Jorge Rocha* | opinião
1. Não, não sou um masoquista.
Poderia parecê-lo se me surpreendessem a ler ou a ver coisas impensáveis, mas
convirá reconhecer que de quase todas consigo justificar o proveito.
Vem isto a propósito de, há um
par de dias, ter-me disposto a ver o telejornal conduzido pelo Orelhas.
Eu sei: o tipo é abominável, não
tendo ponta por onde se lhe pegue. E ridículo se considerarmos as suas
pretensões a ás da literatura, que só a ele convencem, porque quem arriscou
ler-lhe as estórias andou entre o vómito e a barrigada de riso.
O resultado veio a contento da
expetativa: passou o genérico e ei-lo a irromper com a voz de quem anuncia
catástrofes, descrevendo o país como um impressionante pasto de chamas. Passa a
palavra aos repórteres nos locais e o resultado é o oposto do por ele descrito:
sim, tinham acontecido alguns incêndios aqui e acolá, mas nem se assinalavam
perdas de vidas humanas, nem sequer estas terão sido inquietadas o bastante
para que se justificasse o tom dramático do pivot televisivo.
Unanimemente os repórteres iam repetindo que as chamas, ou já estavam extintas,
ou em fase de rescaldo.
Frustrado na possibilidade de
espalhar o pânico nos espectadores eis que passa para outro drama, outra
tragédia: um avião tinha caído no centro do país, quando combatia incêndios.
Ora logo viu-se obrigado a corrigir o lapso, porque tratara-se de um
helicóptero e nenhuma vítima havia a assinalar.
Nessa altura já estava ciente de
que nada no figurão mudara para melhor desde que me sujeitara a ouvi-lo e mudei
de canal. Mas dá sempre para questionar o que falta para declará-lo inepto para
a função e recambiado para casa dando-lhe disponibilidade para dedicar-se aos
seus presunçosos romances?
3. Não tenho ponta de simpatia
por Macron, desleal para com o Partido Socialista, que lhe deu acolhimento como
ministro, mas por si defenestrado quando, eivado de ambições presidenciais,
fundou um partido alternativo com que tem (des)governado a França. Apesar de
reconhecer que, acaso morasse no Hexágono e fosse eleitor, teria votado nele...
mas apenas para evitar a vitória de Marine Le Pen. Na prática, ele
tem procurado concretizar uma política de salvaguarda dos interesses
capitalistas, que se revelam incompatíveis com os da maioria da população.
Lamente-se que os mais explorados
e abandonados estejam iludidos nas virtudes da extrema-direita em vez de
devolverem a força política imprescindível às esquerdas para que voltem a
retomar os valores e objetivos da Revolução de 1789. Mas Macron vai provando do
seu próprio veneno: não só em Paris, mas também noutras grandes cidades, os
candidatos oficiais do seu partido contam com outros que, a ele vinculados, não
aceitam as escolhas dos aparelhos.
Os macronistas chamam traidores
aos competidores sem o seu aval. Afinal o carreirismo político, que apontavam
aos partidos tradicionais, depressa tomou conta das hostes do fundado pelo
ainda presidente francês.
4. Há quem tenha grandes azares
na vida. O catalão que decidira plantar cannabis no terraço do
seu prédio deveria estar feliz com a habilidade de ter a proibida cultura mesmo
nas barbas dos polícias, que passavam amiúde pela sua rua. Até ao
dia em que a Volta à Espanha chegou à cidade, as câmaras de televisão tanto
acompanharam a corrida ao nível do solo e a partir de cima com recurso a
helicópteros dando o ensejo aos polícias de descobrirem a marosca. Quase por
certo agentes apreciadores do desporto velocipédico.
O ousado agricultor está
atualmente atrás das grades a lamentar-se dos excessivos recursos investidos
pelas televisões para darem conta dos dotes de uns quantos fulanos a andarem
montados nas suas bicicletas.
5. Melhor sorte teve Maurice, um
galo da ilha de Oleron, na costa atlântica francesa, a quem os vizinhos
pretendiam que o tribunal proibisse de continuar a assombra-los todas as
auroras com o volumoso canto, porventura obrigando a proprietária a silencia-lo
à conta de uma eventual cabidela.
O tribunal a que recorreram não
lhes deu razão e, pelo contrário, obrigaram-nos a pagar mil euros de
indemnização à dona do réu a título de compensação por danos à sua merecida
tranquilidade.
Dias atrás escrevia aqui sobre um
vizinho que costuma chamar a polícia para queixar-se de um cão da vizinhança,
que ladra incessantemente quando dá na rua com quem não conhece.
Maurice e esse competente
vigilante urbano têm o azar de terem por vizinhos quem não quer compreender que
um galo tem de cantar e um cão de ladrar...
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