Nada assegura que o
pré-compromisso de “livre” comércio assinado em 28/6 torne-se realidade um dia.
Se assim for, haverá retrocesso secular. Felizmente, já se anuncia resistência
— e não apenas na América do Sul
Antonio Martins | Outras Palavras | Imagem: Diego
Rivera, A grande cidade de Tenochtitlán (1945)
Governos em final de mandato, ou
precocemente enfraquecidos, são ainda mais propensos a atos espalhafatosos e
imprudentes. Na sexta-feira (28/6), em Bruxelas, ministros do Mercosul e o
presidente da Comissão Europeia (CE) anunciaram ter
chegado ao que poderá ser, um dia, um acordo de “livre” comércio entre os dois
blocos. No Brasil, o governo Bolsonaro, representantes das grandes
transnacionais e a mídia conservadora comemoraram o fato, que julgam
“histórico”. Não há, porém, nenhuma garantia de que os compromissos
firmados entrarão em vigor um dia. O caminho para a aprovação final é longo e
pedregoso. Os primeiros obstáculos já começaram a surgir – e vão muito além dos
movimentos sociais e da “esquerda”. Mas se um dia prevalecer o que se tramou na
cidade-sede da União Europeia (UE), haverá três consequências claras. Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai cimentarão sua condição de produtores de bens
primários vulgares, em condições sociais e ambientais cada vez mais precárias.
Os direitos dos trabalhadores, a natureza e a pequena produção serão atingidos
também na Europa. No lado dos ganhadores, estarão apenas as megacorporações e
setores econômicos conhecidos por sua ação predatória, como o ruralismo
brasileiro.
Três dias após a assinatura, o
teor exato do compromisso firmado em Bruxelas permanece oculto – como para
confirmar a falta de transparência do modelo de globalização atual. Mas algumas
das bases vieram à tona, em comunicados e entrevistas. Como tornou-se costume
em acordos assim, as cláusulas são de dois tipos. Uma parte trata propriamente
de comércio; outra, em geral pouco debatida pelas sociedades, inclui normas
muito mais amplas, que frequentemente alteram a ordem econômica, social e mesmo
política dos países implicados.
O capítulo comercial, no que se
conhece, estabelece três mudanças. Os produtos industriais europeus (em
especial os mais presentes na pauta de exportações para o Mercosul) entrarão no
bloco sem pagar qualquer imposto de importação. A eliminação das barreiras que
hoje salvaguardam as produções locais ocorrerá num prazo de cinco a dez anos.
Os comunicados falam explicitamente em automóveis (que hoje pagam 35%), suas
peças (de 14% a 18%), equipamentos industriais (de 14% a 20%), produtos
químicos (até 18%), vestidos e calçados (até 35%) e farmacêuticos (até 14%).
Além destes, os europeus introduzirão, sem barreiras, produtos agroalimentares
sofisticados, como vinhos (hoje, tributados a 27%), chocolates (20%), uísque e
outros destilados (de 20% a 35%), queijos (28%) biscoitos (16% a 18%), pêssegos
em lata (55%) e até refrigerantes (de 20% a 35%).
A nota emitida pela chancelaria
brasileira comemora,
em tom pueril: “Os consumidores serão beneficiados pelo acordo, com acesso a
maior variedade de produtos a preços competitivos”. Não menciona o preço:
devastação do que resta de indústria nacional, diante da concorrência de
empresas europeias com acesso muito maior a infraestrutura, tecnologia e, em
especial, fontes de financiamento. Os primeiros sinais de alerta já surgiram,
vindos do Instituto Aço Brasil, que reúne as empresas do setor siderúrgico.
“Qualquer abertura sem corrigir assimetrias só agrava a situação da
siderurgia”, afirmou,
neste fim de semana, o presidente da entidade, Marco Polo Neves.
Em contrapartida totalmente
desigual, a União Europeia abrirá ao Mercosul seu mercado de produtos
agrícolas. Os comunicados referem-se à exportação de itens pouquíssimo
elaborados: suco de laranja, frutas, café solúvel, carnes, açúcar e etanol. É
curioso que o próprio textoproduzido
pelo governo brasileiro fala de modo grandiloquente, porém fornece previsões
pífias. A entrada em vigor do acordo elevaria o PIB em algo entre “US$ 87,5
bilhões e USS 125 bilhões, em quinze anos”. Faça as contas: na hipótese mais
otimista, seriam US$ 8,3 bilhões a mais por ano, ou… meros 0,4% de aumento na
produção nacional, hoje estimada em cerca de US$ 2 trilhões anuais.
Mesmo assim, atenção: nem isso
está garantido. Os negociadores europeus cercaram-se de salvaguardas
adicionais. Para produtos como carnes, açúcar e etanol, haverá
cotas – ou seja, volumes máximos de exportação. Em relação à carne,
por exemplo, serão 99 mil toneladas anuais – ou 1,2% do consumo anual do item
na UE. Além disso, algo está claramente definido: os europeus poderão, sempre
que julgarem necessário, invocar o “princípio da precaução” e bloquear a
importação de produtos agrícolas do Mercosul sobre os quais pese suspeita de
prejudicarem a saúde ou o ambiente.
Um terceiro aspecto, sempre no
capítulo das relações comerciais, ajuda a compreender os interesses a que serve
o pré-compromisso assinado sexta-feira. Haverá ampla liberalização do comércio
intracorporações. Isso permitirá, a transnacionais instaladas nos dois lados do
Atlântico, ampliar a competição entre seus trabalhadores, deslocando a produção
para onde forem menores os salários e mais frágeis os direitos trabalhistas. Se
a Volkswagen, por exemplo, julgar muito cara, ou muito protegida, a mão-de-obra
empregada na produção de freios, no Brasil, poderá importá-los da Eslováquia ou
da Hungria. Poderá, alternativamente, “convencer” seus assalariados brasileiros
a “optar” entre produzir por menos e perder seus empregos…
II
Os itens extracomércio do
pré-acordo são mais obscuros, mas nem por isso menos ameaçadores. Os
comunicados divulgados até agora fazem menção aos seguintes temas:
“Liberalização” do setor de serviços: É,
em todas as economias contemporâneas, o setor mais importante. Divide-se em
centenas de ramos que foram, durante décadas, fortemente protegidos. Muitas
destas proteções perduram. Um grupo estrangeiro não pode hoje, por exemplo,
constituir um escritório de advocacia no Brasil, ou controlar uma empresa de
telecomunicações. As transnacionais lutam para eliminar o que resta destes
limites. O comunicado lançado pelo governo brasileiro afirma: “O acordo
garantirá acesso efetivo em diversos segmentos de serviços, como comunicação,
construção, distribuição, turismo, transportes e serviços profissionais e
financeiros”…
Endurecimento das patentes e ataque
aos medicamentos genéricos: Em dezembro de 2017, quando as negociações
estavam em curso, dezenas de organizações da sociedade civil, da Europa e do
Mercosul, alertaram pra
a construção secreta de regras mais draconianas de “propriedade intelectual”.
Este endurecimento tornou-se comum em acordos de “livre” comércio. Num tempo de
forte crescimento da produção imaterial, as grandes corporações querem fechar
as brechas ao controle tecnológico e simbólico que exercem. A primeira possível
consequência é a ampliação do direito de patentes farmacêuticas, com restrições
à produção de medicamentos genéricos. A nota conjunta emitida em Bruxelas, em
28/6, é extremamente lacônica – mas afirma que o pré-acordo inclui itens
ligados à propriedade intelectual.
Concorrências públicas e compras
governamentais: O poder de compra e de contratação dos Estados é,
tradicionalmente, um instrumento de promoção do desenvolvimento. Ao licitar uma
ferrovia ou parque eólico, ou adquirir produtos como medicamentos ou comida
para a merenda escolar, os governos podem favorecer empresas ou cooperativas
locais, estimulando sua existência e expansão. Há décadas, as corporações lutam
para anular esta prerrogativa. Querem impor seu poder e fechar mesmo as pequenas
brechas para modelos de produção não-hegemônicos. O tema foi incluído, desde o
início, nas tratativas para o pré-acordo agora firmado. Embora sem entrar em
detalhes, todos os comunicados lançados a respeito do texto, desde
28/6, sugerem que as transnacionais alcançaram seu objetivo.
“Direitos do investidor” acima
dos sociais e ambientais: Os acordos de “livre” comércio firmados nas
últimas décadas incluem, quase sempre, a instituição do “direito do investidor”
e a constituição de estranhos tribunais, denominados “painéis de solução de
controvérsias”. Trata-se de um claro atentado à democracia. O “direito do
investidor” significa que as empresas transnacionais instaladas num país
qualquer podem reivindicar indenizações, sempre que se julgarem prejudicadas
por leis que instituem direitos sociais ou ambientais. Segundo este princípio,
uma corporação mineradora pode, por exemplo, alegar que seus lucros diminuíram,
devido à obrigação de construir barragens mais seguras – e que, portanto,
precisa ser ressarcida. Pior: muitos acordos de “livre” comércio estabelecem
que, nestes casos, as disputas não são resolvidas no âmbito dos Estados
nacionais, mas por “painéis de solução de controvérsias” totalmente opacos –
não submetidos, portanto, a nenhum controle democrático.
Os comunicados oficiais pós-28/6
não fazem referência a tais painéis, mas a preocupação se mantém. Ao longo das
duas décadas de negociação do acordo UE-Mercosul, o tema foi seguidamente
suscitado.
III
Ao referir-se, ainda durante a
reunião do G-20, ao pré-acordo firmado em Bruxelas, Jair Bolsonaro deu-o como
favas contadas. Mais: previu que teria efeito dominó, desencadeando uma série
de outros compromissos de “livre” comércio, entre o Brasil e muitos países do
mundo. Nos dias que se seguiram, contudo, tem ficado claro que pode se tratar
de propaganda enganosa. Há um longo caminho até a entrada em vigor do que foi
anunciado em 28/6. Mais importante: há amplo espaço para resistir; e a batalha
que se anuncia se dará tanto nos países do Mercosul quanto na União Europeia.
A fragilidade do pré-acordo
começa pela situação precária de seus três protagonistas principais. Na
Argentina, Maurício Macri cumpre um fim de mandato melancólico, marcado por
empobrecimento inédito, crise cambial e disparada da inflação. As pesquisas
eleitorais sugerem que sua coalizão de direita será derrotada nas urnas, em
outubro. No Brasil, a popularidade de Jair Bolsonaro caiu para o patamar mais
baixo vivido por um presidente em início de mandato, desde a
redemocratização. E a própria Comissão Europeia está de saída, com processo de
sucessão já aberto, depois de seus integrantes sofrerem fortes revezes nas
eleições para o Parlamento Europeu.
Os trâmites para a efetivação do
pré-acordo também são complicados. Primeiro, o texto proposto terá de aparecer
– algo que estava prometido para o fim de semana e não se deu até hoje. Em
seguida, o conjunto da obra será submetido tanto ao Parlamento Europeu quando
aos legislativos dos quatro integrantes do Mercosul. Por fim, as cláusulas mais
importantes serão novamente levadas aos 28 parlamentos dos Estados-membros da
UE.
Este conjunto de instâncias
amplia as oportunidades de crítica, resistência e alternativas – embora não se
deva subestimar as pressões que serão exercidas, em favor do acordo, pelo
grande poder econômico, ruralistas, mídia conservadora e, no Brasil, o próprio
governo Bolsonaro. Diversas vozes, aliás, já começam a desafinar o triste coro
dos contentes. No Mercosul, onde há ameaça de recolonização, elas são nítidas.
Horas depois do anúncio do pré-acordo, o Partido Peronista (“Justicialista”) já apontava os riscos
de submissão do país. Alberto Fernández, seu candidato às eleições
presidenciais de outubro, fez o mesmo em comício. “Não há o que celebrar”, afirmou.
Sua possível vitória significaria, provavelmente, o primeiro grave revés para o
pré-compromisso.
No Brasil, as primeiras críticas
vieram do ex-chanceler Celso
Amorim e dos ex-ministros da Fazenda Bresser
Pereira e Ciro
Gomes. Mas também os movimentos sociais começaram a se mexer. Ainda em 28
de junho, a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul frisava,
em comunicado, sua “absoluta rejeição ao presente acordo, tanto em relação a
suas formas quanto a seu conteúdo”.
Se na América do Sul o eixo das
críticas é anticolonialista, na Europa o foco é a devastação dos direitos
sociais e dos arranjos produtivos baseados em solidariedade, em favor das
corporações e das lógicas capitalistas. Os agricultores foram os primeiros
a protestar. Defensores ativos da pequena propriedade e de um modelo
agrícola que valoriza o orgânico, o local e o cooperativo, eles temem sofrer a
concorrência desleal da produção baseada em latifúndio, agrotóxicos, expulsão
dos trabalhadores rurais e devastação da natureza.
Mas a resistência está se
espalhando – inclusive entre os ambientalistas, que compõem o bloco que mais
cresceu nas recentes eleições para o Parlamento Europeu. Ainda nesta
segunda-feira (1º/7), Nicolas Hulot, ex-ministro do Ambiente do presidente
francês Emmanuel Macron, disparou:
“este acordo representa o oposto de nossas ambições para o clima”. Há horas, o
próprio presidente foi obrigado a fazer a primeira concessão, apesar de seu
compromisso com as políticas neoliberais. Temeroso das reações do eleitorado,
Macron prometeu lançar,
“nos próximos dias”, uma “avaliação independente, completa e transparente deste
acordo, em especial sobre as questões do ambiente e da biodiversidade”…
As reações indicam a
possibilidade de ressurgir um cenário político particular. Assim como nas lutas
contra o “livre” comércio travadas na virada do século, ele colocaria frente a
frente dois blocos de forças e dois projetos de futuro. De um lado, em favor do
acordo, as maiores corporações, a mídia cada vez mais atrelada a elas e a
maioria dos governos – tanto na União Europeia, quanto no Mercosul. De outro,
contra a recolonização e a lógica do grande poder econômico, uma vasta galáxia
de movimentos e de atores políticos que resistem dos dois lados do Atlântico –
e buscam alternativas baseadas em novas lógicas produtivas e sociais.
Reconstituir este choque de
projetos, e em especial a vasta coalizão que pode se articular no segundo pólo
da disputa, teria enorme efeito transformador e pedagógico — bem na hora em que
a crise civilizatória amplia-se e parece chegar a um ponto crucial.
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