O drama do nosso tempo é
dominação articulada e resistência fragmentada. Muitas vezes, os movimentos
anticapitalistas, feministas e antirracistas têm combatido uma destas formas de
opressão – e fechado os olhos às outras
Boaventura de Sousa Santos |
Outras Palavras | Imagem: Oswaldo Guyasamin
“Outras Palavras” tem orgulho de
publicar, com frequência, os textos de intervenção política de Boaventura de
Sousa Santos. O que vem a seguir refere-se, em sua parte final, às eleições
parlamentares portuguesas: marcadas para outubro, elas já incendeiam o
país, inclusive pelo inconformismo da direita diante da “gerigonça” – um raro governo
de esquerda. Talvez falte, ao leitor não-português, contexto para compreender
parte dos argumentos lançados neste trecho.
Mas as reflexões iniciais de Boaventura referem-se, de modo sintético e provocador, a um drama que talvez seja ainda mais intenso no Brasil que em Portugal. Ele aborda a desarticulação – e muitas vezes a exacerbação dos conflitos – entre os movimentos sociais anticapitalistas, feministas e antirracistas. O artigo sugere: talvez a origem do fenômeno esteja no fato de as esquerdas “terem sido treinadas, no mundo eurocêntrico, para desconhecer ou descartar as articulações entre os três modos de dominação”… Esta elaboração teórica interessará decerto a nosso público majoritariamente brasileiro – que também tem, no texto, a oportunidade de se situar sobre uma das importantes disputas eleitorais que marcarão os próximos meses (A.M.)
Mas as reflexões iniciais de Boaventura referem-se, de modo sintético e provocador, a um drama que talvez seja ainda mais intenso no Brasil que em Portugal. Ele aborda a desarticulação – e muitas vezes a exacerbação dos conflitos – entre os movimentos sociais anticapitalistas, feministas e antirracistas. O artigo sugere: talvez a origem do fenômeno esteja no fato de as esquerdas “terem sido treinadas, no mundo eurocêntrico, para desconhecer ou descartar as articulações entre os três modos de dominação”… Esta elaboração teórica interessará decerto a nosso público majoritariamente brasileiro – que também tem, no texto, a oportunidade de se situar sobre uma das importantes disputas eleitorais que marcarão os próximos meses (A.M.)
Os conflitos sociais têm ritmos e
intensidades que variam consoante as conjunturas. Muitas vezes acirram-se para
atingir objetivos que permanecem ocultos ou implícitos nos debates que
suscitam. Num período pré-eleitoral em que as opções políticas sejam de
espectro limitado, os conflitos estruturais são o modo de dramatizar o
indramatizável.
Os conflitos estruturais do nosso
tempo decorrem da articulação desigual e combinada dos três modos principais de
desigualdade estrutural nas sociedades modernas. São eles, capitalismo,
colonialismo e patriarcado, ou mais precisamente, hetero-patriarcado. Esta
caracterização surpreenderá aqueles que pensam que o colonialismo é coisa de
passado, tendo terminado com os processos de independência. Realmente, o que
terminou foi uma forma específica de colonialismo — o colonialismo histórico
com ocupação territorial estrangeira. Mas o colonialismo continuou até aos
nossos dias sob muitas outras formas, entre elas, o neocolonialismo, as guerras
imperiais, o racismo, a xenofobia, a islamofobia, etc. Todas estas formas têm
em comum implicarem a degradação humana de quem é vítima da dominação colonial.
A diferença principal entre os três modos de dominação é que, enquanto o
capitalismo pressupõe a igualdade abstrata de todos os seres humanos, o
colonialismo e o patriarcado pressupõem que as vítimas deles são seres sem
plena dignidade humana, seres sub-humanos. Estes três modos de dominação têm
atuado sempre de modo articulado ao longo dos últimos cinco séculos e as
variações são tão significativas quanto a permanência subjacente.
O drama do nosso tempo é que,
enquanto os três modos de dominação moderna atuam articuladamente, a
resistência contra eles é fragmentada. Muitos movimentos anticapitalistas têm
sido muitas vezes racistas e sexistas, movimentos anti-racistas têm sido
frequentemente pró-capitalistas e sexistas e movimentos feministas têm sido
muitas vezes pró-capitalistas e racistas. Enquanto a dominação agir
articuladamente e a resistência a ela agir fragmentadamente, dificilmente
deixaremos de viver em sociedades capitalistas, colonialistas e
homofóbicas-patriarcais. Talvez, por isso, e como se tem visto ultimamente, aos
jovens de muitos países seja hoje mais fácil imaginar o fim do mundo (pelo
agravamento da crise ambiental) do que o fim do capitalismo. A assimetria entre
a dominação articulada e a resistência fragmentada é a razão última da
tendência das forças de esquerda para se dividirem em guetos sectários e das
forças de direita para se promiscuirem em amálgamas ideológicas na mesma cama
do poder.
A continuidade da dominação
segrega um senso comum capitalista, racista e sexista que serve as forças de
direita, até porque é reproduzido incessantemente por grande parte da opinião
publicada e pelas redes sociais. Porque age na corrente, a direita pode dar-se
ao luxo de ser indolente e transmitir a ideia de “estar ao corrente” e, quando
tal não funciona, aciona a sua asa de extrema direita (tão presa ao seu tronco
quanto a asa de direita moderada) para dramatizar o discurso e provocar novas
divisões nas esquerdas, sobretudo se estas ocupam o poder de governo e estamos
em período pré-eleitoral e a ausência de alternativas credíveis salta aos
olhos. Pelo contrário, as forças de esquerda estão sempre à beira do abismo da
fragmentação por terem sido treinadas no mundo eurocêntrico para desconhecer ou
descartar as articulações entre os três modos de dominação. As dificuldades são
ainda maiores por terem de agir contra a corrente do senso comum reacionário.
Identifico duas tarefas urgentes
para superar tais dificuldades. A primeira é de curto prazo e tem um nome:
pragmatismo. Se a agressividade do pensamento reacionário, explicitamente
racista e encobertamente hiper-capitalista e patriarcal, é a que se observa e
ocorre num país cujos cidadãos ainda há cinquenta anos eram vítimas de racismo
por toda a Europa dita desenvolvida e antes disso tinham sido ostracizados como
brancos escuros — ou portygyes no Caribe, Havaí e EUA – se tudo isto
ocorre num país cujo poder de governo é ocupado por forças de esquerda, é fácil
imaginar o que será quando voltarmos (se voltarmos) a ser governados pela
direita. O entendimento entre as forças de esquerda tem contra si forças
imensas, nacionais e internacionais: capitalismo financeiro global, privatarias
público-privadas, Comissão Europeia, Embaixadas norte-americana e de muitos
países europeus, agências da sociedade civil supostamente promotoras da
democracia, Igrejas conservadoras, a razão indolente da direita infiltrada há
muito no PS português contra a militância corajosa do último Mário Soares, a
razão indolente do sectarismo de pequenos grupos de esquerda radical que têm
sempre os dois pés no mesmo sítio para acreditarem que são firmes em vez de
estáticos. Mas o que está em jogo é muito e o pragmatismo impõe-se. Quando a
direita começa a defender transportes públicos e saúde pública, a esquerda no
governo deve lembrar-se do que está a esquecer. A resposta à extrema-direita
racista tem de ser tanto política como jurídica e judicial. Defendo há muito
que as lutas jurídicas contra o senso comum reacionário só devem ocorrer depois
de tais lutas terem adquirido forte densidade política. É, pois, imprudente
determinar em abstrato a validade da via jurídico-judicial ou da via política.
A segunda tarefa é de longo prazo
e consiste em descolonizar o saber científico e popular e o poder, tanto social
como cultural e político. Esta tarefa é particularmente difícil em Portugal por
duas razões. Em primeiro lugar, a última fase da descolonização do colonialismo
português ocorreu há muito pouco tempo (1961-1975). As feridas coloniais estão
ainda tão abertas e fundas que, tal como as crateras produzidas pela mineração
a céu aberto, parecem parte integrante da paisagem. O longo ciclo colonial está
inscrito na carne do país até ao mais íntimo tutano. Um país com tanta falsa
esperança histórica sente-se agora dominado por tanto falso medo de ser menos
europeu que a Europa desenvolvida que sempre recolonizou o colonialismo
português para maior benefício dela. Por sua vez, os países que nasceram da
luta anticolonial contra Portugal tiveram o privilégio de sofrer o menor ônus
neocolonial. Todos sem exceção se afirmaram orgulhosamente socialistas e não
apenas independentes. Foram, porém, rapidamente postos na ordem pelo
capitalismo financeiro global. Sucederam-se lideranças que querem esquecer a
violência e rapina colonialistas para melhor ocultarem a violência e a rapina
que elas próprias vão exercendo contra as suas populações.
A segunda decorre do fato de os
processos de independência terem ocorrido como uma dupla revolução: nas então
colónias, a revolução da independência, e em Portugal, a revolução da
democracia do 25 de Abril de 1974. Os mesmos militares que sustentaram o regime
colonial no seu último período, participaram na guerra dita de pacificação e
certamente cometeram as atrocidades correspondentes, são também os heróis de
que muito nos orgulhamos por terem aberto o caminho às independências sem peias
neocoloniais e pela democracia que nos devolveram em Portugal. Passará ainda
algum tempo para que as feridas se exponham, e assim possam ser eficazmente
curadas.
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