Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião
Um branco despejou uma arma num negro, alegando "desentendimento por causa de uma cadela". Mesmo sem relatos de insultos racistas prévios a hipótese da motivação racista seria obrigatória - a não ser que se prefira achar que matar por uma cadela faz mais sentido que encarar a existência de racismo no país.
Aconteceu
esta sexta-feira de manhã (31.07). Carlos, negro, estava a passear o seu cão nos
arredores de Lisboa. Soltou-o numa zona de parque e o cão correu para fora de
vista, acompanhado de outro - uma cadela. Passado algum tempo, Carlos chamou o
seu cão e o dono da cadela fez o mesmo. Mas só o cão dele apareceu. O outro
homem, branco, começou a vociferar: "Puta de raça. É sempre o mesmo.
Depois espantam-se se as pessoas perdem a cabeça." Primeiro, Carlos achou
que estava a falar da raça da cadela. Só percebeu quando o homem completou o
raciocínio: "Depois se um tipo perde a cabeça é racismo."
Foi
um jovem - branco - que estava nas imediações o primeiro a reagir: "Você
está chalupa? Qual racismo? Vá mas é para casa." O homem continuou a
vociferar: "E agora? Onde está a minha cadela? Isto não fica assim."
Estupefacto, Carlos dirigiu-se-lhe: "Se calhar tem de a ensinar melhor.
Até o ajudava a procurá-la, mas depois do que disse não ajudo."
A voz ainda alterada, ligou-me a seguir. "Acontece sempre por causa de cães", ironizou. "Mas que quer este gajo dizer com "Isto não fica assim" Qual será a ideia dele? Será que tenho de ter cuidado?"
Talvez.
Afinal, o dono da cadela, ao falar do "perder a cabeça", invocava o
homicídio de Bruno Candé, a 25 de julho. Candé, negro, 39 anos, estava sentado
num banco da avenida principal de Moscavide, pelas 13 horas, quando foi
atingido por quatro tiros disparados por Evaristo Carreira Marinho, de 76 anos,
branco. O idoso, logo dominado por cidadãos que assistiram ao homicídio e a
quem foi decretada na segunda-feira prisão preventiva, teria, três dias antes
do homicídio e de acordo com testemunhos de lojistas recolhidos pela jornalista do Público Joana
Gorjão Henriques, dirigido, "aos berros", vários insultos racistas à
vítima, ameaçando-a. Curiosamente, a PSP, que tomou conta da ocorrência,
apressou-se a afastar a hipótese da motivação racista do crime, certificando que nenhuma das seis testemunhas que ouviu falara
de racismo; também o autor dos disparos teria, de acordo com o que foi
noticiado, negado essa motivação, alegando que a "razão" teria sido
um desentendimento por causa da cadela de Candé (que estava com ele no momento
da morte). Já a Polícia Judiciária, que tomou conta da investigação, mantém
todas as hipóteses em aberto, incluindo a da motivação racista - como deve, de
resto.
E
deve porquê? É simples: a motivação de ódio (racial, religioso, politico,
homofóbico ou sexista) está prevista no Código Penal português, precisamente
como "qualificadora", ou seja agravante, do crime de homicídio. Está
lá porque é uma possibilidade, e de cada vez que uma pessoa pertencente a uma
minoria étnica é alvo de violência deve ser tida em conta. Aliás os
chamados "motivos fúteis", que igualmente agravam o crime de
homicídio, podem "disfarçar" a motivação de ódio. Porque se alguém
tem desprezo, desconsideração, sentimento de superioridade, aversão especial ou
fobia em relação a um determinado grupo de pessoas a probabilidade de se sentir
"provocado" por algo que alguém desse grupo faça, por menos relevante
e grave que seja, é bastante considerável. O exemplo do ocorrido com Carlos é
eloquente: o que raio leva alguém a reagir daquela forma a um não acontecimento
senão o ódio racial? E até onde poderia evoluir uma situação daquelas se o alvo
dos insultos e das ameaças retorquisse, em vez de se ir embora?
Acresce
que se sabe que, ao contrário do pretendido pela generalidade dos atores
políticos e opinadores, Portugal demonstra, nos inquéritos existentes
sobre o racismo, como o European Survey, uma alarmante percentagem de cidadãos que
acreditam no chamado "racismo biológico": perguntados sobre se acham
que há "raças ou povos por natureza mais trabalhadores ou
inteligentes", uma elevada percentagem dos respondentes portugueses não
discorda - só 33% discordam da primeira asserção, enquanto 59% discordam da
segunda. O que significa que estamos num país bastante racista: não há volta a
dar.
Isto
que deveria ser um dado admitido e sobre o qual responsáveis políticos e a
sociedade em geral deveriam refletir, tentando encontrar formas de o combater,
é porém persistentemente - diria mesmo patologicamente - negado. Fizeram-no o
presidente da República, o secretário-geral do PCP, o presidente do PSD. E o
primeiro-ministro e líder do PS nunca teve sobre este assunto um discurso claro
e inequívoco, nem tão-pouco nos anos que leva de governo lançou políticas com
ele relacionadas (foram aprovados em junho três projetos de resolução no
parlamento contra a discriminação racial que constituem um mero conjunto de
intenções e mesmo nisso deixam a desejar).
Esta
insistência na negação - da qual se excecionam o BE e o Livre, assim como a
deputada não inscrita Joacine Katar Moreira - e a inércia dela decorrente criaram
o caldo cultural ideal para a irrupção de um discurso político virulento que
assume a discussão sobre o racismo como um insulto ao país enquanto, da forma
mais racista possível, associa ser português com ser branco e portanto
"dono" do território, apresentando os grupos minoritários "não
brancos" como uma ameaça alienígena e potenciando assim a violência contra
eles como forma legítima de defesa. Se alguma dúvida restasse sobre isso
bastaria ver a forma como quer o deputado e líder do Chega, André Ventura, quer
outras figuras relacionadas com o partido reagiram à brutal execução de um
homem negro.
Num
partido que se afirma como "securitário" e defende a prisão perpétua
para os crimes mais graves, quatro tiros disparados com uma arma ilegal à luz
do dia num sábado pacato em Moscavide podem afinal, se a vítima é negra e quem
o matou é branco, surgir como fruto justificado de provocação - o tal
"perder de cabeça" invocado no episódio com Carlos. É mesmo isso que,
sem o mínimo de disfarce ou pudor, encontramos no Facebook de André Ventura que
partilhou, elogiando - "nada como a verdade para desmascarar a hipocrisia
do racismo
Assessor
parlamentar de Ventura e cabeça de lista do Chega por Braga nas legislativas,
Manuel Matias vai mais longe ainda no seu Facebook, apresentando quem matou
como vítima e, sublinhe-se, "cidadão de bem": "O que leva um
idoso de 80 anos, depois de uma vida de trabalho a pegar numa arma de fogo e
disparar quatro tiros num homem de 38 anos? O falhanço total do Estado.
Portugal não é racista, o Estado é que é corrupto e não defende os cidadãos de
bem." E alguém que apareceu publicamente como membro da "juventude
Chega", Carlos Tasanis, e chegou a ser indicado como candidato a
conselheiro regional da zona sul desta jota numa lista interna (a candidatura
seria retirada quando a revista Sábado investigou a sua pertença ao núcleo de Évora do extinto
movimento Nova Ordem Social, liderado pelo supremacista branco Mário
Machado, condenado a quase 20 anos de prisão efetiva por uma interminável sucessão de crimes violentos, incluindo fazer parte do grupo de skinheads que a
10 de junho de 1995 foi ao Bairro Alto com o objetivo de espancar negros, um
dos quais, o português Alcindo Monteiro, morreria em consequência),
escreveu, a 29 de julho, no Twitter: "Sou o único a favor do idoso de
Moscavide? (...) Um idoso que é constantemente ameaçado e chega a ser agredido
tem o direito a errar, a justiça em PT não funciona. Devia ser no pior cenário
pena suspensa. Por mim os condenados eram o Bruno e a sua família, deviam pagar
uma indemnização. Nada justifica uma agressão a um idoso."
Escusado
dizer que não temos neste momento qualquer evidência de que Bruno Candé tivesse
ameaçado ou agredido o homem que o matou, ou qualquer outra pessoa. A única
evidência é mesmo que foi assassinado com quatro tiros quando estava sentado
num banco, deixando três filhos menores. Nada que impeça racistas odientos de o
culpar e difamar enquanto convocam ajuntamentos para certificar que Portugal é
o país menos racista do mundo - e o presidente da República, o
primeiro-ministro e o líder do principal partido da oposição de assistir a tudo
isto como se nada fosse. O melhor mesmo é que Carlos e todos os negros com cães
passem a ter mais cuidado - ainda.
Fernanda Câncio, em 01 Agosto 2020 — 00:18
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