Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
Julga que há leis, diretivas e
regulação no setor das telecom? Esqueça. Tanto faz haver como não: as
operadoras construíram todo um sistema para contorná-las - e ninguém, a começar
pela ANACOM, as impede de nos fazer a vida num inferno.
Quem alguma vez tenha tentado
cancelar um contrato com uma operadora de comunicações sabe do martírio a que
se propõe. Não interessa para nada o que dizem as leis e as resoluções do
regulador (a ANACOM); trata-se de enfrentar um sistema que foi montado
para aquilo a que se dá no meio o nome de "retenção", e que passa por
criar um sem-número de dificuldades e exigências absurdas de modo a tentar que
o cliente soçobre perante elas e se conforme com manter o serviço - até
porque geralmente o está a cancelar no final de um período de fidelização em
que beneficiou de alegados "descontos" e "ofertas
promocionais" e quando esse período acaba, se não conseguir logo cancelar
o contrato, será onerado por contas muito mais avultadas.
O extraordinário de todo o
processo é desde logo prefigurado pela terminologia imposta pela operadora: os
clientes não cancelam, fazem "pedidos de cancelamento". O que indica,
claro, que a operadora pode "não aceder".
Imagine isto aplicado a um
contrato de arrendamento: o inquilino diz ao senhorio "olhe, desculpe,
tenho de me mudar, portanto vou deixar a casa no dia xis". E o senhorio,
cenho franzido, responde: "Mas quer deixar a casa porquê? Ofereceram-lhe
uma renda melhor, foi? De quanto? Ah, não quer dizer? Então, mande-me isso por
escrito que logo vejo se o deixo sair."
Acresce que se no caso dos
contratos de arrendamento os inquilinos podem rescindi-los em qualquer altura,
mesmo que essa altura não coincida com o termo da duração do contrato (o que
pode ser muito pouco conveniente para o senhorio e causar-lhe prejuízo), sem
que por isso sofram qualquer penalização, só tendo de avisar, por escrito e
carta registada, com a antecedência prevista na lei, as operadoras de
comunicação dão-se ao luxo de impor obrigações indemnizatórias aos clientes
caso estes queiram cancelar durante um período de fidelização e, mesmo quando
não há fidelização, arrogam-se determinar um período de franquia.
Isso mesmo aconteceu, na semana
que passou, a um cliente sem fidelização: entrou em contacto com a MEO a 27 de
agosto a requerer o cancelamento e "agendaram" o desligar do serviço
para um mês e meio depois, ou seja, 9 de outubro. Com que justificação? Nenhuma
foi dada durante a hora em que a pessoa esteve a exasperar-se ao telefone, a
repetir vezes sem conta a mesma coisa a interlocutores diferentes - um clássico
do livro de estilo de "retenção" das operadoras. Porque sim: porque
pode.
E o cliente, perante isto, que
pode fazer, além de uivar à lua e dar pontapés em coisas? "Reclamar."
É isso mesmo que responde quem atende a linha grátis da ANACOM: "É muito
importante que faça uma reclamação para a ANACOM e no livro de reclamações online da
operadora, porque a operadora tem um prazo para responder e todas as
reclamações são examinadas pela ANACOM."
Certo, pode-se sempre reclamar.
Mas e o tempo, energia e, não esquecer, dinheiro que se perde no processo? Por
que raio é preciso dizer à ANACOM o que esta está farta de saber, ou seja, que
as operadoras estão sistematicamente de má-fé e infringem sistematicamente as
regras? Tanto que a reguladora o sabe que aconselha os consumidores a fazerem
pedidos de rescisão por escrito, por carta registada ou presencialmente numa
loja "para que se fique sempre com uma prova assinada e carimbada de que
se fez o pedido naquela data".
Isto apesar de a ANACOM ter, em
resolução de 9 de março de 2012, estabelecido que as operadoras não
podem exigir aos clientes, para cancelamento dos contratos, documentos e
procedimentos que não exigem para os celebrar. O que implica que estes possam
cancelar por telefone ou via portal da empresa, desde que exista um sistema que
permita validação de identidade, contratos que foram celebrados por telefone.
Ou seja, a ANACOM impôs às operadoras que aceitem cancelamentos de contratos
por essas vias, mas vai avisando os consumidores de que o melhor é terem um
comprovativo escrito. Ou seja: assume que as pessoas podem ser ludibriadas. É
como se a reguladora aceitasse ser essa a natureza destas empresas: violar a
lei e as regras.
E a lógica, já agora. Por exemplo
a MEO permite que na área de cliente do seu portal se possa, mediante a tal
validação de identidade por login e password, fazer o
"pedido de cancelamento" através de um formulário que se preenche
online. Fantástico, pensa o cliente: até que enfim uma coisa bem feita.
Mas quando abre o formulário
descobre que, além de propositadamente chato de preencher - tem de nele se
colocar não só o número de cliente e de conta, que vêm na fatura, como as
identificações dos serviços em causa (que só se encontram no portal, e com
dificuldade), e assinalar o motivo pelo qual se deseja o cancelamento de entre
15 opções -, no final há um campo para "assinatura".
Um formulário online com
espaço para assinatura? Claro: para que o cliente tenha de o imprimir, assinar
e de seguida fazer um scan do mesmo (o que implica ter impressora e scanner)
para o "carregar" na tal área de cliente à qual só pode aceder com
validação de identidade.
Faz sentido, não faz?
"Nenhum", responde a ANACOM através da sua linha de atendimento.
"À partida não fará qualquer sentido que seja assinado um formulário
digital nessas circunstâncias." Então por que motivo não exigem à MEO que
deixe de impor essa condição? "Não conhecemos os formulários",
responde o atendimento da ANACOM.
Nesta altura, a pessoa já está a
rir para não chorar. A ANACOM, que estabelece as regras e fiscaliza o seu
cumprimento, não conhece os formulários de cancelamento de serviço das
operadoras? Não conhece as exigências? Não sabe que perante a submissão de
um formulário sem assinatura a MEO recusa cancelar o contrato, exigindo a assinatura
E cópia do Cartão de Cidadão - uma exigência que legalmente não pode fazer?
Pelos vistos, não. "Mas faça reclamação", repete o atendimento
da ANACOM, já num tom algo entediado.
É pois com isto que temos de nos
haver: empresas todo-poderosas que formam os seus funcionários (ou
"colaboradores", como gostam de dizer) para tornar qualquer tentativa
de cancelamento um martírio e que, cereja no topo do bolo, nos fazem sentir mal
por perder a cabeça com pessoas mal pagas e as mais das vezes precárias para quem
somos um prémio. E um regulador que está ali sentadinho, sossegadinho, à espera
de que a gente reclame. É também nisto, na forma como lida com empresas
que se arrogam fazer do abuso lei e dos cidadãos seus súbditos, e não apenas no
funcionamento dos tribunais, que se afere a qualidade de um Estado de direito -
e não é exatamente bom o prognóstico.
*Jornalista
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