Crise bancária iniciada nos EUA alastra-se pela Europa. Nouriel Roubini teme a repetição do colapso de 2008. Causa fica ainda mais clara: BCs insistem, até o limite, em manter políticas que transferem riqueza social para o 0,1%
Antonio Martins* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
“O Crédit Suisse é grande demais para ser salvo” e sua eventual quebra poderia significar um novo “momento Lehman Brothers”. O economista Nouriel Roubini, famoso por ter previsto a grande crise financeira de 2008, fez o alerta esta manhã, em entrevista à Agência Bloomberg. As ações do banco suíço – que tem vasta atuação global e é visto pelos mercados como uma das poucas “instituições financeiras sistematicamente importantes” do mundo – estavam despencando. Roubini referia-se ao colapso do banco norte-americano que desencadeou o travamento do mercado global de crédito, há 15 anos.
A onda de desconfiança atingia também dois grandes bancos franceses (Société Génerale e BNP Paribas) e um alemão (Deutsche Bank). O Brasil parecia suscetível à tempestade: o economista-chefe de Itaú, Mário Mesquita, admitia pela primeira vez que é preciso atentar para os riscos de um choque de crédito. O que desencadeou a tormenta, num céu até há pouco marcado pela continuidade das altas exuberantes das bolsas de valores e por uma onda de otimismo dos governos do Ocidente, animados com as chances de triunfar sobre a Rússia, na Ucrânia?
Agora, parece não restarem dúvidas de que as quebras estão relacionadas com a alta dos juros, nos EUA e na Europa. A partir de março de 2022, o Fed (BC dos EUA) elevou-as no ritmo mais rápido desde a grande escalada dos anos 1980. No centro do sistema, elas ainda são negativas, em termos reais (estão abaixo da inflação), mas um texto do economista Michael Hudson permite compreender as razões imediatas do choque.
Instituições financeiras de todo o mundo foram inundadas, entre 2008 e 2022, com uma torrente incomum de depósitos. Para evitar desvalorizações, e diante da paralisia dos investimentos produtivos, compraram em massa títulos públicos, num período em que os juros permaneceram muito baixos. A partir do ano passado, estes papéis sofreram forte desvalorização, pois é muito mais rentável adquirir títulos novos, que embutem taxas de juros bem mais elevadas. Se confrontadas com turbulências, estas instituições veem-se forçadas a vender a qualquer preço os papéis indesejados. Sofrem prejuízos vultosos, passam a ser vistas com desconfiança pelos depositantes, perdem rapidamente ativos e ficam à beira da insolvência.
O problema é agravado, acrescenta Paul Craig Roberts, outro economista norte-americano, porque, desde 2008, o grande cassino financeiro global agigantou-se como nunca e qualquer perda pode ser devastadora. Roberts refere-se em especial ao mercado de “derivativos”, onde se aposta sobre o preço futuro de qualquer produto real (o petróleo, a soja, a carne) ou índice (a relação entre duas moedas, a taxa de juros, o crescimento do PIB). Só os cinco maiores bancos dos EUA detêm derivativos estimados em 188 trilhões de dólares, ou duas vezes o PIB de todos os países do mundo. Há quem acredite que o valor dos derivativos em negociação já ultrapassou 1 quatrilhão de dólares. Uma variação mínima numa cotação pode produzir um prejuízo insuportável e desencadear as perdas de que são vítimas agora os bancos norte-americanos e europeus.
Mas por que os bancos centrais do Ocidente alteraram abruptamente suas taxas de juros? Novamente é Michael Roberts quem explica. A partir de 2008, os BCs inundaram os mercados financeiros de dinheiro barato. Primeiro, para salvar os bancos. Em seguida, e durante 13 anos, emitindo dinheiro a partir do nada, em favor da oligarquia financeira que controla a maior parte dos títulos da dívida pública. Os juros, evidentemente, despencaram. A política foi chamada de quantitative easing. A justificativa era o chamado trickle down, ou gotejamento. O dinheiro despejado no topo da pirâmide social tenderia a correr para as arestas, dizia-se. O resultado foi o surgimento de um abismo de desigualdade, que hoje faz os cerca de 2 mil bilionários do mundo concentrarem mais riqueza que 60% da população planetária.
Esta política começou a dar sinais de esgotamento na virada da década – em especial após a pandemia de covid-19. O sinal mais evidente foi o aquecimento dos mercados de trabalho. Tendo recebido dos Estados alguma transferência direta de dinheiro (nos EUA, cheques de 2 mil dólares), parte dos assalariados desistiu de trabalhar, num fenômeno conhecido como “a grande demissão”. O diretor-geral do Fed, Jerome Powell, referiu-se explicitamente às dificuldades dos empresários, ao testemunhar, na semana passada, a um comitê do Senado norte-americano. Ele anunciou uma elevação mais rápida dos juros, até que os custos dos salários ficassem “sob controle”.
O aumento das taxas de juros é frequentemente apresentado como necessário para “reduzir a inflação”. No blog The next recession, o economista Michael Roberts demonstra, com base em inúmeros estudos internacionais, que esta relação ou é completamente falsa, ou no máximo muito indireta. Um trabalho do Banco Central Europeu demonstra, por exemplo, que é necessário elevar as taxas de juros em 1 ponto percentual para obter queda de inflação de apenas 0,1 ponto. O que motiva o Fed é promover a queda dos salários e o aumento dos lucros.
Num texto publicado nesta terça-feira, a revista Economist vai além. Lembra que ao resgatar, nesta segunda-feira (13/3), os três bancos norte-americanos quebrados, o Fed abriu, para todo o sistema bancário, uma linha de crédito favorecida e salvadora. Por meio dela, o BC dos EUA compra os papéis desvalorizados em poder dos bancos privados pelo valor de face – assumindo, portanto, as perdas. Significa mais uma vez, como afirmou o senador Bernie Sanders naquele mesmo dia, “o socialismo para os ricos e o individualismo mais cru para todos os demais”. Mas significa, também, que o Fed pode estar cogitando manter a elevação dos juros que golpeia os salários – já que estendeu, para a oligarquia financeira, uma rede de proteção tecida com dinheiro público…
O alastramento da crise para países europeus mostra o risco desta estratégia para o próprio sistema. É possível que os bancos centrais tenham brincado com fogo além da conta. Os próximos dias dirão.
O ponto positivo é que há alternativas. A procuradora norte-americana Ellen Brown, uma crítica refinada da arquitetura financeira atual, nota: os bancos não estão condenados a servir à oligarquia financeira. Um sistema bancário baseado em instituições públicas pode, perfeitamente, financiar um novo padrão de desenvolvimento – baseado em garantia de serviços públicos de excelência e renovação da infraestrutura. Há inúmeros exemplos, diz Brown, que cita os bancos públicos da China e, no passado, as próprias políticas do Fed – por exemplo, sob a presidência de Franklin Roosevelt.
O debate chegará ao Brasil.
Talvez, como de costume, a partir de um ponto de vista enviesado e
interesseiro. Na edição de hoje do Valor, Mário Mesquita, o
economista-chefe do Itaú, propõe não reduzir os juros brasileiros – há muito os maiores do mundo e o
dobro dos que vigoram nos países que vêm a seguir. “Seria muito
arriscado”, diz ele…
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