quinta-feira, 18 de julho de 2019

Desdolarizando o império financeiro americano

Michaek Hudson
Michael Hudson -- entrevistado por Bonnie Faulkner

O imperialismo está a obter algo em troca de nada.   É uma estratégia para conseguir excedente de outros países sem desempenhar um papel produtivo e sim através da criação de um sistema extractivo rentista.   Uma potência imperialista obriga outros países a pagarem tributo.   Naturalmente, a América não diz directamente aos outros países:   "Você tem de nos pagar um tributo", tal como os imperadores romanos diziam às províncias que governavam.   Os diplomatas dos EUA simplesmente insistem em que outros países invistam seus influxos da balança de pagamentos e as poupanças dos seus bancos centrais em US dólares, especialmente em títulos do US Treasury.   Este padrão de títulos do Tesouro transforma o sistema monetário e financeiro global num sistema tributário.   É isto o que paga os custos dos gastos militares dos EUA, incluindo suas 800 bases militares espalhadas por todo o mundo.

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Sou Bonnie Faulkner. Hoje no [programa] Guns and Butter temos o Dr. Michael Hudson. Apresentamos hoje a Desdolarização do império financeiro americano. O Dr. Hudson é economista e historiador. É presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trend, analista financeiro da Wall Street e distinto professor investigador de teoria económica na Universidade do Missouri, Kansas City. Entre os seus livros mais recentes incluem-se ...And Forgive Them Their Debts: Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee Year ; Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy e J Is for Junk Economics: A Guide to Reality in an Age of Deception . Retornamos hoje para uma discussão do livro seminal de 1972 do Dr. Hudson, Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire , uma crítica de como os Estados Unidos exploram economias estrangeiras através do FMI e do Banco Mundial. Discutimos como os Estados Unidos têm dominado o mundo economicamente tanto como o maior credor mundial como, posteriormente, como o maior devedor mundial. Além disso daremos uma olhadela à morte anunciada da dominação do dólar.

Bonnie Faulkner : Michael Hudson, bem-vindo de volta.

Michael Hudson : É bom estar de volta, Bonnie.

BF : Por que o presidente Trump insiste em que o Federal Reserve reduza suas taxas de juro? Creio que elas já estavam extremamente baixas. E se ficarem ainda mais baixas, que efeito teria isto?

MH : As taxas de juro estão historicamente baixas e elas têm sido mantidas baixas a fim de tentar proporcionar moeda barata para especuladores comprarem acções e títulos com o objectivo de fazerem ganhos de arbitragem. Os especuladores podem tomar emprestado a uma taxa de juro baixa para comprar uma acção que produz dividendos (e também fazer ganhos de capital) a uma taxa de retorno mais alta, ou comprando um título tal como títulos lixo corporativos que pagam taxas de juro mais altas e manter a diferença. Em suma, taxas de juro baixas são uma forma de engenharia financeira.

Trump quer que as taxas de juro sejam baixas a fim de inchar o mercado habitacional e o mercado de acções ainda mais, como se isto fosse um indicador da economia real, não apenas do sector financeiro, da economia da produção e do consumo. Para além desta preocupação interna, Trump imagina que se mantiver taxas de juro mais baixas do que aquelas na Europa a taxa de câmbio do dólar declinará. Ele pensa que isto tornará as exportações dos EUA mais competitivas em relação aos produtos estrangeiros.

Trump está a criticar o Federal Reserve por não manter taxas de juro ainda mais baixas do que as da Europa. Ele pensa que se as taxas de juro forem baixas haverá uma saída de capital deste país para comprar acções e títulos estrangeiros que pagam uma taxa de juro superior. Esta saída financeira reduzirá a taxa de câmbio do dólar. Ele acredita que isto aumentará a possibilidade de reconstruir a manufactura de exportações da América.

Este é o grande erro de cálculo neoliberal. É também a base para modelos do FMI.


Como taxas de juro baixas reduzem a taxa de câmbio do dólar, elevando preços de importação
A ideia condutora de Trump é que reduzir o valor do dólar reduzirá o custo do trabalho para o patronato. Isto é o que acontece quando uma divisa é desvalorizada. A depreciação não reduz custos que tenham um preço comum à escala mundial. Há um preço comum para o petróleo no mundo, um preço comum de matérias-primas e um preço quase comum para capital e crédito. Assim, a principal coisa que é desvalorizada quando se pressiona uma divisa para baixo é o preço do trabalho e das condições de trabalho.

Os trabalhadores são esmagados quando cai uma taxa de câmbio da divisa, porque eles têm de pagar mais pelos bens que importam. Se o dólar for para baixo contra o yuan chinês ou a divisa europeia, importações chinesas vão custar mais em dólares. Do mesmo modo as importações europeias. Isto é a lógica por trás de desvalorizações tipo "arruíno meu vizinho".

Quanto mais custarão as importações do estrangeiro depende de quão longe for a queda do dólar. Mas mesmo que ele mergulhe uns 50 por cento, mesmo que o dólar se torne uma divisa lixo como a da Argentina ou de outros países latino-americanos, isso não pode realmente aumentar as exportações manufactureiras americanas porque já não há muito trabalho americano nas fábricas. Operários conduzem táxis e trabalham na indústria de serviços ou para companhias de seguros médicos. Mesmo que você dê aos trabalhadores americanos em empresas manufactureiras todo o seu vestuário e alimento em troca de nada, eles ainda assim não podem competir com países estrangeiros porque seus custos de habitação, seus seguros médicos e seus impostos são tão altos que eles são colocados fora dos mercados mundiais. Por isso, não ajudará muito se o dólar cair 1%, 10% ou 20%. Se você não tem fábricas a funcionar e se não tem um sistema de transporte, um abastecimento de energia, e se os nossos serviços públicos e infra-estrutura estão a ser destruídos, não há nada que a manipulação da divisa possa fazer para permitir que a América reconstrua rapidamente sua indústria de exportação de manufacturas.

As companhias matrizes americanas já mudaram suas fábricas para o exterior. Elas abandonaram a América. Na medida em que Trump ou seus sucessores se abstêm de mudar este sistema – na medida em que ele dá vantagens fiscais a empresas para que se mudem para fora – não há nada que se possa fazer que restaure a indústria aqui. Mas ele está apanhado pela teoria económica lixo do Fundo Monetário Internacional, a conversa de padrão neoliberal que é transmitida à América Latina a qual pretende que se um país simplesmente reduzir mais sua taxa de câmbio ele será capaz de reduzir seus salários e padrões de vida, pagando menos ao trabalho em termos de moeda forte até um certo ponto, quando a sua pobreza e austeridade ficarem suficientemente profundas, em que ele se tornará mais competitivo.

Isto não funcionou durante cinquenta anos na América Latina. Isto tão pouco funcionou para outros países e nunca funcionou nos Estados Unidos. No século XIX a Escola Americana de Política Económica desenvolveu a doutrina da Economia de Altos Salários (revi isto no meu livro America's Protectionist Takeoff: 1815-1914 ). Eles reconheceram que se você pagar mais ao trabalho, isto é mais produtivo, pode permitir uma melhor educação e funciona melhor. Eis porque trabalho de alto salário pode vender a preço mais baixo que o trabalho "pauperizado" de baixo salário. Trump está portanto um século atrás no tempo ao acolher a ideia austeritária do FMI de que se pode simplesmente desvalorizar a divisa e reduzir salários de trabalhadores e padrões de vida em termos internacionais para tornar a economia mais lucrativa e de alguma forma "abrir o seu caminho para a saída da dívida".

O que a depreciação da divisa faz quando o dólar é desvalorizado é capacitar firmas da Wall Street a tomarem emprestado a 1% e comprarem divisas e títulos europeus que rendem 3% ou 4% ou 5%, ou acções que rendem ainda mais. A ideia condutora é fazer o que fez o Japão na década de 1990: ter taxas de juro muito baixas para aumentar o chamado carry trade. O carry trade é tomar emprestado a uma taxa de juro baixa e comprar títulos que rendem uma taxa mais alta, fazendo um ganho de arbitragem sobre a taxa de juro diferencial. Assim, Trump está a criar uma oportunidade de arbitragem para investidores da Wall Street. Ele pretende que isto é favorável ao trabalho e que pode reconstruir a manufactura. Mas isto só ajudará a esburacar a economia dos EUA, enviando moeda para outros países a fim de construí- los ao invés de investir em nós próprios. De modo que o efeito do que Trump está a fazer é o oposto do que ele diz que está fazendo.

BF : Exactamente. Qual é o sentido de conduzir o investimento para países estrangeiros, longe dos Estados Unidos?

MH : Se você for um investidor, você pode ganhar mais dinheiro com o desmantelamento da economia dos EUA. Você pode tomar emprestado a 1% e comprar um título ou uma acção que rende 3% ou 4%. Isso é a chamada arbitragem. É um almoço financeiro gratuito. O efeito deste almoço gratuito, como você diz, é erguer economias estrangeiras ou pelo menos seus mercados financeiros enquanto enfraquece a sua própria. A finança é cosmopolita, não patriótica. Ela realmente não se importa onde ganha dinheiro. A finança vai a qualquer lugar onde a taxa de retorno seja mais elevada. Essa é a dinâmica que tem estado a desindustrializar os Estados Unidos ao longo dos últimos quarenta anos.

BF : Pelo que está a dizer, parece que as políticas que Donald Trump estão levando a fazer aos Estados Unidos o que o FMI e o Banco Mundial tradicionalmente fizeram às economias estrangeiras.

MH : É o que acontece quando se desvaloriza. O sector financeiro verá que as taxas de juro estão a baixar, de modo que a taxa de câmbio do dólar também declinará. Os investidores mudarão sua moeda (ou tomarão emprestada) para euros, ouro ou yen japonês ou franco suíço cujas taxas de câmbio se espera que ascendam. Assim, está-se a oferecer uma arbitragem financeira e ganho de capital para investidores que especulam em divisas estrangeiras. Também se estará a esvaziar a economia aqui e a esmagar níveis de salário real e padrões de vida.

Porque a desvalorização não ajudará a re-industrializar a economia dos EUA 

BF : Pensa que Donald Trump entende o que está a fazer?

MH : Não creio que entenda. Penso que ele tem uma visão super-simplificada de como funciona o mundo. Ele pensa que se desvalorizarmos o dólar podemos vender a baixo preço à China e à Europa. Mas você só lhes pode vender a baixo preço se tiver fábricas de automóveis disponíveis. Se não tiver uma fábrica, não será capaz de vender a baixo preço a fabricantes estrangeiros não importa quão baixo vá o dólar. E se já não tiver um conjunto de fábricas a manufacturarem computadores e fornecedores locais nos Estados Unidos, não vai ter capacidade de produção apta a vender a preço mais baixo à China. Acima de tudo, é preciso infraestrutura pública e habitação, educação e cuidados de saúde a preços acessíveis. Assim, a visão de Trump é uma fantasia. É como dizer: "Se tivermos algum presunto, podíamos ter algum presunto e ovos, se tivéssemos alguns ovos". Isto ignora as causas da desindustrialização da América.

Se tivéssemos aqui fabricantes de carros, computadores e outras indústrias manufactureiras desempregadas – fábricas que estavam ociosas numa economia que fosse bastante competitiva – então a desvalorização poderia fazer algum sentido. Mas os americanos simplesmente não são nem um pouco competitivos. Os custos de habitação na América são altos, assim como os custos médicos e de seguro de saúde, os impostos e salários retidos sobre o trabalho e os preços de infraestruturas básicas que de modo algum podem competir com países estrangeiros simplesmente pela manipulação da divisa.

Desde 1980 a economia dos EUA foi tornada de muito alto custo. Mas também houve um enorme esmagamento do trabalho, pela elevação dos preços que ele tem de pagar por necessidades básicas. Mesmo se os salários se elevarem, as pessoas não podem permitir-se viver tão bem como há trinta anos atrás. Uma reestruturação radical é necessária a fim de restaurar uma economia industrial de pleno emprego. Você precisa de desprivatizar, você tem de romper monopólios, você precisa da espécie de economia e reforma económica que a América teve sob Franklin Roosevelt na década de 1930. Não vejo isso a acontecer.

BF : Pensa que Donald Trump foi instalado como presidente para superintender a bancarrota dos Estados Unidos e desmantelar o Império dos EUA?

MH : Ninguém o instalou, ele instalou-se a si próprio. Não creio que a maior parte das pessoas esperasse que vencesse. Se observar as probabilidades que os corretores de apostas profissionais e os provedores de cotações davam desde o instante em que anunciou sua candidatura, a maior parte das pessoas pensava que o sonolento Jeb Bush obteria a nomeação e que Bush perderia para Hillary. Assim, houve na verdade tentativas para instalar Hillary ou Bush. Mas ninguém tentou instalar o Trump. Ele fez um drible em torno deles, por conversa directa, humor e celebridade.

Ele não tinha conselheiros que ouvisse, porque sempre foi um one-man show. E ele realmente não sabe o que está a fazer economicamente. Ele sabe como trapacear as pessoas, vitimizar fornecedores e como ganhar dinheiro no mercado imobiliário simplesmente não pagando fornecedores e pedindo emprestado a bancos e não os pagando. Mas ele nem sequer tem ideia de que não se pode administrar uma economia deste modo. Ser um mafioso imobiliário não é o mesmo que administrar uma economia inteira. Trump não tem ideia e não acho que alguém saiba como controlá-lo, excepto talvez a Fox News.

Wall Street versus a economia "real": Qual se revela mais real? 

BF : O que está acontecendo com a classe dominante nos Estados Unidos? Será que alguém nas suas fileiras sabe como administrar uma economia?

MH : O problema é que administrar uma economia para ajudar o povo e elevar padrões de vida, assim como para reduzir o custo de vida e de fazer negócio, significa não administrar para ajudar a Wall Street. Se alguém souber como administrar uma economia, o sector financeiro quer mantê-lo afastado de qualquer gabinete público. A alta finança é curto-prazista, não pensa a longo prazo. Ela joga o jogo do bate e foge, não a tarefa muito mais difícil de criar uma infraestrutura para crescimento económico tangível.

Só se pode fazer uma de duas coisas: Ajudar o trabalho ou ajudar a Wall Street. Se administrar a economia significa ajudar o trabalho e melhorar padrões de vida dando melhores cuidados médicos, isto vai ser a expensas do sector financeiro e de lucros corporativos a curto prazo. Assim, a última coisa que se quer fazer é ter alguém a administrar a economia para a sua própria prosperidade ao invés dos objectivos da Wall Street.

A questão é quem vai fazer o planeamento. Serão funcionários públicos eleitos no governo ou a Wall Street? O escritório de relações públicas da Wall Street é a Universidade de Chicago. Ela afirma que um mercado livre é aquele em que ricos investidores da Wall Street e a classe financeira administram uma economia. Mas se deixar as pessoas votarem e elegerem governos democraticamente, isso é chamado de "interferência" num mercado livre. Este é o combate de Trump contra a China. Ele quer que os bancos administrem a China e disponham de um mercado livre. Ele diz que a China se tornou rica nos últimos cinquenta anos por meios injustos, com a ajuda do governo e empresas públicas. De facto, ele quer que os chineses fiquem tão ameaçados e inseguros quanto os trabalhadores americanos. Eles deveriam livrar-se dos seus transportes públicos. Deveriam livrar-se dos seus subsídios. Deveriam deixar muitas das suas empresas irem à bancarrota para que americanos pudessem comprá-las. Deveriam ter a mesma espécie de mercado livre que arruinou a economia dos EUA.

A China não quer esta espécie de mercado livre, é claro. Ela tem uma economia de mercado. Esta é realmente muito semelhante ao que os Estados Unidos foram no seu arranque industrial do século XIX, com forte subsídio governamental.

Os EUA a mudarem de estratégia monetária, dos pagamentos excedentes para o status do défice 

BF : No seu trabalho seminal de 1972, Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire , escreveu: "Enquanto a dominação dos EUA da economia mundial se estendeu de 1920 a 1960 a partir da sua posição credora, seu controle a partir da década de 1960 teve origem na sua posição de devedora. Não só as mesas foram viradas, mas os diplomatas dos EUA descobriram que a sua influência como a maior economia devedora do mundo é tão forte quanto aquela que antes reflectia sua posição de credora líquida". Isto soa contra-intuitivo. Você poderia decompor o argumento nos seus componentes? Vamos começar de 1920 a 1960. Como os Estados Unidos conseguiram dominar a economia mundial a partir de sua posição de credor?

MH : A posição credora dos EUA começou realmente após a I Guerra Mundial, com base no dinheiro que emprestaram aos Aliados antes de se juntarem à guerra. Quando a guerra acabou, diplomatas dos EUA disseram à Inglaterra e à França para nos pagarem as armas que haviam comprado anteriormente. Mas no passado, durante séculos, os vitoriosos habitualmente perdoavam todas as dívidas entre si uma vez acabada a guerra. Pela primeira vez, a América insistiu em que os Aliados pagassem pelo apoio militar que lhe fora vendido antes se juntar a eles.

Os Aliados europeus estavam bastante devastados pela guerra e voltaram-se para a Alemanha e insistiram em reparações que rapidamente a levaram à bancarrota. A Alemanha levou à bancarrota a sua economia ao tentar pagar à Inglaterra e à França, que simplesmente enviavam o recebido para pagar os Estados Unidos. Suas balanças de pagamentos estavam em défice e suas divisas iam abaixo. Investidores americanos viram nisso uma oportunidade para comprar sua indústria. O ouro era a medida do poder, o suporte para a moeda interna e o crédito e portanto para o investimento de capital.

A América era muito mais produtiva pois não sofrera danos de guerra. Entre o fim da II Guerra Mundial e 1950, quando estalou a Guerra da Coreia, a América acumulou mais de 75 por cento do ouro monetário mundial. Os Estados Unidos tinham fortes exportações agrícolas, exportações industriais crescentes e bastante dinheiro para comprar as principais indústrias da Europa, da América Latina e de outros países.

Mas a partir de 1950, com a Guerra da Coreia, a balança de pagamentos dos EUA entrou em défice pela primeira vez. Até piorou quando o presidente Eisenhower decidiu que a América tinha de apoiar o colonialismo francês no Sudeste asiático, na Indochina francesa – Vietname e Laos. No momento em que a Guerra do Vietname escalou, na década de 1960, o dólar estava a incidir em grandes défices de balança de pagamentos. Toda semana na Wall Street observávamos a oferta de ouro descer, perder ouro para países que não estavam em guerra, como a França e a Alemanha. Eles estavam a prevalecer-se do excesso de dólares que estavam a ser gastos pelos militares americanos. Por volta de 1960 ficou claro que a América estava numa trajectória de ficar sem ouro dentro de uma década devido aos gastos de guerras além-mar.

Por fim, em Agosto de 1971, o presidente Nixon cessou de vender na bolsa de Londres e o preço subiu muito acima dos US$35 por onça [1] . A balança de pagamentos dos EUA ainda apresentava um défice profundo devido aos combates no Sudeste Asiático e alhures, o que criava um défice permanente na balança de pagamentos. O sector privado estava em equilíbrio durante os anos 1950 e 1960. A totalidade do défice era militar.

Quando a América saiu do ouro, as pessoas começaram a perguntar-se o que iria acontecer. Muitos previram um dia do juízo final económico. Estavam a perder a sua capacidade de dominar o mundo através do ouro. Mas o que eu percebi (e fui o primeiro a publicar) foi que, se os países não pudessem mais comprar e manter ouro nas suas reservas internacionais, o que é que eles iriam manter? Havia apenas um activo de que poderiam dispor: títulos do governo dos EUA, ou seja, títulos do Tesouro (Treasury bonds).

Um título do Tesouro é um empréstimo ao Tesouro dos EUA. Quando um banco central estrangeiro compra um título, ele financia o défice orçamental interno dos EUA. Assim os défices da balança de pagamentos acabam por financiar o défice orçamental interno.

O resultado é um fluxo circular de gastos militares reciclados por bancos centrais estrangeiros. Depois de 1971 os Estados Unidos continuaram a gastar militarmente no exterior e em 1974 os países da OPEP quadruplicaram o preço do petróleo. Naquele momento os Estados Unidos disseram à Arábia Saudita que podiam cobrar quanto quisesse pelo seu petróleo, mas tinha de reciclar todos os seus ganhos líquidos de dólares. Os sauditas não deveriam comprar ouro. Foi dito aos sauditas que seria um acto de guerra se não reciclassem na economia americana os dólares que recebiam pelas suas exportações de petróleo. Eles foram encorajados a comprar títulos do Tesouro dos EUA, mas também podiam comprar acções e títulos dos EUA para ajudar a impulsionar os mercados de valores aqui e ao mesmo tempo apoiarem o dólar.

Os Estados Unidos mantiveram seu próprio stock de ouro, enquanto queriam que o resto do mundo mantivesse suas poupanças na forma de empréstimos aos Estados Unidos. Dessa forma o dólar não foi abaixo. Outros países que estavam a receber dólares simplesmente reciclavam-nos para comprar títulos financeiros dos EUA.

O que teria acontecido se não tivessem feito isto? Digamos que a Alemanha, França ou Japão não o tivessem feito. Se não reciclassem suas receitas em dólares de volta para a economia dos EUA, suas divisas iriam subir. As entradas de dólares pelas vendas exportadas seriam convertidas na sua divisa, aumentando a sua taxa de câmbio. Mas ao comprar títulos ou acções dos EUA, lançam o preço dos dólares de volta contra a sua própria divisa.

Assim, quando os Estados Unidos incorrem num défice de balança de pagamentos sob condições em que outros países mantém suas reservas externas em dólares, o efeito para outros países é manter estáveis as taxas de câmbio das suas divisas – principalmente através de empréstimos ao governo dos EUA. Isso dá aos Estados Unidos um benefício sem custo (a free ride). Eles podem cercar o mundo com bases militares e os dólares que isto custa são retornados aos Estados Unidos.

Imagine subscrever IOUs [2] quando você gasta numa loja ou num restaurante – mas os seus IOUs nunca serem cobrados! A loja pode dizer: "Temos um IOU de Bonnie Faulkner. Vamos mantê-lo nas nossas poupanças. Ao invés de depositá-lo no banco ou pedir o pagamento em moeda real, vamos simplesmente manter-nos a coleccionar estes IOUs de Bonnie Faulkner". As corporações chamam de "realizável" ("receivables") a tais IOUs e créditos comerciais. Agora, suponha que faça uma farra de despesas e dê à loja IOUs no valor de mil milhões de dólares. Não há como pagar esses mil milhões de dólares. Nesse caso, as lojas que recebem esses IOUs diriam: "Bem, nós realmente não queremos excluir Bonnie, porque sabemos que ela não pode pagar. Perdemos o valor das contas realizáveis no lado do activo do nosso balanço – todas estas notas promissórias que colectámos.

Isso na essência é o que países estrangeiros estão a dizer acerca da sua acumulação de dólares. A posição dos EUA é, efectivamente, de que não vamos reembolsar qualquer país estrangeiro pelos dólares que lhes devemos. Quando era secretário do Tesouro, John Connolly disse: "São nossos dólares, mas é vosso problema". Outros países têm de nos pagar ou do contrário nós os bombardearemos. A dimensão militar deste esquema é a posição dos EUA de que seria um acto de guerra se outros países não se mantivessem a gastar seus ganhos de exportações em empréstimos ou acções e títulos dos EUA.

É isto o que torna os Estados Unidos o "país excepcional". O valor da nossa divisa está baseado nas poupanças dos outros países. A moeda que eles poupam tem de ser mantida na forma de dólares ou títulos que nunca reembolsaremos, mesmo que pudéssemos.

Isto é um enorme almoço gratuito. Você poderia pensar que Donald Trump desejasse manter esta situação. Mas ele afirma que a China está a manipular a sua divisa ao reciclar seus dólares em empréstimos ao Tesouro dos EUA. O que significa isso? A China está a ganhar um bocado dólares com exportações de bens para os Estados Unidos. O que faz com estes dólares? Ela tenta fazer o que a América fez com a Europa e a América do Sul. Ela tentou comprar companhias americanas. Mas os Estados Unidos impediram-na de fazer isto, com argumentos especiosos sobre segurança nacional. O governo afirma que a nossa segurança nacional ficaria ameaçada se a China comprasse uma cadeia de postos de abastecimento de combustíveis, como ela quis fazer na Califórnia. Os Estados Unidos têm portanto um duplo padrão, afirmando que ficam ameaçados se a China comprar qualquer companhia, mas insistindo no seu direito de comprar os altos comandos de economias estrangeiras com crédito electrónico em dólares.

Isto deixa a China apenas com uma opção: comprar títulos do Tesouro dos EUA, emprestando seus ganhos de exportação ao US Treasury.

Trump está agora a conduzir outros países para fora da órbita do dólar 

A China agora percebe que o Tesouro dos EUA não vai reembolsá-la. Mesmo se quisesse reciclar seus ganhos de exportação em títulos do Tesouro ou em acções e títulos ou em imobiliário dos EUA, Donald Trump agora está a dizer que não quer que a China apoie a taxa de câmbio do dólar (e mantenha baixa a sua própria taxa de câmbio) através da compra de activos dos EUA. Estamos a dizer à China para não fazer o que dissemos a outros países para fazerem durante os últimos quarenta anos: comprar títulos dos EUA. Trump acusa países de manipulação artificial da divisa se mantiverem suas reservas estrangeiras em dólares. Assim, ele está a dizer-lhes, especificamente à China, para livrar-se dos seus haveres em dólar, não mais comprar dólares com os seus ganhos de exportação.

Assim, a China está a comprar ouro. A Rússia também está a comprar ouro e grande parte do mundo está agora no processo de reverter ao padrão gold-exchange (o que significa que o ouro é utilizado para liquidar desequilíbrios de pagamentos internacionais, mas não está conectado à criação de moeda interna). Os países percebem que há uma grande vantagem no padrão gold-exchange. Existe apenas um montante limitado de ouro nos bancos centrais do mundo. Isto significa que qualquer país que trava guerras vai incidir num grande défice de balança de pagamentos e vai perder suas reservas-ouro. Assim, ressuscitar o papel do ouro pode impedir qualquer país, incluindo os Estados Unidos, de irem à guerra e sofrerem um défice militar.

A ironia disto é que Trump está a desmanchar o almoço gratuito financeiro da América – sua política de imperialismo monetário – ao dizer às províncias para deixar de reciclarem seus influxos de dólares. Elas têm de desdolarizar suas economias.

O efeito disto é tornar estas economias independentes dos Estados Unidos. Trump já anunciou que não contratará chineses nos nossos sectores de TI ou deixará chineses estudarem em universidades [dos EUA] assuntos que possam permitir-lhes rivalizarem connosco. De modo que nossas economias estão em vias de separar-se.

Com efeito, Trump tem dito que se não pudermos vencer num acordo comercial, se não pudermos fazer com que outros países percam e se tornem mais dependentes de fornecedores estado-unidenses e com preços de monopólio, então não assinaremos um acordo. Esta posição está a conduzir não só a China como também a Rússia e mesmo a Europa e outros países para fora da órbita dos EUA. O resultado final vai ser que os Estados Unidos serão isolados, sem serem capazes de manufacturar como costumavam fazê-lo. O país está a desmantelar a sua manufactura. Assim, como acabará isto?

Alguns números demográficos foram divulgados na semana passada mostrando que o meio da América está a esvazia-se. A população está a mudar-se dos estados do Centro-Oeste e montanhosos para as costas Leste e Oeste e para a costa do Golfo. Assim, as políticas de Trump estão a acelerar a desindustrialização dos Estados Unidos sem nada fazer para colocar novas forças produtivas em substituição e nem mesmo desejando que outros países invistam aqui. As montadoras automobilísticas alemãs vêem Trump a aplicar tarifas sobre o aço importado que precisam para construir carros nos Estados Unidos. Para construí-los aqui a fim de contornar as barreiras tarifárias dos EUA contra automóveis alemães e outros. Mas agora Trump não está sequer a deixá-los importar as peças de que precisam para montar estes carros nas fábricas não-sindicalizadas que construíram no Sul.

O que podem eles fazer? Talvez proponham uma troca com a General Motors e a Chrysler. Os europeus obterão as fábricas que as empresas americanas possuem na Europa e lhes darão suas fábricas americanas em permuta.

Está espécie de divisão está a verificar-se sem qualquer tentativa de tornar o trabalho americano mais competitivo através da redução dos seus custos de habitação, ou do preço dos seus seguros de saúde e cuidados médicos, ou dos seus custos de transporte ou dos custos de infraestrutura. De modo que a América está a ficar sem salvação como uma economia de altos preços num mundo nacionalista, enquanto incide num enorme défice de balança de pagamentos para suportar seus gastos militares por todo o globo.

BF : Assim, parece que quando os Estados Unidos saíram do padrão-ouro, o dólar basicamente substituiu o ouro como o principal activo no qual os governos estrangeiros podiam manter seus activos. Agora você está a dizer que, quando não havia mais padrão-ouro, se economias estrangeiras não comprassem títulos do Tesouro dos EUA, o preço das suas divisas aumentaria e os tornaria não competitivos.

MH : Sim. Imagine se os americanos tivessem de pagar cada vez mais dólares para comprar carros alemães. Haveria uma maior procura pela divisa alemã, o euro, cuja taxa de câmbio subiria. Isso estava a acontecer durante os anos 1960 e 1970, antes do euro. O único meio pelo qual a Alemanha podia manter baixo o valor do seu marco era comprar alguma coisa que custasse dólares. Ela não comprava exportações americanas, porque os EUA já estavam a fabricar e exportar cada vez menos, excepto quanto a alimentos – e a Alemanha só podia comer uma quantidade limitada de trigo e soja. Assim, a única coisa que a Alemanha podia comprar com preço em dólares eram títulos do Tesouro dos EUA. Isso impedia o marco alemão de ascender ainda mais rapidamente e mantinha a balança de pagamentos equilibrada.

O Japão tinha um problema semelhante. Os japoneses tentaram comprar imóveis nos EUA, mas não tinham qualquer ideia do que fazer com o valioso imobiliário daqui. Eles perderam mil milhões de dólares na compra do Rockefeller Center por não perceberem que o valor do edifício era separado do valor da terra e que a terra era possuída pela Universidade de Columbia. O próprio edifício estava a incidir num défice. A maior parte do valor locativo era paga ao proprietário da renda da terra. Os japoneses não tinham ideia de como funciona o imobiliário americano.

O euro é apenas uma divisa satélite do US dólar 


Alguns americanos preocupam-se com a possibilidade de o euro rivalizar com o dólar. Afinal de contas, a Europa não está a desindustrializar-se. Está a mover-se em frente e a produzir melhores carros, aviões e outros produtos para exportação. Assim os Estados Unidos persuadiram políticos estrangeiros a estropiar o euro fazendo dele uma divisa de austeridade, criando tão poucos títulos governamentais que não há nenhum veículo euro suficientemente grande para países estrangeiros nele manterem suas reservas. Os EUA podem criar cada vez mais dívida em dólar incorrendo num défice orçamental. Podemos seguir políticas keynesianas incorrendo num défice para empregar mais trabalho. Mas a eurozona recusa-se a deixar seus países incorrerem num défice superior a 3% do PIB. Este nível é muito marginal em comparação com o dos Estados Unidos. E se estiver a tentar não incidir de todo em qualquer défice – e mesmo se o mantiver em menos de 3% – então estará a impor austeridade sobre o seu país, mantendo baixo o seu emprego. Estará a sufocar seu mercado interno, a cortar sua garganta ao ser incapaz de criar um rival real para o dólar. Eis porque Donald Rumsfeld chamou a Europa de zona morta e porque a única alternativa para uma divisa real é o yuan chinês. Eles estão a movimentar-se para uma área com divisa baseada no ouro juntamente com a Rússia, o Irão e outros membros da Organização de Cooperação de Shangai.

BF : A União Europeia ao não permitir países europeus dentro da eurozona incorrerem em défices de mais de 3% está basicamente cortar a sua própria garganta. Por que fariam eles uma tal coisa?

MH : Porque os responsáveis do Banco Central estão a combater uma guerra de classe. Eles consideram-se como generais financeiros no combate económico contra o trabalho, para prejudicar a classe trabalhadora, reduzir salários e ajudar o seu eleitorado político, a classe investidora rica. A Europa sempre teve uma guerra de classe mais viciosa do que os Estados Unidos. Ela nunca emergiu realmente do seu aristocrático sistema pós feudal. Seus banqueiros centrais e universidades seguem a escola do livre mercado da Universidade de Chicago, dizendo que o meio de ficar rico é tornar os seus trabalhadores mais pobres e criar um governo em que o trabalho não tenha voz. Essa é a filosofia económica da Europa e é por isso que a Europa não tem alcançado o crescimento que a China e outros países estão a experimentar.

BF : Assim, parece que desde 1971 os Estados Unidos foram capazes de dominar a economia mundial a partir de uma posição devedora.

Michael Hudson : Quando perdia ouro, de 1950 a 1971, não estavam a dominar; estavam a perder a oferta de ouro da América para a França, Alemanha, Japão e outros países. Somente quando cessou o padrão gold-exchange e os países ficaram sem alternativa para suas poupanças internacionais, excepto comprar títulos do Tesouro dos EUA ou outros títulos, os EUA foram capazes de pagar pelos seus gastos militares sem perder seu poder.

Desde 1971, a diplomacia mundial tem sido essencialmente apoiada pelo poder militar americano. Não é um mercado livre. O poder militar mantém países numa camisa de força financeira na qual os Estados Unidos podem incidir em dívida sem terem de reembolsá-la. Aos outros países que incidem em défices de pagamentos não é permitido expandirem suas economias, ou rivalizar os Estados Unidos ou mesmo melhorar padrões de vida da sua força de trabalho. Só países fora da órbita dos EUA – China e em princípio a Rússia e alguns outros países na Ásia – são capazes de aumentar seus padrões de vida e investimento de capital e tecnologia por estarem livres desta guerra de classe financeira globalizada.

BF: Em Super Imperialism você escreve que: "Pressões para criar uma Nova Ordem Económica Internacional entraram em colapso no fim da década de 1970". Estará você a dizer que outros países simplesmente abandonaram e aceitaram o imperialismo monetário americano? O que aconteceu?

MH : Contaram-me que foi suborno em grande escala. Responsáveis da administração Reagan contaram-me que simplesmente pagaram a responsáveis estrangeiros para apoiar a posição dos EUA e não uma Nova Ordem Económica Internacional. Agências dos EUA manobravam dentro da política partidária de países europeus e do Oriente Próximo para promover responsáveis pró-americanos e marginalizar aqueles que não concordassem em actuar como satélites dos EUA. Muito dinheiro esteve envolvido nessa intromissão.

Assim os Estados Unidos corromperam a política democrática por toda a Europa, Oriente Próximo e grande parte da Ásia. Isso conseguiu esterilizar a independência estrangeira nos EUA. Enquanto isso, as ideias neoliberais de Thatcher e Reagan foram promovidas ao invés da espécie de economia mista que Roosevelt e a social-democracia haviam impulsionado durante cinquenta anos.

Quem planeará economias: Administradores financeiros ou governos democráticos? 

BF : Se houve pressões para criar uma Nova Ordem Económica Internacional na década de 1970, o que era esta nova ordem que se pretendia alcançar?

MH : Outros países quiseram fazer para as suas economias o que os Estados Unidos fizeram há muito para a sua própria economia: utilizar gastos deficitários do governo para construir infraestrutura, elevar padrões de vida, criar habitação e promover tributação progressiva que impedisse uma classe rentista, uma classe de latifundiários e financistas, de tomar as rédeas da administração económica. No campo financeiro, eles queriam que os governos criassem sua própria moeda, para promover o seu próprio desenvolvimento, tal como os Estados Unidos fizeram. O papel do neoliberalismo era o oposto: era promover o sector financeiro e imobiliário e os monopólios para afastar a administração económica do governo.

Assim, a questão real dos anos 1980 era acerca de quem seria o centro básico de planeamento da sociedade. Seria o sector financeiro – os bancos e accionistas dos bancos, cujo interesse está realmente nos Um Porcento que possuem a maior parte dos títulos e acções dos bancos? Ou seriam governos a tentarem subsidiar a economia para ajudar os 99 Porcento a crescerem e prosperarem? Essa era a visão social-democrata a que se opunha o Thatcherismo e o Reaganismo.

O impulso internacional para desdolarizar 

BF : Foi esta pressão que bloqueou uma Nova Ordem Económica Internacional provocada pelos Estados Unidos ao saírem do padrão gold-exchange ?

MH : Não. Foi uma reacção contra a política dos EUA de apropriar-se dos altos comandos de economias estrangeiras. Os Estados Unidos querem controlar suas exportações de matérias-primas, especialmente seu petróleo e gás. Querem controlar seus sistemas financeiros, de modo a que todos os seus ganhos económicos irão para investidores estrangeiros, principalmente investidores dos EUA. Querem tornar outras economias em economias de serviço para os Estados Unidos e fazer delas uma espécie de aliança militar super-NATO que se oporá a qualquer país que não queira fazer parte da ordem global unilateral centrada nos EUA.

BF : Como é que o imperialismo monetário de hoje – super imperialismo – difere do imperialismo do passado?

MH : É uma etapa mais alta do imperialismo. O velho imperialismo era colonialismo. Você vinha e utilizava poder militar para instalar uma classe dominante cliente. Mas cada país teria a sua própria divisa. O que tornou o imperialismo "super" é que a América não tem de colonizar um outro país. Ela não tem de invadir um país ou realmente ir à guerra com ele. Tudo o que precisa é ter o país a investir suas poupanças, seus ganhos de exportação, em empréstimos ao Governo dos Estados Unidos. Isto permite aos EUA manterem suas taxas de juro baixas e permite a investidores americanos tomar emprestado de bancos americanos a taxas baixas para comprarem indústria e agricultura estrangeira que rende 10%, 15% ou mais. De modo que os investidores americanos percebem que apesar do défice da balança de pagamentos, podem emprestar esses dólares a uma taxa tão baixa de países estrangeiros – pagando apenas 1% a 3% sobre os títulos do Tesouro que mantêm – enquanto bombeiam dólares para dentro economias estrangeiras ao comprarem sua indústria, agricultura, infra-estrutura e serviços públicos, obtendo grandes ganhos de capital. A esperança é que, em breve, consigamos sair da dívida através deste esquema de almoço gratuito.

O imperialismo está a obter algo em troca de nada. É uma estratégia para obter excedente de outros países sem desempenhar um papel produtivo, mas sim pela criação de um sistema extractivo rentista. Uma potência imperialista obriga outros países a pagarem tributo. Naturalmente, a América não diz directamente aos outros países: "Você tem de nos pagar um tributo", tal como os imperadores romanos diziam às províncias que governavam. Os diplomatas dos EUA simplesmente insistem em que outros países invistam seus influxos da balança de pagamentos e as poupanças dos seus bancos centrais em US dólares, especialmente em US Treasury (IOUs). Este padrão de títulos do Tesouro transforma o sistema monetário e financeiro global num sistema de tributos.

É isto o que paga os custos dos gastos militares dos EUA, incluindo suas 800 bases militares por todo o mundo e sua legião estrangeira de combatentes do ISIS, Al Qaeda e de "revoluções coloridas" para desestabilizar países que não aderem ao sistema económico global centrado no dólar.

BF: Você escreve: "Hoje seria necessário para a Europa e a Ásia conceberem uma alternativa artificial, criada politicamente, ao dólar como um armazém internacional de valor. Isto promete tornar-se o ponto crucial de tensões políticas internacionais durante a próxima geração". Como é que o mundo romperia com este duplo padrão de dominação do dólar?

MH : Isto já está a acontecer. E Trump é um grande catalisador acelerando a partida dos hóspedes. A China e a Rússia estão a reduzir seus haveres em dólares. Eles não querem manter títulos do Tesouro americano, porque se os EUA entrarem em guerra com eles isso lhes fará o mesmo que fez ao Irão. Os EUA simplesmente manterão todo o dinheiro, não reembolsarão o investimento que a China tem efectuado em bancos dos EUA e no Tesouro. Assim, eles estão a livrar-se dos dólares que possuem. Estão a comprar ouro e a mover-se tão rápido quanto possível para serem independentes de quaisquer exportações dos EUA. Eles estão construindo suas forças armadas, para que, se os Estados Unidos tentarem ameaçá-los, possam defender-se. O mundo está a fracturar-se.

BF : O que é que países estrangeiros como a China e a Rússia estão a utilizar para comprar ouro? Estarão a comprar com dólares?

MH : Sim. Eles ganham dólares ou euros do que estão a exportar. Esta moeda vai para o banco central da China, porque os exportadores chineses querem o yuan interno para pagar aos seus trabalhadores e fornecedores. Assim, vão ao Banco da China e trocam seus dólares por yuans. O Banco da China, o banco central, decide então o que fazer com esta divisa estrangeira. Eles podem ir ao mercado aberto e comprar ouro. Ou pode gastá-la em países estrangeiros, na iniciativa Estrada da Seda para construir uma ferrovia e infraestrutura de navegação e desenvolvimento de portos para ajudar exportadores da China a integrarem sua economia com outras e finalmente com a Europa, substituindo os Estados Unidos como cliente e fornecedor. Eles encaram os Estados Unidos como uma economia moribunda.

BF : Podem os chineses construir seus projectos de infraestrutura da Estrada da Seda com dólares?

MH : Não, eles estão a livrar-se de dólares. Eles já estão a receber tão grande excedente a cada ano que apenas utilizam os dólares para comprar ouro ou alguns bens, tais como aviões Boeing, mas sobretudo alimentos e matérias-primas. Quando a China compra ferro da Austrália, por exemplo, ela vende dólares das suas reservas de moeda estrangeira e compra a divisa australiana para pagar aos australianos pelo minério de ferro importado. Ela utiliza dólares para pagar outros países que ainda fazem parte da área do dólar e ainda desejam continuar a acrescentar estes dólares às suas reservas monetárias oficiais ao invés de possuir ouro.

BF : Bem, é bastante surpreendente, Michael, que países não tenham começado a fazer isto bem mais cedo.

MH : Houve pressão política para não se retirarem do sistema de dívida em dólar. Se países actuarem de forma independente, correm o risco de serem derrubados. É preciso um governo forte para resistir à interferência americana e aos truques sujos para colocar seu próprio país em primeiro lugar, em vez de seguir conselheiros e agentes dos EUA que lhes pagam para servir a economia dos EUA ao invés da sua própria, ou para resistir à lavagem cerebral da teoria económica lixo da Universidade de Chicago.

BF : Quão distante está a morte do dólar como a divisa de reserva do mundo?

MH: O dólar já está a desacelerar. Trump faz tudo o que pode para acelerar a sua morte, ameaçando que se países estrangeiros continuarem a reciclar seus ganhos de exportação em dólares (elevando a taxa de câmbio do dólar), nós os acusaremos de manipular sua divisa. Assim, ele gostaria de acabar isso tudo até o final do seu segundo mandato em 2024.

BF: Com o que se pareceriam os Estados Unidos se o dólar já não fosse a divisa de reserva do mundo?

MH : Se continuarem a deixar a Wall Street fazer o planeamento económico, a economia dos EUA parecer-se-á à da Argentina.

BF : E com o que se parece a Argentina?

MH : Uma estreita oligarquia no topo, mantendo o trabalho na base, retirando direitos do trabalho de sindicalizar-se – uma economia cujos sectores financeiro e militar venceram a guerra de classe.

BF : A China, com o seu projecto de infraestrutura da Estrada da Seda, está agora a comprar ouro no mercado aberto, tal como um certo número de outros países. Será que o sistema bancário ocidental penetrou a China? E se assim for, como você caracterizaria o sistema bancário da China?

MH : Há uma tentativa dos Estados Unidos de penetrar na China. Nos recentes acordos comerciais a China permitiu que bancos dos EUA criassem seu próprio crédito. Não estou seguro de que isso vá realmente em frente, agora que Trump está a intensificar a guerra comercial. Mas basicamente, na América, você tem bancos privados a concederem, crédito a corporações. Na China, você tem os bancos do governo a concederem os empréstimos. Isso salva a China de ter uma crise financeira do mesmo modo dos Estados Unidos.

Cerca de 12% das companhias americanas são consideradas companhias zumbi. Elas já estão insolventes, incapazes de fazer um lucro depois de pagarem seu pesado serviço de dívida. Mas os bancos ainda estão a dar-lhes crédito suficiente para permanecerem no negócio, de modo a não terem de ir à bancarrota e criar uma crise. A China não tem esse problema, porque quando indústrias e fábricas chinesas não são capazes de pagar, o Banco da China (público) pode simplesmente perdoar a dívida. Sua escolha é clara. Ou ele pode deixar companhias irem à bancarrota e serem vendidas a baixo preços a algum comprador, sobretudo americano, ou pode limpar as dívidas podres da contabilidade.

Se a China tivesse sido bastante louca para ter empréstimos estudantis que deixassem seus licenciados empobrecidos ao invés de proporcionar universidades gratuitas, o banco central da China poderia simplesmente cancelar os referidos empréstimos. Nenhum investidor perderia, porque os bancos são propriedade do governo. Sua posição é: "Se se trata de uma fábrica, não queremos que tenha de encerrá-la e desempregar seus trabalhadores. Vamos apenas cancelar parcialmente a dívida. E se os seus empregados estiverem em dificuldades, cancelamos parcialmente as suas dívidas, de modo a que possam gastar seu dinheiro em bens e serviços para ajudar a expandir nosso mercado interno".

Os bancos da América são possuídos pelos accionistas e detentores dos títulos, os quais nunca deixariam o Chase Manhattan ou o Citibank ou o Wells Fargo simplesmente perdoarem suas várias categorias de empréstimos. Esta é a razão porque a banca pública é muito mais eficiente ao nível de uma economia vasta do que bancos privados. Esta é a razão porque a banca deveria ser um serviço público e não privatizada.

BF : Pode explicar com mais pormenor como o cancelamento parcial de dívidas é bom para a economia?

MH : Bem, pense na alternativa a cancelar dívidas. Se você não cancelar parcialmente as dívidas de estudantes da América os licenciados têm de pagar tanto do serviço de dívida estudantil (agora ao governo) que não têm dinheiro suficiente para poderem comprar uma casa, não têm bastante dinheiro para se casarem, não têm dinheiro suficiente para comprar bens e serviços. Isto significa que a maior parte das pessoas que pode comprar casas são licenciados com fundos fiduciários (trust funds) – estudantes cujos pais são bastante ricos de modo a que não tivessem de recorrer a um empréstimo estudantil para pagar pela educação dos filhos. Estas famílias hereditárias são suficientemente ricas para lhes comprarem seu próprio apartamento.

Eis porque a economia americana está a polarizar-se entre pessoas que herdam bastante dinheiro para serem capazes de ter a sua própria habitação e orçamentos livres de empréstimos estudantis, a comparar com famílias que estão presas a dívidas e incidindo cada vez mais profundamente em dívidas e sem grandes poupanças. Esta bifurcação financeira está a tornar-nos mais pobres. Mas a teoria económica neoliberal encara isto como uma vantagem competitiva. Para eles, e para o patronato, a pobreza não é um problema a ser resolvido. É a solução para o seu próprio objectivo da lucratividade.

BF : Assim é todo este esquema de privatização, particularmente a privatização do sistema bancário e a privatização de muitas infraestruturas que está a levar os Estados Unidos à bancarrota?

MH : Sim, tal como levou a Inglaterra e outros países à bancarrota que se seguiu ao thatcherismo ou à filosofia neoliberal desde cerca de 1980.

BF : Michael Hudson, muito obrigado mais uma vez.

MH : É sempre um prazer ter estas discussões. 


[1] 1 onça troy = 31,103 gramas
[2] IOUs: notas de reconhecimento de dívida ou notas promissórias (I owe you)

O áudio desta entrevista está disponível em soundcloud.com/...

O original encontra-se em thesaker.is/bonnie-faulkner-interviews-michael-hudson/

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/

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