quinta-feira, 16 de março de 2023

Portugal | OS BISPOS VÃO DE COCHE

Afonso Camões* | Diário de Notícias | opinião

Andam mal dormidos os nossos bispos, tal o sobressalto de se sentirem na berlinda. Aqui chegado, hesito e vou ao dicionário de tira-teimas. Afinal, "berlinda" começou por ser o nome dado a uma série de carruagens antigas com origem em Berlim, e no nosso Museu dos Coches ainda podemos encontrar algumas. Modelo elegante e "desportivo" só acessível aos glúteos dos poderosos, as berlindas tinham apenas dois lugares e quatro rodas. Por essa Europa fora, foi tal o sucesso da carruagem que, popularizado o seu nome, "estar na berlinda" passou a ser sinónimo de ostentação e soberba, ou ser alvo da atenção geral e dar nas vistas, quase sempre pelos piores motivos, à mercê do escárnio público, um julgamento que não pode dar bom sono aos justos.

Assim vão os nossos bispos - e não os confundamos com o povo da Igreja. Se anda mal dormida e está na berlinda, tal a extensão e gravidade dos casos de abuso sexual agora conhecidos, a hierarquia católica portuguesa só se pode queixar de si própria. E não é só por má comunicação. É, sobretudo, pela resposta tardia e pela obstinada recusa de alguns dignitários da Igreja em admitir o pecado da ocultação e do encobrimento de crimes que arruinaram milhares de vidas, cometidos por quem tinha o ministério, ou seja, o dever de cuidar delas e defendê-las. A resposta tardia dos nossos bispos revela, por outro lado, que alguns deles ignoram ou resistem a assumir os preceitos que resultam de uma das grandes reformas introduzidas por Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, que ontem mesmo concluiu 10 anos de pontificado, à frente do Vaticano e da Igreja Católica universal.

Em vigor desde 8 de dezembro de 2021, as novas normas do Código do Direito Canónico incluem um artigo que define a pedofilia como "um crime contra a dignidade humana", e condenam à expulsão do estado clerical todos quantos sejam, ou tenham sido, responsáveis por crimes de abuso sexual.

As alterações introduzidas pelo papa argentino culminam um processo de revisão iniciado durante o papado de Bento XVI, tendo em vista três objetivos: caracterizar esses crimes numa perspetiva atual, aumentar as penas, e reduzir a margem de autonomia dos bispos e outros superiores hierárquicos dos autores dos delitos, procurando desse modo condenar o encobrimento ativo ou a passividade perante tal flagelo no interior da Igreja. Com esta reforma, a mais abrangente em quatro décadas no campo do Código de Direito Canônico, Francisco desafia um dos maiores problemas enfrentados pela Igreja Católica no último século.

A gravidade e dimensão deste tipo de comportamento criminoso afetaram enormemente a credibilidade da instituição milenar que, nesta área, se revela muito aquém da sociedade que se propõe servir. Recuperá-la exige, no mínimo, corrigir caminho e discurso, depurar responsabilidades passadas, reconhecer os danos brutais infligidos e reparar as vítimas. Em resumo, é bom que suas iminências desçam da "berlinda" se querem deixar de estar na berlinda. Valha-nos, em humildade e clareza, a lucidez de D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, que à hora em que entrego este texto dava uma entrevista à RTP.

*Jornalista

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