quarta-feira, 8 de junho de 2022

Portugal | RATO EM QUEIJO PARMESÃO

Afonso Camões | Diário de Notícias | opinião

Como rato em queijo parmesão, o pior inimigo dos nossos salários tem um nome: inflação. E esta ocorre quando se verifica um aumento geral dos preços dos bens e serviços, não apenas de alguns artigos em particular: significa que, com €1 (um euro), se compra menos hoje do que ontem. Ou seja, a inflação reduz o valor da moeda ao longo do tempo. É o que aí temos, e é caso para acender as luzes amarelas, depois de a inflação portuguesa ter atingido em maio os 8%, o valor mais alto nos últimos 29 anos.

Claramente positivos, os registos nacionais do crescimento económico e alguma redução do desemprego não escondem o mapa preocupante que se está a desenhar. O mundo à nossa volta entrou em zona de forte turbulência, com inflação alta nalgumas das principais economias, e a alta inflação foi sempre um fator de forte desestabilização social e política. A dupla crise - primeiro a pandemia e agora a guerra - precipitou um conjunto de elementos que ameaçam tempestade e agora promovem o ciclo de carestia dos preços, atingindo taxas sem precedentes nas últimas décadas. Dizem-nos que não se justifica a tentação catastrofista, mas seria um grave erro subestimar os riscos. Até que seja contida, a escalada inflacionária tende a produzir uma erosão do poder de compra que afeta, em particular e gravemente, os cidadãos mais pobres e com menos defesas, já fustigados pelo calvário da crise sanitária. A inevitável série de aumentos das taxas de juros por parte dos bancos centrais fará com que as economias arrefeçam, e o resultado conduzirá, nalguns casos, à recessão.

Entre os países emergentes, muitos são os que estão expostos a mudanças nos fluxos de investimentos e na estabilidade das suas moedas, com sérios problemas para honrar dívidas referenciadas em dólares. No caso de Portugal, o maior risco continua a ser a elevada dívida pública, e a necessidade de novas emissões para a refinanciar. Neste contexto, ainda assim, Portugal enfrenta a nova turbulência com alguns dados encorajadores: As receitas do turismo retomam valores idênticos aos de 2019, e o mercado de trabalho emite sintomas positivos, apesar das variações temporárias. A forte contração que o PIB (valor da soma de todos os bens e serviços finais produzidos) sofreu no início da pandemia - acima da média dos nossos parceiros europeus - foi corrigida nos últimos trimestres com uma taxa de crescimento superior à maioria das economias da zona euro.

Seria, porém, um erro minimizar a tempestade que se avizinha. A alegria por cada novo contribuinte para a Segurança Social não dissipa o descontentamento de milhares de assalariados que já veem seu poder de compra fortemente corroído, num país que não prima pelo alto nível das suas folhas de pagamento. A vontade manifestada pelo Governo de amortecer o golpe para os mais desfavorecidos deve ser acentuada com medidas de carácter progressivo e não geral. Estas últimas acabam por ser, afinal, regressivas: ao mesmo tempo que beneficiam os de baixos rendimentos, que reclamam urgência nos apoios, favorecem também os de altos rendimentos que podem prescindir de descontos como os dos combustíveis e energia. Ainda que a maioria dos especialistas acredite que a crise inflacionária não será tão grave quanto a dos anos 70 e até diminua nos próximos meses, os seus efeitos já estão aqui, com danos reais e imediatos. E tudo isto acontece num quadro de sociedades cansadas e envelhecidas, terreno fértil para impulsos nacional-populistas, e num contexto geopolítico abalado pela invasão da Ucrânia - tudo, enfim, motivo suficiente para não deixar que as boas notícias banalizem as ameaças. Até porque uma inflação que começa por ser pequena é como uma pequena gravidez: rapidamente deixa de ser pequena.

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