País, com PIB per capita sete
vezes menor que o dos EUA, conteve o coronavírus. Na rejeição ao
neoliberalismo, a explicação central. Agora, Pequim age para exercer liderança
global. Washington tentará fazer valer força militar e financeira
Ainda é cedo para mensurar o
impacto que a pandemia do vírus Covid-19 causará em todo o globo. Em termos de
saúde pública e da vida de milhões de pessoas, os impactos já são evidentes,
com a expansão do contágio alcançando diversos países e o número de mortes
aumentando[i].
Com relação aos impactos
económicos, estes são mais difíceis de mensurar no presente momento. Ainda
assim, levando em conta o ponto de onde partimos, o futuro é bastante
desanimador.
Mesmo após mais de dez anos desde
a crise de 2008, as taxas de crescimento económico mundiais não tinham se
recuperado completamente. O baixo crescimento suscitava debates acerca de uma
possível “estagnação secular”[ii] e
de características do capitalismo contemporâneo que acabavam por adiar a
solução da crise, como “a inflação; […] o endividamento do Estado; […] a
expansão dos mercados de crédito privados; e […] a compra de dívidas de Estados
e de bancos pelos bancos centrais”[iii].
Alguns alertavam para a existência de uma crise de superacumulação, marcada
pela contínua expansão dos instrumentos de acumulação financeira[iv].
Diante da crise, a insistência
dos governos de diversos países na adoção de políticas de austeridade, já nos
colocava em uma situação de baixo crescimento, concentração de renda e baixos
níveis salariais.
O cenário de crise manifestava-se
também no acirramento das disputas interestatais, através da postura
nacionalista de governos (como o caso da Inglaterra com o Brexit), das tensões
entre EUA e Irão, além da contínua guerra comercial entre Estados Unidos e
China.
Diante desse cenário, a pandemia
do Covid-19 pode provocar uma crise profunda na economia mundial, com
consequências sociais difíceis de prever. No centro desse complexo debate sobre
as consequências da pandemia, me parecem fundamentais dois aspectos, diferentes
mas ligados entre si: primeiro a discussão sobre o papel do Estado e as
controvérsias do modelo neoliberal; segundo, a forma como a China vem lidando
com a pandemia e sua estratégia global. Falarei aqui sobre o segundo aspecto,
na tentativa de ajudar no debate sobre o primeiro.
A China foi o primeiro país a
registar o contágio do Covid-19. Em novembro de 2019 ocorreu o primeiro caso[v] em
Wuhan, província de Hubei. Até 15 de dezembro, o número total de infecções era
27 e até 20 de dezembro já havia 60 infectados. Em 30 de março a China
registou 81.470 casos e 3.304 mortes.
Uma série de controvérsias
apresentou-se, a partir do surgimento do vírus na China, entre elas: o episódio
em que o governo chinês teria controlado informações sobre o vírus, silenciando
a denúncia feita pelo médico Li Wenliang, que depois acabaria falecendo pelo
Covid-19; e a campanha realizada pela mídia ocidental acusando a China de ser
responsável pela pandemia global, ressoando em um ataque de xenofobia e
racismo, com a divulgação de vídeos e acusações sobre hábitos alimentares e
sanitários chineses[vi].
Após o surto inicial e as
controvérsias sobre a origem da crise, a China começa um programa amplo de
contensão da pandemia. Segundo o Relatório da Missão Conjunta OMS-China sobre
Doença de Coronavírus 2019 (COVID-19)[vii] “diante
de um vírus anteriormente desconhecido, a China lançou talvez o esforço mais
ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças na história”.
Quais foram estas medidas? Como
elas podem ser entendidas dentro do modelo de Estado e economia da China?
Segundo Relatório da Missão
Conjunta OMS-China, após a detecção de um conjunto de casos de pneumonia de
etiologia desconhecida em Wuhan, o Partido Comunista da China (PCC), Comité
Central e o Conselho de Estado lançaram a resposta nacional de emergência. A
partir daí foram criados dois grupos para coordenar os esforços de controle do
vírus. Seus nomes, em inglês, são: “Central Leadership Group for Epidemic
Response” [Grupo de Liderança Central para Resposta à Epidemia] e “Joint
Prevention and Control Mechanism” [Mecanismo Conjunto de Prevenção e Controle].
As medidas de prevenção e
controle foram implementadas rapidamente, desde os estágios iniciais em Wuhan e
outras áreas-chave de Hubei até o plano nacional. As medidas adotadas podem ser
divididas em três fases:
Na primeira fase, de início do
surto, a principal estratégia esteve focada na prevenção da exportação de casos
de Wuhan e outras áreas prioritárias da província de Hubei. O mecanismo de
resposta foi iniciado com envolvimento multissetorial em medidas conjuntas de
prevenção e controle. Mercados foram fechados e esforços feitos para
identificar a fonte zoonótica. A formação epidêmica foi notificada à OMS em 3
de janeiro e sequências genéticas inteiras do COVID-19 foram compartilhadas com
a OMS em 10 de janeiro. A partir daí, protocolos para diagnóstico de COVID-19 e
para tratamento foram formulados, além do gerenciamento de contatos próximos de
pessoas contaminadas e aplicação de testes laboratoriais.
Na segunda etapa, durante a
segunda fase do surto, a principal estratégia foi reduzir a intensidade de
epidemia e retardar o aumento de casos. Em Wuhan e outras áreas prioritárias da
província de Hubei, o foco era o tratamento ativo de pacientes, a redução de
mortes e a prevenção de exportações. Em outras províncias, o foco estava na
prevenção de importações, restringindo a propagação da doença e implementação
de medidas conjuntas de prevenção e controle. Nacionalmente, os mercados de
animais silvestres foram fechados e as instalações de criação de animais em
cativeiro, isoladas. Em 23 de janeiro, estritas restrições de tráfego e um
cordão sanitário foram estabelecidos em torno de Wuhan e municípios vizinhos,
impedindo efetivamente que pessoas infectadas se movessem para o resto do país.
Restrições de viagens foram impostas em 14 cidades próximas a Wuhan na
província de Hubei[viii].
Nessa fase o protocolo para
diagnóstico, tratamento e prevenção e controle de epidemias foram aprimorados;
o isolamento e o tratamento dos casos foram reforçados. Foram tomadas medidas
para garantir que todos os casos fossem tratados e contatos próximos fossem
isolados e colocados sob observação médica. Segundo a OMS, a China tem uma
política de identificação meticulosa de casos e contatos para o COVID-19. Em
Wuhan, cerca de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas
por equipe, rastreavam dezenas de milhares de contatos por dia.
Além das medidas de controle de
tráfego e controle da capacidade de transporte para reduzir o movimento de
pessoas, informações sobre a epidemia e medidas de prevenção e controle foram
divulgadas regularmente. A alocação de suprimentos médicos foi coordenada e
novos hospitais foram construídos, como o Hospital Huoshenshan. Camas de
reserva foram usadas e instalações foram redirecionadas para garantir que todos
os casos pudessem ser tratados, além de esforços para manter um fornecimento
estável de mercadorias e seus preços para garantir o bom funcionamento da
sociedade. (Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease
2019 (COVID-19), 2020).
A terceira etapa do surto
procurou controlar a epidemia mediante o controle e prevenção. O foco foi no
tratamento dos pacientes e na interrupção da transmissão, com ênfase em medidas
para implementar plenamente o teste e prevenção de disseminação em lugares
públicos. Para isso novas tecnologias foram aplicadas, como o uso de big
data e inteligência artificial (IA) para fortalecer o rastreamento de
contatos e o gerenciamento de populações prioritárias. Políticas de
expansão dos seguros de saúde foram promulgadas, com pagamentos de seguros e
liquidação e compensação financeira.
Em março, a curva de contágio na
China começa a se estabilizar. Em 7/3, não foram registados novos casos na
China. Casos novos surgem, mas importados de fora, fazendo o país reforçar o
controle da entrada de estrangeiros. O número de mortes pelo contágio caiu; em
28/3, registaram-se apenas 5 mortes no país.
Como foi possível esta resposta
chinesa e o sucesso em termos de redução do contágio?
A discussão sobre as medidas
adotadas pela China certamente ainda deverá ser aprofundada. Para iniciar esse
debate parece fundamental apontar um aspecto essencial, qual seja, a capacidade
do Estado chinês em responder ao desafio da pandemia. A trajetória chinesa das
últimas décadas esteve amplamente ligada “à flexibilidade adaptativa diante das
recorrentes transformações da conjuntura global – como num constante esforço de
“gestão planejada do imprevisível”[ix].
Nesse sentido, assim como em diversos momentos de sua trajetória, a China
procurou adaptar-se aos desafios, a partir da capacidade de planejamento
estatal, que sempre esteve no centro de sua trajetória, mesmo após a abertura
económica dos anos 80.
Assim, ainda que convivendo com
uma série de contradições (como a desigualdade de renda entre a população, a
degradação ambiental, a ascensão de uma burguesia cada vez mais forte) diante
da pandemia, a capacidade de planeamento do Estado e o controle da gestão de
sua economia, inclusive em termos fiscais, certamente foram essenciais para
responder aos desafios de expansão do atendimento aos pacientes infectados,
disponibilização de testes, criação de novos postos de saúde, ampliação dos investimentos
em infraestrutura como construção de hospitais, além da ação coordenada de
gestão da crise, como o controle da mobilidade de pessoas e tráfego.
Valer ressaltar um aspecto
importante nessa discussão: a atual estrutura do sistema de saúde na China. O
país enfrentou um desmonte considerável no sistema de saúde que vigorou durante
o período socialista, sob Mao Tsé-Tung[x].
A partir das reformas de Deng Xiaoping, no final dos anos 70, diversos direitos
sociais foram atingidos, inclusive a oferta de saúde pública. O descuido com a
saúde pública ficou evidente com a epidemia de SARS em 2003, quando a China
enfrentou o desafio semelhante à pandemia atual.
Mas a epidemia de SARS marcou um
ponto de inflexão da política governamental chinesa ligada a saúde, e desde
então o governo vem procurando ampliar o sistema de saúde, na esteira da
construção da chamada “sociedade harmoniosa” empreendida pelo então presidente
Hu Jintao. Ainda que não tenha um sistema universal de saúde, e seu modelo seja
baseado em seguros de saúde, a cobertura foi sendo ampliada ao longo dos anos
2000, de forma a atender a maioria da população. Hoje existem três principais
seguros sociais de saúde vigentes na China, que cobrem quase a totalidade da
população. Seus nomes em inglês são Urban Employee Basic Medical Insurance
(UEBMI), para trabalhadores formais urbanos, o New Rural Cooperative Medical
Scheme (NRCMS), (para residentes rurais), e o Urban Resident Basic
Medical Insurance (URBMI), (para trabalhadores não formais). O sistema tem
muitos problemas do ponto de vista de não corresponder a um sistema universal e
até mesmo reforçar a desigualdade, mas houve uma melhora importante no
fornecimento de saúde na China, o que também deve ser considerado quando se
pensa em como o Estado chinês conseguiu responder a epidemia do Covid-19.
Apesar da bem sucedida resposta
da China à epidemia, não se conhecem ainda os impactos da crise. Em 2019 o país
já vinha apresentando taxas de crescimento menores. Os primeiros dados após a
pandemia mostram um cenário bastante complicado. Houve uma queda dos lucros
industriais de 38,3% nos dois primeiros meses de 2020. O investimento concluído
por empresas estatais caiu 23,1% em fevereiro. A taxa de crescimento acumulado
do valor agregado da indústria caiu 13,5%. A taxa de desemprego urbano aumentou
de 5,3% em janeiro para 6,2% em fevereiro[xi].
Nos anos mais recentes, a taxa de
crescimento menor da economia chinesa refletia, para além dos efeitos da crise
de 2008, uma mudança do perfil do crescimento. Apesar do Investimento
permanecer sempre alto como proporção do PIB, observa-se uma maior
convergência, principalmente desde 2010, entre as taxas de expansão do PIB, do
investimento e do consumo das famílias, o que sinaliza para o fato de que o
consumo das famílias começava a avançar em paralelo ao investimento. Ou seja, a
China estaria tentando adequar seu crescimento a partir do fortalecimento do
mercado interno, aliado à modernização da indústria via programas como o China
Manufacturing 2025.
Nesse sentido, é possível que a
China enfrente uma queda brusca de sua economia, mas o futuro dependerá de como
ela responderá à própria crise, em termos de ações estatais, políticas de
manutenção investimento, do emprego e do mercado interno. Essa resposta será
fundamental não apenas para a dinâmica do crescimento chinês, mas de todo o
mundo, além dos impactos em termos políticos, na medida em que diante da crise
a resposta neoliberal de países ocidentais tende a ser desastrosa.
Finalmente outro aspecto
fundamental com relação a China e a pandemia diz respeito a sua projeção
global.
Até o momento, os Estados Unidos
têm fracassado na resposta global à crise[xii],
com relação a capacidade de fornecer bens públicos globais e à vontade de
coordenar uma resposta global. A pandemia estaria assim testando os elementos
da liderança dos EUA. Até agora Washington estaria falhando e ao mesmo tempo
estaria se abrindo uma espécie de vácuo global.
Por outro lado, a China está se
movendo, aproveitando esse vácuo e buscando posicionar-se como líder global em
resposta a pandemia.
A China vem fortalecendo a
narrativa de que está disposta a ajudar o mundo a combater a pandemia. Nas
últimas semanas, o governo chinês forneceu assistência material a diversos
países, incluindo máscaras, roupas de proteção, kits para testes, respiradores,
ventiladores e medicamentos enviados a países como Sérvia, Libéria, Filipinas,
Paquistão, República Checa, Itália, Espanha, Irão, Egito, Iraque, Malásia,
Camboja, Sri Lanka[xiii].
Empresas chinesas como Alibaba, prometeram enviar grandes quantidades de kits
de teste e máscaras para os Estados Unidos, além de 20 mil kits de teste e 100
mil máscaras para cada um dos 54 países da África[xiv].
Apesar da postura mais assertiva
da China, ainda é cedo para afirmar algo no sentido de uma ruptura hegemónica
norte-americana. A capacidade dos Estados Unidos de enfrentar os impactos da
pandemia internamente será crucial para manter sua posição global, mesmo sem
apresentar uma solução global, uma vez que sua força está assentada em aspectos
estruturais, sejam eles militares ou monetários.
Ainda assim, o sucesso da
resposta da China à pandemia e seu reposicionamento global podem contribuir
para acentuar as críticas ao modelo neoliberal, como aquele incapaz de fornecer
soluções para a pandemia e a crise global. Aqui a discussão sobre o papel do
Estado no combate a pandemia e na recuperação social e económica será crucial.
As ações da China ligadas a centralidade do Estado e ao planeamento podem
influenciar significativamente essa discussão.
Notas:
[i] Até
30 de Março foram registrados 738.562 casos confirmados e 35.006 mortes pelo
Coronavírus COVID-19 em todo o mundo. Fonte: Worldometer, 2020. Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/coronavirus-cases/
[ii] CHOONARA,
Joseph. “Marxist accounts of the current crisis”. London. International
Socialism. Issue: 123. 2009.
[iii] STREECK,
Wolfgang. “Tempo Comprado – A crise adiada do capitalismo democrático”. São
Paulo. Editora Boitempo, 2018. (cit, pg. 28)
[iv] CHESNAIS,
François. “Finance Capital Today – Corporations and Banks in the Lasting Global
Slump”. Brill Academic Pub; Lam edition. 2016.Chesnais
[v] South
China Morning Post. Disponível em: https://www.scmp.com/
[vi] Para
mais detalhes ver:
https://revistaopera.com.br/2020/03/22/o-coronavirus-e-a-propaganda-anti-china/
[vii] Report
of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) (16-24 de
Fevereiro). Disponível em:
https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf
[viii] MORITZ
U. G. Kraemer et. al. “The effect of human mobility and control measures on the
COVID-19 epidemic in China”. Revista Science. 25 de Março de 2020. Disponível
em: https://science.sciencemag.org/content/early/2020/03/25/science.abb4218
[ix] RIBEIRO,
Valéria Lopes e PARANÁ, Edemílson. “Virtú e fortuna: A trajetória da ação
desenvolvimentista chinesa e seus desafios contemporâneos”. Revista da
Sociedade Brasileira de Economia Política. Número 54 (set 2019 – dez 2019).
[x] FERREIRA,
Fabiana Bácio L. “Estado de bem-estar social na China: análise de sua tipologia
a partir do sistema de proteção social na saúde pós-1980”. Monografia de
conclusão de curso. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Economia. 2016.
[xi] National
Bureau Statistics of China, 2020.
[xii] Campbell
e Doshi. “The Coronavirus Could Reshape Global Order China Is Maneuvering for
International Leadership as the United States Falters”. Foreign Affairs, 18 de
Março de 2020.
[xiii] Revista
Time; ABC News; South China Morning Post; CNA (ChannelNewAsia)
[xiv] Campbell
e Doshi. (op.cit.
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Jorge Aires
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