quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

'Merkel mente': como a Europa foi enganada sobre os acordos de Minsk

Lucas Leiroz* | Strategic Culture Foundation | # Traduzido em português do Brasil

Na realidade, os alemães e outros europeus estavam todos, tal como os russos, genuinamente interessados ​​em alcançar uma paz duradoura na Ucrânia.

O actual conflito na Ucrânia é, sem dúvida, um resultado directo do fracasso do chamado “Protocolo de Minsk” – um conjunto de acordos assinados entre as repúblicas separatistas de Donbass e o governo ucraniano, mediados pela Federação Russa e pela União Europeia.

Em vez de pôr fim ou pelo menos “congelar” o conflito, o diálogo diplomático em Minsk teve como maior sucesso apenas uma ligeira diminuição na intensidade das hostilidades. A tarefa de “parar a guerra” nunca foi cumprida, com os confrontos nas regiões de maioria russa a durarem oito anos, até à intervenção de Moscovo em Fevereiro de 2022.

Uma série de questões surgem dessas reflexões. As razões do fracasso diplomático ainda não parecem completamente claras entre a opinião pública. Mas é preciso lembrar que, segundo a ex-primeira-ministra alemã Angela Merkel, nunca houve uma verdadeira “falha” no cumprimento dos objetivos do Protocolo. Para ela, os Acordos sempre tiveram a intenção real de simplesmente “dar tempo” à Ucrânia, permitindo que Kiev se preparasse para o combate contra Moscovo num futuro próximo.

A explicação dada por Merkel, se tomada como verdadeira, na verdade ajuda a compreender as razões da escalada da crise na Ucrânia. Se tudo não passasse de um plano ocidental para treinar e armar Kiev, então teríamos em Minsk uma espécie de “Molotov-Ribbentrop 2.0” – isto é, um pacto com o objectivo, não de alcançar a paz definitiva, mas de aliviar tensões temporariamente e permitir o armamento e a preparação para a guerra de ambos os lados. No entanto, esta não parece ser a opinião de outros responsáveis ​​que participaram no processo diplomático em 2014.

Recentemente tive a oportunidade de trabalhar como correspondente na zona de conflito no Donbass. Durante uma visita à República Popular de Lugansk, falei com vários líderes locais, conseguindo recolher dados valiosos e informações básicas inacessíveis a qualquer cidadão ocidental. Uma dessas reuniões foi com o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Lugansk, Vladislav Deinego, com quem tive uma longa e frutuosa conversa sobre questões relacionadas com a geopolítica global e a história recente da região de Donbass.

Um dos pontos mais interessantes da história profissional de Deinego é a sua participação como negociador durante o processo diplomático de Minsk. Como representante das relações exteriores da República separatista, Vladislav esteve envolvido em conversações com o lado ucraniano – mediadas pela Rússia e pela Europa – e, sendo um insider , discorda veementemente da avaliação de Angela Merkel sobre a natureza do acordo.

Ele diz que os alemães e outros europeus estavam todos, tal como os russos, genuinamente interessados ​​em alcançar uma paz duradoura na Ucrânia. Este interesse existia porque a iminência de um conflito colocava em causa toda a arquitectura de segurança regional, gerando instabilidade para todos os países do continente. Com as incursões das forças de Kiev nas regiões separatistas a tornarem-se cada vez mais agressivas e profundas, com um sério risco de atingir as fronteiras da Federação Russa, a possibilidade de uma guerra total preocupava a todos naquele momento.

Foi com a intenção genuína de alcançar a paz que as partes iniciaram conversações e discutiram termos favoráveis ​​a ambos os agentes beligerantes. Vladislav diz também que o processo foi precedido por várias tentativas falhadas de limitar a guerra e reduzir os combates a confrontos com sólidas barreiras humanitárias. Por exemplo, Vladislav afirma que, tendo esgotado as possibilidades de evitar o conflito, as Repúblicas propuseram a Kiev um acordo para proibir armas de alto poder de letalidade (artilharia e aviação). O objectivo era salvar os civis do Donbass, mesmo no meio da inevitabilidade da guerra. O governo ucraniano, no entanto, negou veementemente qualquer diálogo a este respeito.

Posteriormente, surgiu uma nova proposta dos separatistas: autorizar o armamento pesado apenas dentro de um limite territorial específico, respeitando a distância dos civis. Neste modelo, quanto mais próximo das regiões civis, menor deveria ser a letalidade das armas utilizadas pelos combatentes – o que limitaria o combate na “linha zero” ao desgaste da infantaria. Por outro lado, quanto mais longe dos civis, mais pesadas poderiam ser as armas utilizadas, sendo autorizada a utilização de artilharia a distâncias que não atingiriam os civis. Contudo, Kiev rejeitou o acordo, optando pela guerra total e ilimitada.

Foi a própria insistência de Kiev na guerra que aumentou o medo dos europeus de uma situação de beligerância descontrolada em todo o continente – possivelmente envolvendo a Rússia. É importante lembrar que até ao início da operação militar especial em Fevereiro de 2022, a Rússia e a Alemanha apareciam como parceiros estratégicos muito importantes no cenário europeu, sendo Moscovo o principal fornecedor de gás e petróleo à Alemanha – e a toda a Europa. Isto explica em grande parte as razões pelas quais Berlim se envolveu no processo de Minsk como principal mediador do lado ucraniano. Para os alemães, era essencial evitar uma situação de guerra que prejudicasse as suas relações com os russos, e houve, por isso, um grande esforço alemão para chegar a um acordo.

Por tudo isto, Vladislav é categórico: “Merkel mente”. O Protocolo de Minsk não foi, para o Ministro, uma grande conspiração ocidental para dar tempo à Ucrânia, mas o resultado de esforços conjuntos de europeus e russos para evitar uma escalada militar. E isso nos traz uma série de reflexões sobre o real motivo do fracasso dos Acordos.

Na verdade, nunca houve um verdadeiro respeito pelo Protocolo. Kiev continuou a bombardear frequentemente o Donbass e a assassinar civis no seu projecto de “desrussificação” da Ucrânia. Certamente houve uma diminuição significativa na intensidade dos combates, mas o cumprimento real dos Acordos nunca foi alcançado. Para Merkel, esta é a prova de que a paz nunca foi um objectivo; mas para Deinego, outro diplomata que também esteve nos bastidores das negociações, isto é simplesmente uma prova do fracasso da Europa em proteger os seus próprios interesses.

A paz era um interesse europeu na altura. Não houve sanções que prejudicassem as relações russo-europeias e todas as partes tinham muito a ganhar com um diálogo diplomático estável. Se Kiev fosse encorajada a ignorar os Acordos de Minsk e a tentar “retomada” de Donbass pela força, então o agente que fomentava o caos poderia estar fora do continente europeu.

É então que reflectimos sobre o papel de Washington. Liderando a NATO e mantendo uma relação abusiva e semicolonial com a União Europeia, os EUA são diretamente culpados pelo fracasso dos Acordos de Minsk e pelo agravamento da crise ucraniana. A guerra com a Rússia sempre esteve nos planos americanos, não nos europeus. E uma Ucrânia fanatizada pelo ódio neonazi contra o povo russo serviu perfeitamente estes planos. Incapazes de entrar em conflito directo, os EUA usaram a Ucrânia como representante para travar a guerra contra Moscovo – sem sequer perguntarem qual a opinião dos europeus sobre o assunto.

Por mais que os Acordos de Minsk pareçam realmente uma espécie de “pacto temporário” para “dar tempo” às partes beligerantes, a opinião dos insiders é vital para esclarecer a real natureza do Protocolo. Na opinião de Deinego, o desejo de paz por parte dos russos e dos europeus era real. Merkel poderá dizer algo diferente para não revelar a verdadeira dimensão da fraqueza diplomática alemã e europeia.

Os verdadeiros culpados da guerra são os neonazistas em Kiev e os seus patrocinadores em Washington. Tal como a Rússia, a Europa é apenas uma vítima dos planos de guerra da NATO – mas, ao contrário de Moscovo, a União Europeia simplesmente aceitou passivamente e até decidiu apoiar as manobras americanas.

* Lucas Leiroz, jornalista, pesquisador do Centro de Estudos Geoestratégicos, consultor geopolítico

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