terça-feira, 9 de maio de 2023

Portugal | FOI PENA, FOI

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Em 47 anos de democracia, vimos tantas formas de presidir como os eleitos (a presidência é função quase sem guião), e muitos conflitos entre governos e presidentes - alguns particularmente violentos. Vimos muita coisa penosa; esta foi mais uma.

Há muita falta de memória na política, disse uma vez Jorge Coelho. Na verdade há em geral, em todas as esferas, públicas e privadas, falta de memória. Quer porque as pessoas esquecem genuinamente, quer porque se fazem esquecidas.

Daí que, quando ouvi e li tanta gente a qualificar a reação do primeiro-ministro à sugestão do PR de que exonerasse um ministro, e a posterior reação do PR, como algo de gravidade e tensão nunca vista no relacionamento institucional entre estes dois cargos, me tenha perguntado se seria a única a lembrar o conflito entre Eanes e Sá Carneiro (com o então primeiro-ministro a acusar publicamente o presidente de "desejo insaciável de poder", e "oportunismo", a descrevê-lo como o "cúmulo do cinismo, da hipocrisia e da ambição pessoal", e a imputar-lhe "mediocridade"). Ou a forma como Soares fez a vida negra aos governos de Cavaco Silva. Ou, mais recentemente, o insuperável episódio das "escutas de Belém", com um assessor de Cavaco a municiar um jornal com suspeitas mirabolantes de "vigilâncias" perpetradas pelo governo e o presidente a pedir, à beira das legislativas, "limpeza" policial aos seus gabinetes.

Não, não faltam na democracia portuguesa episódios rocambolescos - para usar uma expressão muito repetida durante estes dias - nem conflitos acesos, com imputações inclusive insultuosas, entre primeiros-ministros e presidentes. Por outro lado, não falta, também, evidência de que cada locatário do palácio de Belém interpreta e reconfigura as funções da presidência, nomeadamente até onde vai no que respeita a interferência na esfera da governação - podendo ser pacífico concluir que, de um modo geral, irá até onde o deixarem ir.

Tem sido quase sempre, mesmo quando PR e PM advêm da mesma área política (veja-se Cavaco/Passos, uma coabitação não isenta de conflito), um jogo de medição de forças, de avanços e recuos, aquele a que temos assistido ao longo dos 47 anos que se contam desde que (em 1976) se elegeu democraticamente um presidente e uma Assembleia da República. E é normal: sendo o cargo de presidente destituído de poderes efetivos (para além, já se sabe, do de dissolver o parlamento), quem o desempenha tenta encontrar uma forma de não ser apenas uma espécie de figura majestática, e, invariavelmente, acaba a pisar, com maior ou menor afinco e perversidade, os calos do governo.

Não quer isto dizer que o que se passou agora não tenha relevância; não me lembro (lá está) de ver um PM a fazer o que António Costa fez. E que fez António Costa? Como muito bem descreveu o advogado/comentador Magalhães e Silva na SIC-N, abdicou de demitir um ministro que queria demitir para tornar claro a Marcelo Rebelo de Sousa (e ao país) que este não pode continuar a querer decidir a composição do governo sob ameaça de dissolução. Na formulação de Magalhães e Silva, Costa, para defender aquilo que são as funções que a Constituição lhe outorga, "foi forçado" por Marcelo a não demitir João Galamba.

Aquilo que muitos descreveram como "um desafio" do PM ao PR é assim lido como uma defesa do regular funcionamento das instituições - a instituição governo e a instituição presidência, no caso. Mas mais: na verdade, esta leitura coloca Marcelo no lugar do desafiador. Afinal, foi o presidente que andou nos últimos meses a brincar com a ideia da dissolução, chegando mesmo ao ponto de, a 21 de abril, sublinhar que "se necessário" dissolveria o parlamento: "Seria uma má notícia - e nós normalmente dispensamos as más notícias - ter de introduzir um fator adicional político complementar, a meio deste período de execução de fundos e de enfrentamento da situação económica e financeira existente... [mas] às vezes tem de haver más notícias..."

Foi neste clima de ameaça permanente, portanto irresponsável, que António Costa teve de decidir se seguia o conselho público - que surgia assim como uma ordem - do PR para demitir o ministro ou mantinha o ministro para preservar aquilo que é a sua esfera de poder.

Sabemos como decidiu. Foi pena, disse o presidente na sua declaração de quinta-feira, naquele tom de sermão bonacheirão que por vezes adota.

Concordo: foi pena ter-se chegado aqui, quando era muito evitável.

Era decerto muito evitável a maluqueira que parece ter-se apossado do gabinete do ministro das Infraestruturas; ver o ministro a partilhar com os media as mensagens que trocou com o adjunto (onde chegámos), a contar em conferência de Imprensa a que membros do governo ligou, quem não atendeu, quem atendeu e que disse.

Como evitável seria ver o primeiro-ministro a acusar alguém, numa comunicação ao país, de agressões e roubo; por mais que esteja certo de que foi isso que aconteceu, não é costume, para além de avisado, esperar por investigações e condenações?

Era, ainda, muito evitável o presidente, o mesmo que encheu o seu sermão da palavra responsabilidade e das consequências da sua falta, não conseguir controlar-se nas suas provocações e comentários constantes. Sobremaneira evitável, se achava que Galamba devia sair (e Galamba devia sair, e o governo tem de, caramba, atinar), tentar exonerá-lo pelos media - ao invés de o ter feito saber em privado ao PM. E, por fim, evitável ter-se colocado na situação de meter a viola no saco quanto à dissolução ("Não fazer aquilo que por aí andam como cenários (...) Comigo não contem para criar esses conflitos") para logo de seguida ameaçar com estar "mais atento e mais interveniente" para "evitar o recurso a poderes de exercício excecional" que, reafirma, "a Constituição me confere e dos quais não posso abdicar".

OK, é Marcelo Rebelo de Sousa. Já sabemos: não muda. E é pena, porque muito do que disse na sua declaração é sensato, verdadeiro e importante.

Foi pena que o tenha dito a propósito de uma situação que poderia ter resolvido de muito melhor maneira se aceitasse os seus próprios conselhos e lições. Se se lembrasse, mas a sério, não em figurado, que "a autoridade, para existir, ser confiável, ser credível, ser respeitada, tem de ser responsável".

E de que "a responsabilidade política (...) implica olhar para os custos objetivos daquilo que aconteceu (...). É mais do que pedir desculpa, virar a página e esquecer. É pagar por aquilo que se faz ou se deixou fazer. (...) Não se apaga dizendo que já passou. Não passou. Nunca passa. Reaparece todos os dias, todos os meses, todos os anos. Porque tem de existir para que os Portugueses se não convençam de que ninguém responde por nada."

Tudo certo. Só falta pôr (porem) em prática.

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