quarta-feira, 15 de março de 2023

Santa pedofilia | Os bispos que resistem em nome do seu poder são cúmplices

PORTUGAL

As dioceses de Lisboa e Porto decidiram não sujeitar os suspeitos de abusos sexuais de menores a medidas cautelares, assim como Santarém, onde o bispo justificou que o alegado abusador estava "deprimido". "Isto já não é incúria, é cumplicidade", condena Daniel Oliveira.

Daniel Oliveira* | TSF | opinião

No seu espaço de opinião na antena da TSF, o comentador nota que se "os abusadores foram e são uma pequena minoria entre os padres, mas se eles são árvore, o encobrimento que os protegeu é a floresta."

O relatório Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica é uma "descida às catacumbas mais seguras da Igreja", mas os números que revela serão "apenas a ponta do iceberg".

E, no entanto, "a cúpula da Igreja portuguesa mostrou na primeira reação não ter mudado um milímetro depois de ler este arrepiante relatório. O seu primeiro instinto foi mentir".

Daniel Oliveira lamenta que em Lisboa nada se tenha feito para afastar provisoriamente os suspeitos reconhecidos pela própria diocese - cinco de uma lista onde constavam 24 nomes - alegando que são precisas mais provas para tomar medidas.

No Porto, o bispo alegou que "não sabia que os abusos de menores eram crime público e achava que isto tudo podia resultar de puritanismo" e nada fez. E em Santarém manteve-se em funções um sacerdote que já foi condenado por abusar de duas menores, "porque o fez quando estava deprimido".

"O tema que interessa à maioria dos bispos é o mesmo de sempre, eles próprios: o perdão aos padres, os direitos dos padres, as depressões dos padres, mesmo quando o único debate era se protegiam as crianças com medidas administrativas cautelares. Era só isso que precisavam de dizer. Não se queriam condenações criminais com base em denúncias, ninguém pediu que os números dos suspeitos fossem afixados nas portas das igrejas. Só se queria um sinal de que perceberam o que leram e que agora estariam, pela primeira vez em 70 anos, concentrados no sofrimento das vítimas".

O objetivo dos bispos não será proteger os abusadores, mas sim o seu próprio poder, aponta Daniel Oliveira. "Se abandonassem clericalismo teriam de lidar com uma revolução na Igreja. Seria outra, mais próxima das comunidades cristãs originais, onde o poder destes homens - todos os homens - também seria outro. Não foi para proteger a Igreja que encobriram, foi para protegerem o poder do clero. Foi para se protegerem a si, enquanto grupo."

A exposição dos abusos sexuais devia obrigar os religiosos a debater temas que sempre tentaram evitar. A repensar o celibato, o papel das mulheres na Igreja, a "moral sexual repressiva, cada vez mais distante da vida dos fiéis" e a educação sexual de crianças, considera.

"Só pode saber o que é um abuso e proteger-se dele a criança que aprende, de forma adequada à sua idade, o que é o seu corpo e a sua intimidade", defende Daniel Oliveira, argumentando que a educação sexual não deve ser apenas responsabilidade da família, até porque a maioria dos abusos sexuais de menores em Portugal é perpetrado por familiares das crianças.

Perante a lei, as crianças não são propriedade dos pais, lembra o comentador. Esta "é uma ideia perigosa que as deixa desprotegidas para todo o tipo de abusos e negligências", e por isso mesmo "o dever de garantir a proteção e bem-estar das crianças e de toda a comunidade, e seguramente da escola".

O que pode a Igreja fazer para prevenir novos abusos? "Derrubar a cultura de encobrimento", "acabar com os lugares em que um adulto está sozinho e confinado com uma criança", como aconselha a Comissão independente, e promover a capacitação das próprias crianças para se protegerem. "A Igreja trata do que é intemporal, mas não vive fora deste mundo. Ou se adapta ou ficará enterrada num tempo que, felizmente, já não volta."

O certo é que algo mudou, diz Daniel Oliveira: "os fiéis nunca mais se calarão, nunca mais tolerarão o silêncio, mesmo que esse continue a ser o instinto destes bispos. A mudança virá dos próprios católicos. Se não vier, virá de todos nós, porque os abusos de crianças nos dizem respeito a todos".

* Texto: Carolina Rico

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