#Publicado em português do Brasil
Desmatamento e criação de animais são receitas conhecidas para novas doenças – hoje, facilmente disseminadas pelo globo. Humanidade não aprendeu com as últimas epidemias. Ela serão mais comuns e intensas. Haverá como contê-las?
André Biernath, na BBC Brasil | em Outras Palavras
A gripe espanhola de 1918 começou
nos Estados Unidos. O zika estava restrito às ilhas da Polinésia Francesa, no
Oceano Pacífico, mas atravessou o mundo e virou preocupação no Brasil. A gripe
suína de 2009 brotou em fazendas do México antes de colocar o mundo inteiro
Mas, afinal, o que define o local e a hora de nascimento de uma pandemia? E quais características permitem que um vírus até então pouco conhecido comece a afetar, de uma semana para outra, milhares ou milhões de pessoas de todos os continentes?
Os conhecimentos básicos de biologia até podem explicar o processo. Mas as transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais o mundo passa atualmente deixam o cenário favorável para que novas crises sanitárias desse tipo fiquem ainda mais comuns daqui para frente.
Receita básica
Um determinado vírus pode circular por um tipo de animal rotineiramente, durante milhares de anos. Há coronavírus, por exemplo, que só afetam morcegos, gatos ou camelos. Mas, ao longo desse processo, pode acontecer alguma mudança que faça o patógeno pular para outra espécie.
“Na natureza, os vírus passam por mutações aleatórias o tempo todo. Nesse jogo de tentativa e erro, ocorrem alterações em alguns genes para torná-lo apto a infectar seres humanos”, explica o virologista Paulo Eduardo Brandão, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo.
Até aí, a situação não é assim tão grave — afinal, o risco só vai existir se a gente entrar em contato com aquele bicho. O problema fica complicado mesmo quando o vírus em questão sofre uma nova transformação em seu código genético e adquire a capacidade de ser transmitido de pessoa para pessoa.
O Sars-CoV-2 já é um modelo clássico desse fenômeno: pelo que se sabe até o momento, ele circulava entre morcegos pelo Sudeste Asiático. Até que sofreu algumas edições em seu genoma e conseguiu “pular” para os seres humanos. Não se sabe ainda se houve um animal intermediário no meio do caminho.
Vale alertar, porém, que essa passagem demora anos para acontecer. “Não é que um único indivíduo comeu um morcego e deu início a toda a situação. Essas mutações ocorrem paulatinamente e os vírus se adaptam pouco a pouco ao novo hospedeiro”, esclarece Brandão.
Esse perigo, aliás, já era conhecido muito antes de os primeiros casos de uma nova doença começarem a causar estranhamento em meados de dezembro de 2019. Um artigo publicado em março do ano passado por quatro cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan já alertava: “É altamente provável que um surto de coronavírus se origine de morcegos, e há uma grande possibilidade que isso venha a ocorrer na China”.
Mas por que a China? O coronavírus da vez não poderia ter aparecido na Romênia ou na Nova Zelândia? Como você verá a seguir, certos locais do mundo reúnem as condições ideais para o surgimento de uma pandemia.
Contato (muito) próximo com a natureza
“Nós habitamos uma biosfera e
compartilhamos o mesmo espaço com plantas, animais e micro-organismos. A ação
do homem nos ambientes pode alterar o equilíbrio e favorecer o avanço de
bactérias e vírus até então desconhecidos ou inofensivos”, raciocina o
infectologista Stefan Cunha Ujvari, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz,
Dados do Banco Mundial indicam que, em 1990, o mundo possuía 41,2 milhões de quilômetros quadrados de área florestal. Esse número caiu para 39,9 milhões em 2016. Parece uma redução pequena? A área devastada de mais de 1,3 milhões de quilômetros quadrados em apenas 16 anos é quase equivalente ao Amazonas inteiro (o maior Estado do Brasil) e supera a área de países como Peru, Colômbia e África do Sul.
O surto de ebola que se iniciou na África Ocidental em 2014 e atingiu particularmente Guiné, Libéria, Serra Leoa e Nigéria apareceu justamente em regiões com extração de madeira e minérios. Por causa dessas atividades, os seres humanos passaram a ter mais contato com os animais da região — entre eles, um morcego que carregava esse vírus.
O aumento das temperaturas do planeta e o derretimento das calotas polares também podem ter desdobramentos imprevisíveis no aparecimento de pandemias futuras. “Há poucos anos, nas regiões permanentemente congeladas da Sibéria, um grupo de cientistas encontrou um vírus com mais de 30 mil anos. O mais surpreendente foi descobrir que ele mantinha a capacidade de infectar amebas no laboratório”, conta Brandão.
Em setembro, pastores de renas das ilhas Lyakhovsky, que pertencem à Rússia, encontraram uma carcaça de um urso-das-cavernas da Era do Gelo perfeitamente preservada. “Não sabemos os vírus que podem estar ali e aparecer a partir dessas descobertas”, completa o virologista.
Extensa urbanização
É curioso notar como alguns desses patógenos que nos afetam ainda hoje têm uma longa história, que começa justamente quando os seres humanos se tornaram sedentários e se aglomeraram num único local, há mais ou menos 10 mil anos. “Nesse período, o gado da região da Ásia era acometido por um vírus, que passou para a África e a Europa antes de ser extinto. Sabemos que ele é geneticamente semelhante ao sarampo”, relata Ujvari.
Atualmente, mais de 4 bilhões de
pessoas vivem em áreas urbanas do planeta. De acordo com a Organização das
Nações Unidas (ONU), em
Mas o que isso tem a ver com as doenças infecciosas? Para começo de conversa, muitos municípios não oferecem as condições sanitárias mais básicas (esgoto e água encanada, por exemplo). Calcula-se que, só no Brasil, 22% a 37% dos cidadãos morem em favelas — esse número chega em 90% em alguns locais do continente africano.
O esgoto não tratado é despejado em rios, córregos e lagos que, muitas vezes, são fonte de água para abastecer as casas. Isso gera quadros de diarreia e outras infecções. Além disso, o acúmulo de lixo em aterros e terrenos baldios vira local de procriação de mosquitos, como o Aedes aegypti, transmissor de doenças como dengue, zika e chikungunya.
“É preciso pensar nessa infraestrutura das cidades, para permitir que os países possam responder mais rapidamente a uma crise sanitária”, chama a atenção a médica epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas.
Mais carne no prato
O mundo nunca comeu tanto bife.
Essa é a conclusão que pode ser retirada a partir das projeções da FAO, a
Organização de Comida e Agricultura da ONU. Em um relatório de
A grande questão é que essas criações nem sempre ficam confinadas nas condições sanitárias mais adequadas. A falta de regras e fiscalização faz com que, em muitos países, esses animais sejam mantidos em locais apertados, sem higiene ou até misturados com outras espécies.
É tudo o que um agente infeccioso precisa para sofrer mutações, se combinar e pular para os seres humanos: na pandemia de H1N1 de 2009, que se originou no México, os estudos mostraram que o vírus influenza que causou todo aquele problema era uma mistura de quatro cepas diferentes. “Duas eram de origem suína, uma veio das aves e a outra dos seres humanos”, detalha Ujvari.
E esse não é um exemplo isolado:
ao longo do século
Do outro lado do mundo
Os três fatores analisados anteriormente ajudam a explicar como surge um novo vírus e como ele é capaz de se espalhar rapidamente num território restrito. Mas há um último ingrediente nesta receita que é fundamental para entender a razão de surtos virarem epidemias ou pandemias: a facilidade que temos para viajar de um canto a outro.
Vamos a um exemplo prático: o município de Urasoe, no Japão, fica a 19.382 quilômetros de São Paulo. Trata-se da cidade mais afastada do mapa em relação à capital paulista. Uma rápida pesquisa na internet nos mostra que é possível chegar até lá de avião em exatas 36 horas e 15 minutos, com escalas em Londres e Tóquio.
Um indivíduo pode deixar o Brasil sem sintoma algum de uma doença infecciosa, como a covid-19 e, se não tomar os devidos cuidados, espalhar o vírus pelos lugares por onde passar — imagina com quantas pessoas e objetos um viajante não interage pelo caminho?
“A mobilidade intensa facilita tremendamente a disseminação de um vírus. Portanto, devemos ter a noção de que ninguém vai estar seguro até que todo o mundo esteja seguro de verdade”, observa Denise Garrett.
Como será o amanhã?
Enquanto a covid-19 segue como uma ameaça, é preciso pensar também no futuro: a experiência com a pandemia atual nos ensina alguma coisa que ajude a evitar ou minimizar as próximas crises sanitárias?
O virologista Paulo Eduardo Brandão tem uma visão pessimista. “Já tivemos outras situações relativamente parecidas num passado recente e nada mudou. As ações de controle se mantiveram por um tempo e depois foram esquecidas”, lamenta.
O especialista acredita, porém, que um dos efeitos positivos possa ser um aumento da vigilância de vírus emergentes. “Com a tecnologia que temos hoje, é fácil fazer uma prospecção dos ambientes silvestres e determinar potenciais ameaças”, diz.
O infectologista Stefan Cunha Ujvari torce para que países e organizações multilaterais tomem medidas mais contundentes contra a caça e a comercialização da carne de animais silvestres. “Assim como estabelecemos protocolos contra o aquecimento global, os gases do efeito estufa e o desmatamento, precisamos ter algo para coibir a invasão de áreas selvagens para minimizarmos o contato com vírus desconhecidos”, sugere.
Por fim, a epidemiologista Denise Garrett aposta no preparo tecnológico e nas parcerias entre diferentes atores da sociedade. “A covid-19 nos pegou menos preparados do que deveríamos estar. Precisamos ter uma estrutura para o desenvolvimento mais rápido de vacinas, ao mesmo tempo em que necessitamos do trabalho conjunto, pois só vamos superar essa com o esforço de todos”.
Enfrentar a próxima pandemia é questão de tempo. Resta saber como a humanidade vai estar preparada para o novo desafio.
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