José Sócrates | Expresso | opinião
Neste artigo para o Expresso,
José Sócrates ataca o Ministério Público pelos casos que rebentam em cima de
campanhas eleitorais e acha que há motivações políticas para o conhecimento da
acusação de Tancos. O ex-líder socialista critica quem se justifica com
"isso é lá da justiça", mas também defende António Costa contra Rui
Rio: "O ataque ao primeiro-ministro pode ser político, mas é baseado no
julgamento prévio do antigo ministro da Defesa", escreve.
1.
Para ir direto ao assunto,
considero que a apresentação da acusação judicial de Tancos tem uma evidente e
ilegítima motivação política. Não só pelo momento escolhido – No meio da
campanha eleitoral –, mas, principalmente, pela forma como o Ministério Público
orientou a sua divulgação pública. O truque, desta vez, consistiu basicamente
em apresentar nas televisões a prova – uma mensagem do antigo ministro para um
deputado na qual afirma que “já sabia” . Todos os jornalistas foram atrás : “já
sabia” – eis a smoking gun. Todavia, lida toda a mensagem, rapidamente nos
apercebemos DE que o ministro diz que já sabia da recuperação das armas e não
que sabia da forma ilegal como elas foram recuperadas. A mensagem nada prova.
Não obstante, isolar aquelas duas palavrinhas permitiu o formidável passe de
mágica que contaminou toda a conversa posterior. A operação chama-se “spinning”
e constitui hoje uma especialidade da nossa política penal.
2.
A partir daqui, nem direito de
defesa, nem presunção de inocência, nem tribunais. Eis ao que chegou esse poder
oculto, subterrâneo e quase absoluto que resulta dessa extraordinária aliança
entre procuradores( alguns) e jornalistas. A primeira vítima é o visado, é
certo. Mas, se tentarmos ver um pouco mais longe, as próximas vitimas serão os
juízes. O seu papel na justiça penal caminhará para a irrelevância. Afinal, já
não precisamos deles: o ministério público investiga, o ministério público
acusa, o ministério público julga – tudo isto nos jornais e nas televisões, seu
terreno de eleição.
3.
O momento da divulgação não é
inocente, não. Vejo para aí o álibi de que haveria um prazo de prisão
preventiva que se esgotava. Fraco argumento. Ainda que mal pergunte, não é
princípio geral que, em regra, o cidadão tenha o direito de aguardar o seu
julgamento em liberdade? Já nos esquecemos de que a prisão preventiva é uma
medida extraordinária? Já nos esquecemos que passar um ano em prisão preventiva
sem acusação é uma violência que a maior parte dos países desenvolvidos não
aceita? Já nos esquecemos que essa medida deveria ser reservada apenas a
matérias de especial complexidade? A infeliz resposta é que todos estes
princípios jurídicos parecem longínquos e ultrapassados. Os tempos que vivemos
são de normalização do abuso institucional. Acresce que, com tanto tempo para
investigar e acusar, é difícil encontrar razões para o não terem feito antes da
campanha. O que resta, pelas regras da experiência comum que tanto gostam de
invocar, é que queriam que a acusação tivesse exatamente o efeito político que
teve.
4.
Finalmente, os dois líderes
políticos em campanha. Um deles produziu o momento mais singular de toda a
campanha afirmando com coragem que a democracia não convive com julgamentos de
tabacaria. Um novo acorde que teve o impacto de tudo aquilo que se ouve pela
primeira vez . O outro, com esmeradíssima prudência, tratou o caso como assunto
de intendência – isso é lá com a justiça. Como se do outro lado de toda esta
conversa não houvesse pessoas reais. Como se não estivesse a falar de direitos
individuais, de garantias, de Constituição. Como se o direito democrático não
fosse, no que é essencial, a imposição de limites ao poder estatal.
5.
Uma semana depois a situação
inverte-se : o primeiro decide atacar o primeiro-ministro dizendo que, se não
sabia é grave e, se sabia, mais grave é ainda. Esta afirmação só se percebe se
o próprio partir do principio de que o ministro da defesa sabia, isto é, que
ele é culpado. O ataque ao primeiro ministro pode ser político, mas é baseado
no julgamento prévio do antigo ministro da Defesa. Em boa verdade, o que fez
foi condenar sem ouvir a defesa e sem esperar pelo veredicto de um juiz. Por
sua vez, o primeiro ministro, indignado, declara o óbvio – a declaração encerra
uma vergonhosa condenação pública antes de qualquer julgamento.
6.
Eis no que nos tornámos : em
2005, foi o Freeport; em 2009, as escutas de Belém; em 2014, a operação marquês,
agora foi Tancos que se seguiu à espetacular operação de buscas e apreensões a
propósito de um concurso de golas para uso em incêndios e que juntou duzentos
polícias, vários procuradores e o juiz do costume. Tudo isto, evidentemente,
devidamente coberto pelas televisões, avisadas com antecedência. A violação do
segredo de justiça é um crime que o Estado reserva para si próprio. É isto, e
julgo que não é preciso fazer um desenho.
Ericeira, 28 de Setembro de 2019
José Sócrates
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