sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A NATO COMO POLÍCIA DE OPINIÃO



É necessário desarticular a carga de conteúdos verdadeiramente perigosos para a democracia e para a liberdade de expressão que esconde a queixa da NATO de manipulação nas redes sociais.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

Centro de Excelência de Comunicação Estratégica da NATO queixa-se de manipulação nas redes sociais. E quando o Centro de Excelência de Comunicação Estratégica da NATO se queixa só há que esperar uma intensificação das acções policiais de censura na internet, com o pretexto de que as redes sociais são incapazes de se regularem a si próprias. O cerco às opiniões divergentes da doutrina oficial atlantista e europeísta aperta-se e a NATO afina mecanismos policiais para que não haja desvios à opinião única.

A notícia passa quase despercebida, pelo que é necessário desarticular a sua carga de conteúdos verdadeiramente perigosos para a democracia e a liberdade de expressão. Os especialistas de manipulação de informação aglutinados no Centro de Excelência de Comunicação Estratégica da NATO, ou NATO StratCom, garantem que detectaram «buracos» nas redes sociais que poderiam ter permitido influenciar e manipular eleitores antes das eleições europeias de Maio. O que vale por dizer que certamente encontrarão agora mais «buracos» para envenenar eleitores na perspectiva de novas eleições gerais britânicas que, de facto, serão um novo referendo do Brexit; quem sabe ainda se os mesmos «buracos» não serão extensivos às eleições portuguesas de Outubro e por aí sucessivamente.

O NATO StratCom desconhece, em boa verdade, se os «buracos» detectados foram aproveitados para as eleições europeias. Só o Twitter terá facultado o acesso a um deles, designado Vkontakte1  e de origem russa (obviamente), que por acaso «não foi usado extensivamente», segundo Janis Sarts, o chefe dos censores militares concentrados em Riga.

Um coro de lamentos

O trabalho sobre a NATO e a manipulação da informação, posto a circular pelo website EUObserver, é um coro de lamentos sobre a suposta incompreensão que os polícias do NATO StratCom encontram nas redes sociais e nos gigantes informáticos Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube, Google e por aí adiante; o que os torna ineficazes quando se trata de impedir a criação dos «buracos» por onde se infiltrem informações e opiniões que contrariem as doutrinas oficiais do atlantismo e do europeísmo, definidas dogmaticamente como «valores universais».

Rolf Fredheim, identificado como o «cientista principal» da associação censória policial, lamenta, por exemplo, o «conflito de interesses» que dita a suposta inactividade do Facebook em matéria de controlo de opiniões. Uma vez que as receitas financeiras da rede social são ditadas pelo número de membros activos, então não há que esperar que esta faça auto-regulação de frequentadores, constata Fredheim. O que leva facilmente à conclusão de que a NATO irá tomar medidas para que a «regulação» se execute por outras vias e os «buracos» se fechem2.

«Não conhecemos os dados sobre a actividade» desenvolvida através dos supostos «buracos», mas «sabemos que houve», assegura Janis Starts. Valendo isso como uma verdade absoluta que justificará qualquer acção para corrigir a situação.

Um patamar superior de censura

A corrida ao controlo das opiniões divergentes da doutrina oficial é vertiginosa e, percebe-se agora, filtrada através de uma rede hierárquica de organismos no topo da qual estão os militares da NATO.

Como é do conhecimento geral, a União Europeia tem a sua Task Force de Informação Estratégica em funcionamento, também com o objectivo declarado de conter a «desinformação», isto é, a informação que se desvie da que tem a chancela oficial.

Naturalmente, o que imediatamente atrás ficou escrito é um exemplo de prática desinformativa porque a União Europeia e a NATO, segundo os seus axiomas, respeitam a liberdade de expressão e apenas combatem a manipulação efectuada através da Rússia.

Para que conste, por exemplo, é um exercício de propaganda russa dizer que a NATO destruiu a Líbia e fomenta a guerra na Síria; ou que o tráfico de droga explodiu no Afeganistão desde a invasão da NATO; ou que o golpe de 2014, patrocinado pela NATO e a União Europeia, fomentou a ascensão do nazismo na Ucrânia.

O que, na prática, equivale ao maniqueísmo em que se instalaram a União Europeia e a NATO: quem discorda das suas práticas concorda automaticamente com os russos – um conceito restritivo da liberdade de opinião próprio de quem se orienta por tentações ditatoriais.

O que se observa agora através das queixas do NATO Stratcom veiculadas pelo EUObserver é que os militares puxam dos galões e chamam a própria União Europeia à ordem, por ser demasiado contemporizadora com as redes sociais. Nada mais natural: a União Europeia é apenas o braço político da NATO, sobretudo nestes tempos em que a política se faz cada vez mais através da guerra.

De facto, a Task Force de Comunicação Estratégica da União Europeia tem acordos com várias redes sociais em matéria de fact-checking, como se Bruxelas delegasse nestas entidades parte da acção censória. E é assim que temos o Facebook em Portugal fiscalizado, desde 25 de Abril deste ano, pelo aparelho de um website designado Observador, que supostamente assegura a doutrina oficial mesmo sendo alinhado com a extrema-direita. O caso funciona como uma bússola fiável sobre o sentido em que funcionam estes mecanismos.

O NATO StratCom, porém, não tem a mesma confiança nesta maneira de controlar opiniões e não considera, por outro lado, que «o sistema de alarme rápido» montado ao nível de Bruxelas proporcione os resultados necessários. Tão pouco valida os sistemas montados pelas próprias redes sociais para impedir a suposta manipulação de informação.
Os censores de Riga têm esta posição baseada em experiência própria – é também por isso que a NATO vive em manobras militares permanentes.

No ano passado, segundo o trabalho publicado por EUObserver, uma equipa de especialistas de manipulação do NATO StratCom conseguiu enganar soldados da Letónia em exercícios através da aplicação de encontros íntimos Tinderconvencendo-os a divulgar as suas posições no terreno e a criar um grupo falso no Facebook. Segundo os promotores da experiência, a rede social demorou duas semanas a detectar a situação, sendo mais do que tempo para perder uma guerra.

Dizem os militares da central censória de Riga que são obrigados a seguir os metadados para detectar as origens da desinformação e liquidá-la no ovo. Convenhamos que, em bom rigor, o NATO Stratcom não precisa da auto-regulação das redes sociais para nada. Dar-lhes-ia, provavelmente, menos trabalho terceirizar a fiscalização, mas com o controlo das informações privadas de entidades e cidadãos alcançado pelas agências de espionagem dos Estados Unidos não haverá segredo que lhes escape. A grande irmandade universal da espionagem da vida pública e privada, que nos faz ver um agente russo em cada esquina e um manipulador chinês em cada semáforo, tem todos os meios necessários ao seu dispôr para filtrar opiniões.

O coro de queixas emitido pelo NATO StartCom é uma espécie de exercício de vitimização abrindo passagem a um grau superior de policiamento de opiniões e consciências tendo em conta a envergadura do «inimigo» e as cumplicidades que este consegue.

A internet é ainda uma espécie de última fronteira da liberdade de expressão e opinião, praticamente já inexistente no circo mediático convencional. E fronteiras, como se sabe, não são obstáculos que travem a NATO e os seus mecanismos de excelência.

1.Trata-se, muito simplesmente, de uma rede social de contactos do tipo Facebook, mas em língua russa, muito popular na Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.

2.Rolf Fredheim parece ser capaz de medidas suficientemente eficazes para garantir a ausência de contraditório na internet. Uma breve pesquisa no Google por “Rolf Fredheim, NATO” não devolve qualquer artigo com uma visão minimamente crítica das ideias de Fredheim. O máximo que se consegue obter – se calhar por constituir uma publicação da Cambridge University Press – é a referência a um artigo da investigadora Julie Hemment intitulado «Red Scares and Orange Mobilizations: A Critical Anthropological Perspective on the Russian Hacking Scandal» (2017). Daí até à piada do primeiro de Abril desse ano do ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, dada em nota no referido artigo, com a respectiva ligação, vai um curto mas saboroso passo, que exemplifica o cenário de histeria informativa vivido no meio atlantista dos mainstream media.

Imagem: La República, Perú

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