Cena do documento ‘Estou me
Guardando para Quando o Carnaval Chegar” (2019), de Marcelo Gomes
Novo livro afiança: desencanto
político e erosão do trabalho são inseparáveis. Ao criar multidões sem
direitos, salários dignos ou força sindical, neoliberalismo alimentou
ressentimentos e abriu portas ao fascismo. Nos EUA, sindicalismo reage
Ruy Braga* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
Washington e Henry Ford são os
símbolos da civilização americana.
E, no geral, esse julgamento instintivo está correto.
C. L. R. James, American Civilization
(Cambridge, Blackwell, 1993)
Desde o ataque ao Capitólio no
dia 6 de janeiro de 2021, tornou-se lugar-comum afirmar que as instituições
responsáveis pela regulação da democracia liberal encontram-se sitiadas por
vândalos movidos a fake news. Ressalvadas as diferenças, a tentativa de
golpe de Estado em Brasília provou dois anos depois que a ameaça autoritária
não mais se contenta em desmantelar por dentro a ordem democrática liberal. Lá
e cá, enquanto o compromisso da esquerda e da centro-esquerda com o socialismo
democrático permaneceu silente, a extrema direita seguiu trombeteando seu
desejo de abater o regime político liberal a tiros, pouco importando se de
colecionador, atirador desportivo ou caçador.
Imediatamente após o fracasso da
intentona bolsonarista, as opiniões se alinharam aos campos aglutinados pela
polarização política vigente no momento. Enquanto muitos apontaram para o
perigo do fascismo, outros tentaram atenuar a ação golpista evocando o sacrossanto
direito à liberdade de expressão. Se os distúrbios em Brasília e em Washington
não nos lançaram no abismo autoritário, ainda assim parece claro se tratar de
dupla historicamente extraordinária, devendo ser tratada com a devida atenção.
Acompanhando Steven Levitsky e
Daniel Ziblatt, diríamos que, quando as instituições da democracia liberal se
mostram vulneráveis a ataques externos, é porque elas já sofrem um acelerado
desmanche interno1. Outrora protagonistas da cena política, os partidos carecem
de poder para implementar programas que respondam às angústias de seus
constituintes. Em diferentes sociedades nacionais, é possível perceber que
forças progressistas, a fim de ampliar seu contingente eleitoral, têm avançado
sistematicamente rumo ao centro, tentando atrair eleitores conservadores,
enquanto enfrentam uma extrema direita cada dia mais racista e reacionária,
capaz de amealhar inusual apoio nas classes subalternas[2].
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Esta é a introdução do livro A angústia do precariado – Trabalho e solidariedade no capitalismo racial, de
Ruy Braga, publicado pela Editora Boitempo, parceira editorial de Outras
Palavras. Quem colabora com nosso jornalismo tem 20% de desconto. Saiba como apoiar
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O resultado dessa crise de
hegemonia[3] pode ser observado por toda a América Latina: a consolidação de
uma polarização assimétrica, que opõe um progressismo vacilante a seus
determinados inimigos da extrema direita. Trata-se de um quadro bem diferente
daquele verificado no passado recente. Entre 1998 e 2016, por exemplo, apesar
das amarras neoliberais, um ciclo politicamente progressista favoreceu
diferentes governos de centro-esquerda na América do Sul4. Empregando alguma
“contabilidade criativa” seria possível incluir até mesmo os governos de Barack
Obama nessa “onda rosa”[5].
No entanto, após a eleição de
Donald Trump, a restauração conservadora tomou conta da região. Momento
culminante da nova vaga, a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 marcou igualmente
seu ponto de inflexão. A partir de então, insurgências plebeias na Bolívia, no
Chile, na Colômbia, em Honduras e no Peru impulsionaram vitórias eleitorais de
forças progressistas no subcontinente, enquanto governos neoliberais
fracassados na Argentina e no México ajudaram a revitalizar projetos
centro-esquerdistas nesses países[6].
As vitórias de Joe Biden em 2020
e de Lula da Silva em 2022 sugerem que a “normalidade” política parece estar
retornando às maiores democracias liberais do continente. No entanto, as
estreitíssimas margens de suas respectivas vitórias anunciam que o fantasma da
extrema direita seguirá assombrando as Américas por um bom tempo. No Chile, por
exemplo, logo após a vitória de Gabriel Boric na eleição presidencial de 2021, a esmagadora derrota
da esquerda no plebiscito constitucional em setembro de 2022 e a vitória em
maio de 2023 da extrema direita na votação para o novo conselho constitucional
evidenciaram um cenário político volátil e sombrio. Os casos equatoriano e
peruano avançam na mesma direção.
Onde ainda se encontram mais ou
menos ativos, na Argentina, no Brasil, no México e, em menor medida, nos
Estados Unidos, os sindicatos pesam cada dia menos nas decisões estratégicas
dos partidos políticos. Outrora considerados as principais forças de ligação
entre trabalhadores e lideranças políticas, eles enfrentam no mundo todo taxas
de densidade declinantes sem aparentemente contar com um plano alternativo ao
habitual apoio a políticos menos hostis às pautas corporativistas.
Especializado em representar uma classe trabalhadora fordista em vias de
desaparecer, o sindicalismo luta para se reinventar. Porém, sem saber
exatamente como.
Não por acaso, o declínio
trabalhista em escala global foi acompanhado pelo aumento da desigualdade entre
as classes sociais, pelo crescimento da alienação política e pelo fortalecimento
do chauvinismo. Ainda assim, com as exceções de Adam Przeworski e de Wolfgang
Streeck, a esmagadora maioria dos diagnósticos a respeito da atual crise da
democracia liberal desconsidera a importância da devastação das organizações de
representação e de luta dos trabalhadores na compreensão da ameaça nacionalista
autoritária[7].
Priorizando explicações
institucionalistas para a escalada autoritária, essas análises desperdiçam a
chance de inserir a ameaça da extrema direita no contexto das implicações
socialmente devastadoras sobre as classes subalternas da crise da globalização
neoliberal. Consequência previsível dos incessantes ataques ao maior
responsável pela democratização das sociedades nacionais, isto é, o movimento
organizado dos trabalhadores, a atual crise sociorreprodutiva das classes
subalternas deveria estar no centro do debate sobre a crise da democracia. Nem
de longe esse é o caso.