Reportagem do Brasil de Fato
conversou com líderes de algumas organizações cívico-militares; em Caracas, são
mais de 80
Fania Rodrigues | Brasil de Fato,
Caracas (Venezuela)
Aos pés do Quartel da Montanha 4F , onde repousam os restos
mortais do ex-presidente Hugo Chávez, vivem homens e mulheres de ideias
radicais. É nessa região central de Caracas onde estão localizados os
bairros populares de La Piedrita e 23 de Enero,
considerados históricos pelo chavismo revolucionário.
Trata-se do território das
organizações conhecidas na Venezuela como coletivos
revolucionários, movimentos sociais armados e que desempenham um amplo
papel nas comunidades onde atuam – atividades sociais, políticas,
culturais, esportivas, auxílio na organização da economia local, até a defesa
em armas da Revolução Bolivariana.
A estimativa é de que existam
cerca de 80 coletivos na grande Caracas. Alguns deles fazem parte dos cordões
de segurança do palácio presidencial de Miraflores. É o caso do Coletivo
Catedral Combativa, cuja sede está a poucos metros do palácio, dentro de
sua zona de segurança.
"Revolução pacífica, mas não
desarmada"
O Brasil de Fato esteve
com coletivos e entrevistou com exclusividade alguns de seus
líderes mais conhecidos.
Entre eles está o veterano
Valentín Santana, líder do La Piedrita, o coletivo mais antigo da
Venezuela, com 34 anos de atividades.
Segundo Valentín, atualmente, a
principal tarefa dos coletivos revolucionários é a proteção de
suas comunidades contra possíveis ataques de grupos armados
vinculados à direita venezuelana, assim como contra as guarimbas – protestos violentos
liderados por opositores ao governo de Nicolás Maduro.
Santana afirma que o acirramento
do cenário político na Venezuela fez com os coletivos, que haviam entregado
armas ao governo em 2014, voltassem a armar-se. “Apesar de que entregamos
as armas em um ato com o presidente da República, no Quartel da Montanha, nos
vimos obrigados a retomar o uso das armas, porque nosso inimigo está melhor
armado que nós”, explicou.
Os coletivos afirmam que usam as
armas apenas em situações de emergência, que envolvem a segurança nacional.
Na maioria dos casos, informam, o arsenal de que dispõem fica
custodiado pelas Forças Armadas.
Isso porque os integrantes desses
grupos estão inscritos e organizados através das Brigadas
Bolivarianas, que é um dos cinco componentes da Força Armada Nacional
Bolivariana, além do exército, marinha, aeronáutica e a guarda nacional. Há
ainda outra parte dos coletivos, fora das Brigadas, que está autorizada pelo
Estado a custodiar as armas, sobretudo nas regiões onde é necessário maior
esquema de segurança.
O líder do coletivo La
Piedrita relata que setores mais radicais da oposição armaram grupos
irregulares para atacar os coletivos e os líderes sociais chavistas. Desde 2014
foram assassinados 14 líderes políticos do chavismo, o mais destacado deles foi
o deputado Robert Serra.
“Os grupos armados opositores
compraram fuzis, pistolas 9 mm ,
granadas. Estão bem armados. Não deixaram outro caminho que não fosse a
violência. Então estamos obrigados a nos defender, como o fizemos no passado”,
afirma Valentín.
Já o líder do coletivo Resistencia
y Rebelión, Jorge Navas, afirma que os grupos armados opositores contam
com pelo menos 300 "soldados", que controlam a parte alta do
território da capital venezuelana.
“Caracas é um vale e em todos os
corredores estratégicos, nas partes altas desse vale, a direita está armando
grupos paramilitares, para em momentos precisos atacar o processo bolivariano”,
frisa o líder do coletivo Coordinadora Simón Bolívar, Juan Contreras.
De acordo com Contreras, o
cenário tornou-se mais complexo nos últimos oito anos. “Depois de 2011,
passamos a ver coisas que na Venezuela não existiam: grupos paramilitares e
narcotraficantes controlando territórios, armados com fuzis. Trata-se de uma
delinquência fortemente armada. Quando ocorrem guarimbas, esses
grupos atuam sob orientação dos setores da direita”, ressalta.
"Esta é uma revolução
pacífica, mas não está desarmada", dizia o ex presidente Hugo Chávez. O
que se converteu em praticamente o lema dos coletivos armados, dispostos matar
e morrer por aquilo que eles acreditam: o ideal socialista. “Falar sobre as
armas na Venezuela não é tabu. As armas que estão na República Bolivariana da
Venezuela, do lado chavista, são para defender o pátria e a revolução”,
ressalta Valentín Santana.
Preparando-se para a guerra
As
reiteradas ameaças de intervenção militar por parte do governo dos Estados
Unidos contra o governo de Nicolás Maduro acenderam os alarmes,
sobretudo no setor chavista mais arraigado. Os integrantes da organização
cívico-militar Brigadas Bolivarianas estão realizando treinamentos militares,
além disso os próprios coletivos começaram a preparar-se para um possível
cenário de conflito armado contra exércitos estrangeiros.
Por isso, estão criando campos de
treinamento militar nos bairros populares para preparar toda a população.
O comandante da Frente de
Coletivos da Venezuelana, Alfredo González, integrante da Comissão de Defesa
acredita que os venezuelanos estão dispostos a enfrentar qualquer exército
invasor. “Estamos dispostos a defender nossa pátria, como nossa própria vida, e
com as armas, em perfeita união cívico-militar. Estamos convidando a todos, que
se alistem, porque a qualquer momento o império vai nos ameaçar e nós vamos dizer:
presidente, aqui está o povo em armas”.
“Estamos preparados para a hora
da invasão. Temos inclusive pessoas responsáveis de evacuar às crianças, temos
outras para resguardar às pessoas doentes, aos idosos. O bloqueio não está
dando o resultado que eles esperavam, então lhes resta a alternativa
militar. Estamos preparados para isso. Não tenha dúvida de que os gringos vão
receber uma tremenda lição desse povo. Nós não somos guerreiristas, mas também
não vamos deixar que nos destruam”, avisa Valentín, líder do coletivo da
comunidade La Piedrita.
"Somos 30 milhões de
habitantes e se tem algo que o império tem medo é de um povo organizado”, diz o
comandante de treinamentos com os coletivos", completa Alfredo
González.
Um olho no plantio, outro no
fuzil
“Joelho em terra, fuzil no ombro
e baioneta empunhada”, diz líder do coletivo Resistencia y Rebelión,
Jorge Navas. Ele afirma que o momento atual da Venezuela exige que essas
organizações tenham um olho na plantação de alimentos e o outro no
fuzil: “Aqui não podemos nos dar o luxo de estar descuidados. O império
diz que não vem [invadir a Venezuela] e nós temos que continuar preparados para
cuidar a paz”.
A Venezuela já enfrenta uma
guerra, mais especificamente uma guerra
econômica provocada pelo bloqueio de recursos do governo venezuelano no
exterior, que seriam destinados a importação de alimentos, medicamentos e peças
de reposição para carros e máquinas.
Nesse contexto de
escassez, muitos dos coletivos também estão dedicando ao plantio, em
hortas comunitárias, mas também na criação de animais fontes de proteínas.
No extremo sul da capital
venezuelana, no bairro Valle del Tuy, um coletivo homônimo é liderado pelo
agricultor José Cárdenas. Segundo ele, a principal tarefa política nessa
região, uma das mais pobres de Caracas, é a segurança alimentaria.
“Estamos preparados para
responder a qualquer cenário, tanto militar como organizativo. Temos produção
comunitária, uma plantação onde todos os dias colhemos frutas e verduras. Com
essa situação do país tivemos que voltar cultivar e criar peixe, gado, porco.
Temos que estar preparados”, enfatiza Cárdenas.
Luis Cortés, líder do
coletivo Catedral Combativa explica que há diversas formas de
atuação dos coletivos: “[Trabalhamos] na área da cultura, da organização
comunitária e, nesse momento em que vivemos uma guerra econômica, nos
encarregamos da produção de alimentos de primeira necessidade. Estamos
plantando e cultivando alimentos para atender a comunidade”.
Origem ligada à luta armada dos
anos 1960
Para entender como esses
movimentos sociais associaram armas com trabalho comunitário e social é preciso
voltar no tempo. Sua origem está vinculada às guerrilhas e movimentos políticos
insurgentes dos anos 1960, que optaram pela luta armada contra o governo
autoritário do presidente Rómulo Betancourt (1959-1964).
"Nascemos de uma necessidade
de nos proteger das forças repressivas dos governos da Quarta República
[período entre 1953 e 1999]. Perseguiam os revolucionários e nos torturavam.
Inclusive nos massacraram. Isso nos levou a estar mais unidos. Assim nascemos
como coletivo”, conta Valentín Santana, líder do coletivo La Piedrita,
fundado em 1985.
De acordo com Santana,
a expressão “coletivo” vem da necessidade de andar juntos, "em
coletivo, para poder mantermo-nos vivos”.
No bairro 23 de Enero, por
exemplo, ele estima que mais de 130 dirigentes políticos tenham sido
assassinados nos anos de “democracia” bipartidária.
Nessa época, existiam três
partidos na Venezuela: o social-democrata Ação Democrática, de centro-direita,
o social-cristão Coopei, que abrigava a burguesia mais conservadora, e o
Partido Comunista, que estava na ilegalidade. Os partidos Ação Democrática e
Coopei governaram o país por 51 anos, entre 1958 e 1999, revezando no poder a
cada mandato.
O líder do coletivo Coordinadora
Simón Bolívar, Juan Contreras, do bairro 23 de Enero conta um pouco
dessa história. “A esquerda na Venezuela tem duas origens principais. Uma delas
é o Partido Comunista da Venezuela [PCV], criado em 1931. A outra é o Movimento
Esquerda Revolucionária [MIR], que nasce na década de 1960, produto de uma
divisão do partido social-democrata Ação Democrática”, explica Contreras.
A maioria dos fundadores e
integrantes dos coletivos têm como origem política essas organizações. Tanto o
PCV como o MIR aderiram à luta armada nos anos 1960 e 1970. Em 1965, o PCV
saiu da luta armada porque considerava que havia sido derrotada.
Nesse processo há uma divisão
interna do partido de onde nasce o Partido da Revolução Venezuelana (PRV), que
tinha como braço armado a guerrilha Fuerzas Armadas de Liberación Nacional,
dirigida por Douglas Bravo. “Depois da morte de Ernesto Che Guevara, na
Bolívia, o ano de 1965, podemos dizer que o guerrilheiro mais conhecido nesse
momento era Douglas Bravo”, destaca Contreras.
No ano 1969 o MIR também passa
por uma divisão, dando origem a duas novas organizações políticas
armadas: Bandera Roja e Organización de Revolucionarios. As
duas atuavam na ilegalidade, mas mantinham braços legais.
A Organización de
Revolucionarios tinha como frente política legalizada a Liga Socialista,
cujo fundador e dirigente era Jorge Rodríguez, pai do atual ministro da
Comunicação e Informação, Jorge Rodríguez e da vice-presidente da República,
Delcy Rodríguez.
Jorge Rodríguez, o pai, morreu em
uma sessão de tortura, acusado de participar do famoso sequestro do empresário
norte-americano William Niehous, o mais longo sequestro político registrado
na Venezuela, com duração de três anos, entre 1976 e 1979. Essa também foi
a organização política em que o presidente Nicolás Maduro militou em sua
juventude.
Por outro lado, alguns dos
movimentos dessa época terminaram se aliando com a direita venezuelana. É o
caso do Movimiento al Socialismo (Mas), um braço do
MIR que havia se transformado em uma guerrilha, e da Bandera Roja. “Essas
duas organizações fazem parte, atualmente, setor armado da oposição”, afirma
Jorge Navas.
Chávez no poder
A maioria dos dirigentes dessas
organizações tinham vida política no bairro 23 de Enero, que se
tornou um ponto de resistência e luta subversiva.
“As guerrilhas estavam no campo,
mas também nas cidades. As guerrilhas urbanas estavam no 23 de Enero. A
esquerda sempre esteve presente no bairro mais pobres, devido às condições. Nós
que crescemos aqui crescemos em meio ao calor dos combates entre a força
pública e a guerrilha”, relembra Juan Contreras.
Mesmo durante os anos 1990, os
líderes políticos dessas organizações seguiam perseguidos. A chegada de Hugo
Chávez ao poder, em 1998, provoca um processo de readequação dos movimentos de
esquerda, dos coletivos e organizações populares de bairro.
Valentín Santana detalha como foi
essa reorganização. “Antes do comandante Chávez chegar ao poder vivíamos
clandestinos. Depois de eleito ele reconheceu a legalidade dos coletivos.
Passamos a integrar os Círculos Bolivarianos [organizações de base],
criar um partido revolucionário, criar comunas, conselhos comunitários, Comitês
Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), as Unidades de Batalha Hugo Chávez
(UBChs). Passamos a ser coletivos abertos e trabalhamos diretamente com a
comunidade”, relembra.
Mesmo na legalidade, os coletivos
seguem estigmatizados por parte da população. Segundo Santana, a direita
venezuelana, através dos meios de comunicação, busca a criminalizar a juventude
revolucionária. “Incomodamos porque estamos construindo outro modelo social,
que tem uma via ideológica forte. A Revolução Bolivariana é uma construção
social, coletiva, onde buscamos a maior soma de felicidade possível”, argumenta.
Edição: Rodrigo Chagas
Imagem: Líderes dessas
organizações afirmam que venezuelanos estão preparados para a resistência
contra possível invasão dos EUA / Foto: AFP
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