesquisa — NEF e Class[outro thinkthank de esquerda em
economia] – tem sido revitalizados. Michael Jacobs está cheio de idéias. Nós
estamos argumentando efetivamente por uma economia mais democrática. Dobrar o
número de cooperativas no Reino Unido” – algo que a NEF defendeu ano passado –
“é relativamente tímido. Nós queremos ir além.”
Ele não deu mais detalhes. Mas a
política do “fundo inclusivo de posse” adotada pelo Partido Trabalhista mostra
o potencial das idéias da nova economia. A intenção dos fundos é que sejam
cavalos de Tróia. Ou seja, inserirna estrutura de propriedade de uma companhia
um grupo de acionistas – seus funcionários – que tendem a favorecer maiores
salários e investimentos de longo-prazo. “Os fundos são para fazer pender a
balança rumo a um tipo diferente de cultura corporativa, diz Lawrence.” Ou,
como afirma a escritora e ativista Hilary Wainwright, uma das intelectuais mais
perspicazes da esquerda do Partido Trabalhista desde os anos 70:
“Transformações radicais, quando desestabilizam o status quo do jeito
certo, cria outras oportunidades para mudança.”
Mas tornar a nova economia em
política nacional será difícil, mesmo que o Partido Trabalhista conquiste
poder. Último verão, a diretora do NEF, Miatta Fahnbulleh, foi convidada para
uma conversa com servidores do Tesouro Civil, sobre a nova economia. “Quando
cheguei lá,” ela me contou, “eu rapidamente me dei conta que, para o Tesouro, a
nova economia significa apenas tecnologia. Quando eu comecei a falar, em vez
disso, sobre como a economia poderia operar diferente, eles compraram minha
premissa de que o status quo tem problemas. Eles são o Tesouro, têm
os dados. Acharam que a nova economia era interessante, mas somente como uma
espécie de plataforma de debate.”
Antes da NEF, Fahnbulleh
trabalhou para o gabinete do governo e para a estratégia institucional do
governo. Ela prevê que haverá resistência em à nova economia: “Whitehall odeia
grandes mudanças — todas as vezes.” Jacobs, que tem uma experiência mais longa
de governo, é levemente mais otimista. “Alguns jovens do Tesouro provavelmente
irão ficar bem empolgados com uma nova abordagem econômica. Alguns dos mais
velhos vão achar que está tudo errado. E outros irão apenas implementar
qualquer coisa que o governo pedir.”
E há o establishment corporativo.
Desde Margareth Thatcher, ele se habituou com governos dóceis, com ser capaz de
se sobrepor a outros grupos de interesse e com os lucro e preços das ações
superando outras medidas de valor econômico ou social de uma empresa. A
intenção dos novos economistas em encerrar este desequilíbrio não foi bem
aceita. “A Confederação da Indústria Britânica (CBI, na sigla em inglês)
realmente odeia propriedade inclusiva,” diz um aliado de McDonnell. “Você
consegue sentir os arrepios sempre que suscitamos o assunto.”
Quando indaquei à CBI suas
perspectivas sobre a nova economia, houve um silêncio por uma semana. Então,
depois que os persegui, uma sucinta declaração: “O Partido Trabalhista parece
estar determinado em impor regras que demonstram uma deliberada falta de
entendimento de negócios.”
Os novos economistas dizem não
estar intimidados. “Nós precisamos ser absolutamente francos sobre isso,” diz
Guinan. “Uma economia democrática e outra exploradora são fundamentalmente incompatíveis.
Devemos montar um ataque direto, de esquerda populista, a estes interesses
corporativos. Devemos dizer a eles: ‘Que vão para Singapura!’ A esquerda não
deve temer um pouco de destruição criadora”, ele diz tomando emprestada, de
modo atrevido, uma frase geralmente usada pelos defensores do “livre” mercado.
Jacob concorda: “Que as corporações exploradoras vão à falência.”
Isso pode parecer uma imprudente
fantasia de esquerda. Mas os novos economistas argumentam de forma convincente
que transformações altamente disruptivas ocorrerão na economia britânica, de
qualquer forma – devido ao Brexit, à automação e à crise climática. “O Brexit
por si só irá requerer um Estado bem intervencionista” para ajudar a economia a
se adaptar, diz Lawrence. “Ele irá tornar muito mais difícil para um servidor
público dizer, ‘Você simplesmente não pode fazer isso.’”
Mas o que os novos economistas
querem que venha depois do capitalismo neoliberal? Em Preston, depois que Brown
me falou missionariamente acerca das virtudes de “negócios locais” e “empregos
locais”, perguntei se seu conselho não estava, na verdade, salvando o
capitalismo na cidade – ao torná-lo mais socialmente sensível – em vez de
suplantá-lo. Pela primeira vez, ele pausou. “Nós temos que ser pragmáticos,” ele
disse. “Ainda estamos em um ambiente de “livre” mercado. E de qualquer forma eu
não vejo negócios locais como grandes capitalistas. A vasta maioria possui
apenas um ou dois empregados. Quase não há ninguém para explorar. Não há
acionistas estão envolvidos.” Nem todo mundo na esquerda veria pequenos
empreendimentos — frequentemente grandes apoiadores de partidos de direita e de
políticas de “austeridade” sociais e econômicas — em termos tão benévolos.
Posteriormente, perguntei também
a McDonnell se sua abordagem não corria o risco de salvar – em vez de
substituir – o capitalismo. Ele sorriu e acionou seu modo proverbial, que adota
quando fala de questões complexas. “Quem incorpora quem…” ele disse. “Esse é o
debate!” Então, seu sorriso ficou mais malicioso. Um governo Corbyn, ele disse,
iria “receber” os negócios “em nosso terno abraço”.
O aliado de McDonnell com quem
falei disse: sempre que a questão da trajetória de longo prazo da economia
surgia, nas discussões do Partido Trabalhista, “nós evitamos esta conversa. Não
há consenso no partido.” E adicionou: “Pessoalmente, eu ficaria bem feliz se a
Grã-Bretanha terminasse como a Dinamarca.”
McDonnell frequentemente cita a
Alemanha como outro país onde o capitalismo é mais benigno. Wainwright, que
conhece McDonnell há décadas, tem uma previsão útil e flexível sobre o que deve
acontecer com a cultura econômica britânica, se ele se tornar ministro. “Em
rota rumo a uma sociedade socialista,” ela diz, “pode haver momentos em que um
capitalismo diferente emerge”. Em outras palavras, um sistema menos selvagem.
Ainda assim, o problema da
esquerda em se contentar com “um capitalismo diferente” (não importa se
temporário) é que isso pode possibilitar que o capitalismo se reagrupe e então
retome seu progresso darwiniano. Indiscutivelmente, isso é exatamente o que
aconteceu na Grã-Bretanha durante o último século. Depois da recessão econômica
politicamente explosiva nos anos 1930 – a precursora da crise atual do
capitalismo – durante os anos pós-guerra muitas lideranças corporativas
pareceram aceitar a necessidade de uma economia mais igualitária, e
desenvolveram relações próximas com políticos trabalhistas. Mas assim que a
economia e a sociedade se estabilizaram, e direitistas como Thatcher começaram
a advogar sedutoramente por um retorno ao capitalismo tradicional, os
empresários mudaram de lado.
Outra dificuldade dos novos
economistas e de seus aliados políticos é persuadir eleitores – criados sob a
ideia de que lucro e crescimento são os únicos critérios econômicos que
importam – de que outros valores devem importar mais, daqui pra frente. Mesmo salvar
o meio ambiente é difícil de vender. “O efeito do crescimento econômico no
planeta não é uma questão discutida suficientemente pela esquerda,” admite
Berry. “Sobre decrescimento” – o atual termo ecológico para abandonar o
crescimento como um objetivo econômico – “o Partido Trabalhista não quer chegar
perto.” concorda o aliado de McDonnell. “Decrescimento,” ele disse, “é uma
terrível rotulação.” Guinan diz que o problema não é apenas de apresentação:
“ainda não foi inventada uma política de decrescimento que convença o público.”
Em vez disso, o Partido
Trabalhista recentemente começou a construir uma versão do Green New Deal:
um sedutor esquema, mas ainda muito teórico, defendido mais constantemente por
esquerdistas e ambientalistas na Grã-Bretanha e nos EUA na última década. Ele
tem o objetivo de abordar a emergência climática e alguns dos problemas da
economia de forma simultânea, por meio de um grande apoio governamental ao uso
de tecnologias verdes e aos trabalhos qualificados e bem remunerados necessários.
Em uma palestra esta semana, McDonnell disse que este precisaria ser o maior
projeto em tempos de paz em muitas décadas. Em abril, a ministra paralela de
Negócios, Rebecca Long-Bailey, uma parceira de McDonnell, escreveu um artigo no The
Guardian, defendendo uma “revolução ecológica industrial”, incluindo “turbinas
em águas profundas no Mar do Norte”, que “poderiam fornecer quatro vezes a
demanda de energia de toda a Europa. Era uma visão bem empolgante, mas as
turbinas eram a única nova tecnologia potencial que o artigo mencionava.
Outra grande questão que os novos
economistas frequentemente contornam é se muitos dos trabalhadores atuais de
fato querem ter mais voz em seus espaços de trabalho. Quando a “democracia
industrial” foi a última idéia popular à esquerda, nos anos 70, o trabalho era
indiscutivelmente mais satisfatório e central na vida das pessoas. Empregos em
escritórios estavam substituindo os empregos nas fábricas, o trabalho era um
forte motor de mobilidade social, e a associação a sindicatos poderosos
acostumara a maioria dos trabalhadores a ser consultados, a ter alguma agência
em suas vidas profissionais. Mas em 2019, experiências de empoderamento no
trabalho são menos comuns. Para cada vez mais pessoas, não importa quão
qualificadas, emprego é de curto-prazo, de baixo status, ingrato – algo que mal
faz parte de sua identidade.
Gordon-Farleigh passou anos
tentando estimular as pessoas a formar cooperativas – e nem sempre teve
sucesso. “O capitalismo contemporâneo produziu uma força de trabalho passiva,”
ele diz. “Muitas pessoas até gostam de se sentir um pouco alienadas pelo
capitalismo – e não realmente entender como ele funciona. Eles precisam ser
requalificados, politicamente. Temos que olhar quais poderes econômicos eles de
fato querem.”
Em abril, depois de esperar uma
pausa no aparentemente infinito inverno de polêmicas sobre o Brexit, Mathew
Lawrence lançou um think-thank da nova economia, Common Wealth, que busca
delinear os eixos do movimento, em conjunto com um evento vespertino em
Londres. Após um filme animador, mas levemente escorregadio sobre a missão do Common
Wealth, ser exibido em uma grande tela – similar em tom e conteúdo a um recente
canal político do Partido Trabalhista chamado Our Town – Lawrence foi
introduzido para a audiência por Guinan. Na palestra que se seguiu, Lawrence
avançou tanto que sua voz tornou-se um resmungo, rápido demais para qualquer um
que não esteja familiarizado com a nova economia acompanhar. Durante este
momento formal da tarde, o Common Wealth correu o risco de parecer um
projeto para quem já é de dentro — apenas mais um think-tank londrino,
com o ex líder do Trabalhista, Ed Miliband, na diretoria.
Mas o restante do lançamento
pareceu diferente. O local alugado era em East End, longe do usual
cinturão de think-tanks em Manchester. Estava lotado, o sotaque da
região se ouvia alto. Quase todo mundo tinha entre 20 e 30 anos, muitos com
sapatos desgastados e cortes de cabelos austeros e modernos – a agora familiar
visão de millennials britânicos reunindo-se para discutir mudar o
mundo. Duas horas depois do início do evento, as pessoas ainda chegavam e quase
ninguém havia ido embora. Quando eu fui, pouco antes das 23h, as luzes nos
prédios corporativos de Londres ainda estavam acesas. Mas ao me afastar da sala
barulhenta, especialmente depois de uma garrafa de cerveja artesanal da Common
Wealth, feita para a ocasião, foi possível acreditar que os grandes dias dos
banqueiros podem estar contados, e que a nova economia irá nos dizer como.
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