segunda-feira, 3 de junho de 2024

Portugal | NÃO AO PAÍS DESIGUAL E POBRE

Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

A condescendência com a pobreza continua nas entranhas deste país. Temos muita pobreza porque não conseguimos criar riqueza, ou porque é profunda a desigualdade na sua distribuição? Talvez pela convergência das duas causas. A nossa frágil cultura de cidadania e de responsabilidade cívica também alimenta este grave problema.

No espaço de uma semana tivemos a evocação dos 50 anos da criação do salário mínimo nacional, que se foi transformando no salário nacional; uma forte propaganda sobre os impactos da Reforma Fiscal do Governo; e a campanha do Banco Alimentar. Nestes acontecimentos vimos expressões daquela condescendência, num quadro em que o valor médio dos salários devia estar 20% acima do valor que tem hoje, com a produção de riqueza existente.

Os salários não crescem por efeito conjugado de seis fatores: i) não há efetiva negociação coletiva e os sindicatos estão muito fragilizados; ii) a primazia à redução da dívida sobrepõe-se a aumentos salariais justos - recentemente o jornal francês “Nouvel Obs” referiu-se à recuperação “espetacular” das finanças públicas, mas com “pesado custo social” e político, porque as pessoas se “sentem desvalorizadas”; iii) o peso enorme (e crescente) de setores de atividade de baixo valor acrescentado e atrasos na modernização da Administração Pública; iv) os acordos de Concertação Social instituíram um rol de sacrifícios aos trabalhadores (e benesses às empresas), para “garantir competitividade”, sem que os trabalhadores beneficiem dos ganhos de produtividade; v) a desvalorização das profissões e qualificações; vi) os condicionalismos e subjugações a que estão sujeitos os jovens.

O aumento dos salários não é substituível por medidas fiscais pontuais. As propostas da Direita, no que diz respeito ao IRS, resumem-se quase só ao minar da progressividade deste imposto para desobrigar os que mais ganham do seu dever de participação na organização de uma sociedade mais justa em que a ação pública reequilibre aquilo que o mercado, o individualismo e o assistencialismo não são capazes de fazer.

Quanto ao IRC, o que é proposto é a crença liberal de que menos impostos equivale a uma economia fulgurante. Isso é falso, mas beneficia do beneplácito de uma imprensa acrítica, que trata como “estudo” qualquer lixo ultraliberal. O objetivo primeiro da proposta é desonerar os poucos que lucram muito. O que resulta disto tudo é um Estado enfraquecido, que cede o seu lugar ao assistencialismo caritativo e coloca no negócio a prestação dos serviços fundamentais às pessoas.

O Banco Alimentar - para o qual também contribuo - é a expressão maior da cultura da esmola em substituição da cidadania social plena. É uma solidariedade que não transforma, condição primeira que o Papa Francisco coloca para que a solidariedade seja efetiva. Contudo, os nossos governantes (e não só) deviam envergonhar-se: as centenas de milhares de famílias que recorrem a apoios do Banco Alimentar (onde estão imensas pessoas que trabalham) recebem dali mais apoio que de todas as medidas fiscais que o Governo propagandeia.

O poder patronal unilateral é inimigo do desenvolvimento das empresas, não pode continuar a ser protegido. A valorização dos salários é imprescindível. Devemos envergonhar-nos por condescendermos com a pobreza.

* Investigador e professor universitário

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