Artur Queiroz*, Luanda
A minha filha Jéssica tinha três anos e foi assassinada. Quem a matou? A sociedade do espectáculo, essa megera, meretriz de sentimentos apodrecidos, rostos maquilhados, bocas deformadas de tantas vezes alugadas. Aqui está a criança morta! Quando ainda viva embalava num carrinho de bebé, duas bonecas, gémeas na exclusão, na pobreza enganada, na miséria engalanada a cores e em alta definição.
A autópsia de Jéssica revelou maus tratos no rosto. O coração estava ressequido, desertificado, descolorido, sem músculo nem vestígios de amor. Mal nasceu arrancaram-lhe o coração pela boca. Eu não sabia que tinha a minha filha Jéssica. E se soubesse, que podia fazer para enfrentar os negócios do Balsemão, do Barqueiro do Douro, do ministro que tutela a RTP, dos traficantes do correio da manhã? Nada. Nunca o nada me foi tão doloroso, vazio, fantasmagórico, angustiante.
O velório da Jéssica é numa capela decorada com santos de pau ou porcelana, sem valor, imprestáveis, cúmplices de um deus caprichoso e cruel que viu matar a minha filha Jéssica e cuspiu para o lado.
A minha filha Jéssica viveu na rua com a mãe, passou fome de amor e de pão. Até as noites agrediam o seu corpinho, com frio e escuridão. Não lhe digam que vem aí o Papão! E a Mamã cantava o fado Camões grande Camões quão teu fado é igual ao meu! Na mão de deus, na sua mão direita, repousa, enfim, o meu coração. Escrito isto, Antero disparou um tiro na cabeça.
Quem o matou? Fomos todos, até eu, que ainda não tinha nascido. Estamos sempre prontos a disparar aos miolos dos poetas. Violar meninas de três anos com a pobreza abaixo do limiar inventado pela criadagem do nababo dono do Pingo Doce. Um mundo tenebroso criado, cifrão a cifrão, pelos banqueiros e seus governos de turno. Pelos mercados, insaciáveis de sangue e suor dos papás e das mamãs da minha filha Jéssica, morta aos três anos, na primeira esquina das ruas da amargura.
A minha Filha Jéssica tinha mais cinco irmãos. A mais velha foi entregue a um asilo para indigentes, pobres, miseráveis, candidatos à morte violenta. Institucionalizada, dizem as bocas alugadas por donos cruéis. Os outros foram entregues a familiares. A Mamã canta fado e pediu a uma bruxa que lhe conservasse o companheiro, fugidio, esquivo, pronto a abandonar a pobreza extrema e partir para outro tugúrio, outra mesa de fome, outro pesadelo.
As televisões continuam a fazer da minha filha Jéssica uma estrela dos ecrãs. Ela, que jaz morta e arrefece. A Mamã também actua, mas fugidiamente. Ninguém consegue capturar a sua alma fadista. E eu aqui, ruminando vinganças. A Joana Amaral Dias, filha do Menino Reboredo, foi ganhar o seu pedaço de dinheiro sujo à custa da minha filha Jéssica. Psicólogas e psicólogos, advogadas e advogadas, jornalistas venais ganham uns trocos à custa da minha filha Jéssica. Como não posso matá-los, choro. Estou mesmo a chorar. Morrem-me todas as filhas. Morrem-me todos os filhos. E eu sem forças para matar os matadores!
À minha filha Jéssica deixo esta trova do poeta Sungwangongo Malaquias:
O ninho do kachinjonjo
Da aldeia de nossos avós
partimos deixando os mortos
e as lavras onde com as mãos
plantámos tanta abundância:
Corremos livres para as luzes
no voo cego da borboleta.
Na correria pelos mundos
te perdi clamei chorei sofri.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer
Ame syafile
ongongo sya malele.
No regresso os meus olhos
apenas avistaram ruínas
e as lágrimas que choraram
nunca chegaram aos corações
dos justos e piedosos
secaram nos sulcos fundos da agonia.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer
Ame syafile
Ongongo sya malele.
A casa onde nos demos
tanto sonhamos e amamos
está tão arruinada como a infância
que jaz nos escombros
da fugaz felicidade do beijo
que num dia de pássaros de fogo
fez de nós amantes deslumbrados.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer
Ame syafile
Ongongo sya malele
Nas ruínas da nossa casa
nasceu grandiosa árvore
na copa faz ninho o kachinjonjo
que voa desesperado
à procura da flor que foste
do néctar que nos jardins espargiste.
nem Suku seria tão perfeito
a transformar escombros em ninhos.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer
Ame syafile
Ongongo sya malele
Percorremos de mãos dadas
os mundos para além do saudoso Cassai
mas regressei só e sem olhos para ver
o mundo que nos nasceu
a casa que nos uniu a Lua que nos despiu:
Kalunga wanjivala! Kalunga wanjivala!
A morte não me quer! A morte não me quer!
*Jornalista
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