José Soeiro | Expresso | opinião
Aos patrões não lhes basta que as margens de lucro aumentem, provocando a inflação. Não lhes basta a contração do salário real, que é a sua solução e também a resposta recessiva do Governo ao aumento dos preços e o maior fator de agravamento das desigualdades. Os patrões querem, ainda, que nada possa ser decidido no mundo do trabalho sem a sua outorga. Mobilizam-se contra algumas das regras que podem trazer mais exigência de respeito nas leis do trabalho, invocando uma espécie de direito de veto que a Constituição não lhes atribui
Se quisermos um pequeno retrato do mundo do trabalho em Portugal, olhemos para o que se passa com os bares dos comboios da CP. O Estado, que detém a empresa, externalizou o serviço para um privado. Este, por sua vez, não cumpre o contrato e não pagou aos trabalhadores os salários de fevereiro. Os clientes não têm acesso ao serviço e os trabalhadores, que desesperam há semanas sem trabalho e sem qualquer rendimento, continuam acampados frente às estações de Santa Apolónia e de Campanhã. O concessionário empata e o governo não resolve. Há enquadramento legal para encontrar uma solução, rescindindo o contrato com a empresa externa e incorporando os trabalhadores na CP, mas não há vontade política. Existem leis para proteger as pessoas, mas elas não bastam para que exista justiça. No Parlamento, o PS chumbou até a ida do ministro Galamba para esclarecer a situação, impedindo a responsabilização de quem tem poder e desprezando a aflição dos trabalhadores.
Enquanto isto acontece, as confederações patronais mobilizam-se contra algumas das regras que podem trazer mais exigência de respeito nas leis do trabalho. Invocando uma espécie de direito de veto que a Constituição não lhes atribui, rasgam as vestes porque o Parlamento aprovou algumas normas sem o acordo da “concertação social”. Não basta aos patrões terem celebrado com o governo e a UGT um “acordo de rendimentos” que fixa uma meta de aumentos salariais (5,1%) muito aquém do que já se perdeu para a inflação e que, mesmo assim, a maioria das empresas nem sequer cumpre (os últimos dados da DGERT revelam que os contratos coletivos negociados em janeiro, que em princípio preveriam aumentos, abrangem 46776 trabalhadores, uma percentagem ínfima de quem trabalha em Portugal). Não lhes basta que as margens de lucro aumentem, provocando a inflação. Não lhes basta a contração do salário real, que é a sua solução e também a resposta recessiva do governo ao aumento dos preços e o maior fator de agravamento das desigualdades. Os patrões querem, ainda, que nada possa ser decidido no mundo do trabalho sem a sua outorga.
E por isso se desdobram em apelos a Marcelo, para impedir alguns dos avanços recentemente aprovados no Parlamento: na exigência de responsabilidades laborais para as plataformas digitais, na proibição de recorrer ao outsourcing para substituir trabalhadores dos quadros que foram despedidos, na obrigação de compensar o acréscimo de despesas por teletrabalho, na impossibilidade de se impor acordos em que os trabalhadores renunciam aos créditos laborais a que têm direito no fim dos contratos, na extensão da contratação coletiva a trabalhadores em outsourcing ou a recibos verdes, nos mecanismos de sindicância da caducidade.
Os patrões clamam pelo veto de Marcelo contra estas alterações legais, por singelas que sejam. Os porta-vozes das plataformas digitais - multinacionais habituadas à impunidade - anunciam até que não pretendem cumprir a lei, caso ela venha a entrar em vigor, anunciando de forma desabrida, em entrevistas aos jornais, que já estão a mobilizar a criatividade de gestores e advogados empresariais para engendrar esquemas que permitam contorná-la.
Há assim uma tripla luta, urgente, contra o descaramento e a injustiça no trabalho. Primeiro, é preciso afirmar que não é às confederações patronais que está atribuída a competência para legislar e que, sim, aquelas normas positivas contra vários abusos devem entrar em vigor quanto antes. Segundo, é preciso que nos preparemos para combater as múltiplas formas de incumprimento de deveres básicos por parte das empresas, fazendo valer, pela força organizada do trabalho, os instrumentos legais que existem ou existirão, nomeadamente contra a precarização radical do outsourcing e da uberização. Terceiro, é preciso ampliar as formas de representação coletiva de quem trabalha. Sem elas não se conseguirá impor alguma justiça e inverter o processo em curso, validado pelo Governo, de uma nova e profunda transferência de rendimentos das classes trabalhadoras para os donos das empresas e para o setor financeiro. Um primeiro passo é sermos solidários com quem, como os trabalhadores acampados à porta das estações de comboios, luta pelo mais elementar: respeito.
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