Retórica de globalização naufraga e EUA perdem fôlego de impor seu poder. Mas têm uma infraestrutura militar com 700 bases no mundo. E a história ensina que, em busca de sobrevida, impérios decrépitos colocam suas fichas na guerra sem fim
José Luís Fiori* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
O texto a seguir integra a edição nº 5 (maio de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui
Em outubro de 2023, ao voltar de uma viagem relâmpago a Israel para dar apoio ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o presidente norte-americano Joe Biden afirmou, num discurso feito no Salão Oval da Casa Branca, que “o mundo está vivendo uma virada histórica, porque a ordem mundial do pós-Segunda Guerra perdeu fôlego, e é necessário construir uma nova ordem”.[i]
Quase no mesmo momento, na
comemoração do décimo aniversário da “Nova Rota da Seda”, realizada em Pequim
nos dias 17 e 18 de outubro de 2023, os presidentes Xi Jinping, da China, e
Vladimir Putin, da Rússia, defenderam em conjunto a necessidade de “uma nova
ordem mundial que respeite a diversidade das civilizações”.[ii] Um
pouco antes, na véspera da 18ª Cúpula do G20, realizada
Por fim, de forma ainda mais categórica, Joseph Borrel, chefe da política externa da União Europeia, declarou em fevereiro de 2024, “que a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”.[iii] Uma manifestação e um reconhecimento categórico dos líderes das cinco principais potências do mundo. No entanto, por trás desse aparente consenso escondem-se grandes divergências conceituais e políticas.
Para começar, eles não estão falando necessariamente da mesma coisa, nem do mesmo período histórico, porque existiram pelo menos duas grandes “ordens” ou “ordenações mundiais” que se sucederam, a contar do fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira vigorou entre 1945 e 1991 e foi apoiada pelas duas potências que saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial: EUA e URSS.
Foi, no entanto, arquitetada de fato e liderada pelos EUA, graças à sua supremacia atômica conquistada em Hiroshima e Nagasaki, e graças à sua supremacia econômica consagrada pelos Acordos de Bretton Woods, que fizeram do dólar americano a moeda de referência da economia capitalista mundial. Fazem parte desta primeira “ordem mundial” quase todas as instituições multilaterais surgidas a partir da criação das Nações Unidas, em outubro de 1945, ao lado do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio, da Organização Mundial da Saúde, para citar as mais importantes.
A crise dessa “ordem mundial”, entretanto, começou já na década de 70 do século passado, quando os EUA abandonaram os Acordos de Bretton Woods e se descomprometeram, unilateralmente, com relação à paridade entre o dólar e o ouro que havia sido definida por eles mesmos, em 1944. O abandono do “padrão dólar” veio junto com a primeira grande crise econômica do mundo capitalista do pós- Segunda Guerra Mundial, que atravessou as décadas de 1970 e 1980 e foi marcada por sucessivos “choques do preço do petróleo” e aumentos da taxa de juros norte-americana.
Houve, ainda, a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã, em 1973, e foi por isto que naquele momento muitos analistas internacionais falaram, pela primeira vez, de uma “crise terminal da hegemonia norte-americana”. Mas logo em seguida, como resposta a essa crise, os EUA lançaram uma ofensiva militar contra a URSS, que veio acompanhada pela grande “revolução conservadora” dos anos 1980, que se desfez dos compromissos “keynesianos” e “desenvolvimentistas” do pós- Segunda Guerra Mundial e abriu as portas para o avanço de um novo projeto econômico global liderado pelas potências anglo-saxônicas: o neoliberalismo, que avançou como um tufão, ajudando a derrubar o Muro de Berlim e acabando com a bipolaridade estratégica da Guerra Fria.
Na década seguinte, os EUA se aproveitaram de sua nova posição de poder e assestaram um último e definitivo golpe na “ordem multilateral” que eles haviam criado, no momento em que atacaram a Iugoslávia, em 1999, sem autorização prévia do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A mesma coisa que voltariam a fazer em 2003, quando invadiram o Iraque sem contar com o aval do Conselho de Segurança e, desta vez, com a oposição da maioria absoluta da Assembleia Geral da ONU. Foi assim que se encerrou, de forma definitiva e melancólica, a primeira “ordem mundial hegemônica” do pós- Segunda Guerra Mundial; e foi nesse momento, e não mais tarde, que o Conselho de Segurança da ONU perdeu toda e qualquer eficácia e legitimidade, por obra de seus próprios criadores.
Nascia então uma nova “ordem mundial”, sustentada agora pelo poder unipolar dos EUA, conquistado por meio de suas vitórias na Guerra Fria (1989/91) e na Guerra do Golfo (1991/92). Nessa nova ordem unipolar, os EUA se reservaram desde o início o direito unilateral de fazer “guerras humanitárias”, e de declarar e atacar o “terrorismo” em qualquer lugar do mundo, segundo seu exclusivo arbítrio, e já sem nenhuma preocupação com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança, que foram sucateados literalmente em 1999.
Este novo poder global unipolar dos EUA potencializou ainda mais o projeto econômico neoliberal de abertura e desregulação dos mercados e globalização das finanças mundiais, que passaram a ser geridas, em última instância, pelo Banco Central dos EUA e seu sistema SWIFT de intermediação financeira e pagamentos internacionais.
Esta segunda “ordem mundial” – unipolar e neoliberal – do pós-Guerra Fria começa a perder fôlego a partir da grande crise financeira de 2008, que abalou a economia americana e atingiu em cheio a economia europeia. Foi ali que começou o chamado processo da “desglobalização” da economia mundial, que viria a se acelerar com a pandemia de covid-19, com a guerra econômica dos EUA contra a China e, sobretudo, com o início da Guerra da Ucrânia, em 2022.
Mais ainda, depois do fracasso da aposta ocidental numa verdadeira guerra de sanções econômicas contra a Rússia, que não alcançou seu objetivo e ainda por cima produziu um efeito bumerangue sobre a economia europeia, que entrou num profundo e prolongado processo de estagnação econômica.
Muito antes de tudo isto, entretanto, as “guerras sem fim” dos EUA, que começaram no final do século XX, desvelaram aos poucos uma “dimensão oculta” dessa nova ordem mundial, escondida por trás da retórica da globalização: a construção de uma infraestrutura militar global, com mais de 700 bases militares distribuídas ao redor de todo o mundo, e controlada diretamente pelos EUA, mesmo no caso de organizações regionais como a Otan.
Ou seja, aos poucos foi ficando mais claro que a condição sine qua non do projeto da globalização econômica, sem limites nem fronteiras, era a instalação de uma nova espécie de “império militar global”, um segredo que foi guardado a sete chaves pela retórica missionária do neoliberalismo defendido por EUA, Inglaterra e seus sócios do G7. E é precisamente esse projeto militar global dos EUA e da Otan que está sendo desafiado pela ascensão militar da China, pela resistência do Irã e pelo limite que lhe foi imposto pela Rússia, primeiro na Geórgia, em 2008, e depois na Ucrânia em 2022. E é essa ordem mundial “imperial cosmopolita” que está “perdendo fôlego” e já entrou em acelerado processo de desintegração.
Assim mesmo, quando Joseph Borrel declara que “a era do domínio Ocidental acabou”, ele está se referindo a outra crise, muito mais complexa, profunda e prolongada: a crise do poder e da hegemonia ocidental no sistema internacional que os europeus conquistaram e dominaram, de forma quase absoluta, nos últimos 300 anos.
Para se ter uma ideia aproximada do tamanho e do impacto dessa crise, basta lembrar que no início do século XX, logo depois da Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico tinha uma extensão de 35,5 milhões de km2 e ocupava 23,84% da superfície terrestre. Junto com os impérios coloniais de França, Bélgica, Portugal e Holanda, o Ocidente europeu chegou a dominar cerca de 40% do território e da população mundiais.
Hoje, entretanto, a Inglaterra está ameaçada de perder seu domínio sobre a Escócia e a Irlanda, por onde começou de fato o Império Britânico. A França está sendo expulsa da África e já não é mais do que um simulacro da potência imperial que foi no passado, e o mesmo deve ser dito dos demais Estados europeus que sobrevivem escondidos atrás da proteção atômica da Otan. Sendo que, nas últimas duas décadas, os próprios Estados Unidos vêm sofrendo sucessivas derrotas militares e fracassos políticos no Iraque, na Síria, no Afeganistão, na Ucrânia, para não falar de sua própria “guerra civil-eleitoral” interna. Ao mesmo tempo, assistem paralisados ao desgaste progressivo de sua credibilidade moral, graças ao apoio militar e financeiro que deram ao massacre do povo palestino da Faixa de Gaza.
Como consequência desses sucessivos reveses, o “velho Ocidente”, que era considerado sinônimo da “comunidade internacional” até bem pouco tempo atrás, vem perdendo força e legitimidade, e hoje não tem mais capacidade de impor seus critérios, seu arbítrio e poder sobre o resto do mundo. Mesmo assim, não há o menor sinal de que este “Ocidente reduzido” esteja disposto a abrir mão do poder que acumulou nos últimos séculos. Além disso, a história ensina que as grandes potências e os impérios não costumam ceder seu poder sem resistir, sem guerrear.
Nota: [i] Reuters, UOL Noticias, 23/10/2023.
* Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI. Coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”. Coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”. Pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou, “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007 ; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 2011 ; e, “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.
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