quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“FASCISMO NUNCA MAIS” – diz o voto expresso em Boric no Chile

Uma nova etapa se inicia no Chile

Centenas de milhares de pessoas esperavam até às 22 horas, na noite deste domingo 19 de dezembro, quando Gabriel Boric chegou ao palco instalado na Alameda Libertador com a Avenida Santa Rosa, ao lado da Biblioteca Nacional. Nunca, na história recente do Chile, um ato político eleitoral reuniu tantas pessoas, uma multidão que só deve ter sido superada em número pelas que se observaram nas manifestações da revolta social de 2019.

Milhares de bandeiras flamearam durante a noite, no som das músicas e dos slogans da revolta social. Uma atmosfera, uma mística política que envolvia o centro de Santiago e que se estendeu aos bairros, com festas, carreatas, praças e ruas cheias de gente comemorando.

O triunfo de Gabriel Boric nas eleições presidenciais chilenas foi contundente: quase 56% dos votos, contra 44% do pinochestista José Antonio Kast. Boric teve mais de 4,6 milhões de votos, e impôs uma diferença de 970 mil com relação ao seu adversário. Tornou-se o presidente eleito com a maior votação da história do Chile. O candidato da coalizão Aprovo Dignidade conseguiu quebrar uma tendência da política eleitoral das últimas décadas: a baixa participação eleitoral, sempre abaixo dos 50%, mas que surpreendeu neste domingo, quando mais de 55% da população foi às urnas.

A votação recorde, que foi conquistada apesar de um boicote do serviço de transporte público – em um estranho episódio que envolve mais um episódio de má gestão do governo de Sebastián Piñera, com aparente cumplicidade das empresas privadas que possuem a concessão do serviço –, explica grande parte do triunfo de Boric. A mudança de rumos da campanha no segundo turno também foi importante. Deixou de ser enfocada nas peças audiovisuais e de propaganda e passou a priorizar o esforço de milhares de militantes que fizeram o porta-a-porta nos bairros, convocaram assembleias territoriais, organizaram movimentos e coletivos. Na reta final, a campanha realizou eventos massivos em algumas cidades, incluindo o grande ato de encerramento, que contou com mais de cem mil pessoas na Plaza Almagro, em Santiago.

O outro fator importante foi a reação da população à campanha terrorista levantada pela ultradireita nas redes sociais, carregada de discursos de ódio e notícias falsas. Tentou-se colar em Boric o rótulo de “comunista”, de “marxista” e outros do mesmo estilo, mas não se calculou que essa retórica do ódio era a mesma usada pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), e que já não funciona mais.

Essa campanha irritante, cheia de mentiras e de ódio, despertou uma reação natural, e que foi empregada de forma inteligente pelos adeptos de Boric. Se conformou assim uma ampla frente antifascista, composta por especialmente por atrizes e atores, artistas em geral, acadêmicos, intelectuais e líderes sociais, preocupados com o retorno do fascismo e dos saudosos da ditadura. Esta manhã, um dos autores intelectuais da campanha de Kast, o ex-ministro pinochetista Sergio Melnick, admitiu o erro da sua estratégia, aceitou que o triunfo de Boric foi “por goleada” e anunciou sua retirada da política e da vida pública.

O discurso de Gabriel Boric após a vitória foi um resumo das ideias que guiam o seu programa de governo. É importante escutá-lo para observar cuidadosamente as menções que ele faz, e o tom com que as faz, para entender o compromisso que seu mandato assume a partir de agora. Boric falou em fim dos privilégios, falou das demandas sociais da população, falou em acabar com o sistema de previdência privada, em defender os direitos e conquistas de mulheres e dissidências sexuais, falou na necessidade de defender o meio ambiente da ação humana e da crise climática, falou em entregar uma vida mais digna a todos, desde as crianças até os mais velhos. Tudo isso diante de uma multidão que gritava as consignas da revolta social: liberdade aos prisioneiros políticos, educação e saúde de qualidade, vida digna para todos e fim das enormes desigualdades. Rondava no ambiente do Centro de Santiago aquela mística iniciada em 18 de outubro de 2019.

Para encerrar o seu discurso, Boric levantou um dos aspectos que devem ser centrais em seu governo. “Em 11 de março, entraremos todos juntos ao Palácio de La Moneda”. As enormes mudanças que o projeto da coalizão Aprovo Dignidade prevê para o Chile só será possível com uma mobilização popular permanente. Com um Congresso muito dividido, sua força terá que estar no apoio massivo das ruas. Um evidente contraste com a apatia política que foi característica da política chilena nas últimas décadas. Passar dessa indiferença ao espírito coletivo que passou a marcar o país a partir da revolta social é uma conquista única na história recente. Este é o grande capital político de Gabriel Boric, que não assumirá a presidência como os anteriores governos, incluindo alguns de centro-esquerda, que se tornaram fracos muito rapidamente, após se encherem de neoliberais tecnocratas. Quando Boric assumir o poder em março, estará respaldado pela maior votação da história do Chile. Essa será sua grande virtude, e também o seu grande desafio.

O governo de Boric é uma das consequências da revolta popular. A outra é a Assembleia Constituinte, que deve finalizar em breve os trabalhos de redação da Constituição de 2022, que enterrará de vez a de 1980, imposta pelo ditador Pinochet. O novo governo e a Assembleia Constituinte devem se alimentar mutuamente, fortalecendo uma relação que permita a ambas satisfazer as expectativas exigidas pelas pessoas.

O palco onde aconteceu o discurso da vitória estava montado em uma esquina emblemática do centro de Santiago. Conhecedores da história afirmam que aquele lugar foi onde Salvador Allende fez seu primeiro discurso como presidente, após ser eleito, na noite de 4 de setembro de 1970. Também afirmam que Allende escolheu aquele lugar porque era próximo à sede da Fech (Federação de Estudantes da Universidade do Chile), e porque a juventude era um setor fundamental para o seu governo. Nem Boric nem seu comitê fizeram qualquer comentário sobre essas coincidências. Porém, o presidente eleito citou uma das declarações públicas mais conhecidas de Salvador Allende, e sem dar os devidos crédito: “eu convido vocês, como se dizia há anos atrás, para que voltem às suas casas com a saudável alegria de ter alcançado uma vitória limpa”.

Paul Walder | Carta Maior | Imagem: Rodrigo Garrido/Reuters

*Publicado originalmente em 'Clarin' | Tradução de Victor Farinelli

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