domingo, 2 de junho de 2024

Portugal | O OUTRO LADO DOS 50 ANOS DE ABRIL

Otelo Saraiva de Carvalho

Selecionado por Artur Queiroz*, Luanda

Hoje envio um texto de M. Ricardo Sousa, pensador libertário, sobre os 50 anos do 25 de Abril. Uma visão diferente que a censura oficial não deixa conhecer. Porque meio século depois da Revolução dos Cravos, existe em Portugal uma Redacção Única para toda a Comunicação Social pública e privada. E está montada uma censura férrea que consiste no bombardeamento informativo, sem filtro. E na confusão entre Notícia e Entretenimento. 

Uma revolução impossível? Sim, argumentarão alguns. Impossível dentro dos limites de Portugal. Impossível porque uma ilha de comunismo libertário não pode existir no mar da produção capitalista e da consciência capitalista […] Mas os homens e as mulheres sonharam “impossíveis”. Procuraram constantemente “escalar o céu” em busca do que consideravam justo.

Maurice Brinton

Manifestação na Calçada do Combro após o fim da ditadura

Nessa data, deu-se um golpe militar executado por jovens oficiais, principalmente capitães, tenentes e oficiais milicianos, para derrubar a ditadura portuguesa, que havia sido instalada por um golpe militar conservador executado em 28 de Maio de 1926. O chamado movimento dos capitães que depois ficaria conhecido por Movimento

das Forças Armadas (MFA) iniciou-se como uma movimentação corporativa de jovens oficiais, mas logo ganhou um carácter político, tornando-se dominante a posição de que era necessário derrubar a ditadura e dar início a negociações com os guerrilheiros africanos, para por fim à Guerra Colonial que durava mais de uma década em três frentes: Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.

A Guerra Colonial foi pois o factor decisivo que impulsionou os jovens militares portugueses a derrubar a ditadura e o elemento congregador das diferentes opiniões políticas, que iam do convencional conservadorismo até posições democráticas e uns quantos, poucos, com uma formação de esquerda tradicional. Já entre os oficiais milicianos provenientes das universidades havia um número significativo influenciados pelo PCP e pelas ideias da esquerda radical que estavam cada vez mais presentes no movimento estudantil.

Não se estranha que o primeiro programa do MFA fosse minimalista. A acção militar não previa sequer a prisão e julgamento dos principais responsáveis da ditadura e da polícia política, que lhe dava suporte e era conhecida pela prática sistemática de tortura, sendo esta uma das omissões mais significativas, que nem a radicalização da revolução conseguiu superar. Também a libertação de todos os presos políticos não estava prevista e só a pressão popular e a luta dos presos possibilitou que todos saíssem das prisões nos dias seguintes à queda da ditadura.

No próprio dia 25 de Abril de 1974, um factor imprevisível entrou em cena, o povo, que, contrariando os apelos do MFA, sistematicamente repetidos na rádio e televisão para que ficassem em casa, saiu às ruas e teve um importante papel psicológico, seja nas tropas insubordinadas, seja nos detentores do poder que puderam constar o apoio popular à derrubada da ditadura desestimulando a resistência.

Nesse dia, o último Presidente do Conselho do governo autoritário, Marcelo Caetano, ao se render, declarou que o fazia “para que o Poder não caísse na rua”. Era profética a sua declaração, pois seria isso mesmo que, de certa forma, iria acontecer nos meses seguintes.

A partir desse dia, a presença massiva da população nas ruas das principais cidades do país e as grandiosas manifestações do Primeiro de Maio desse ano, tornava claro que o golpe militar teria de contar com um novo actor, o Povo. Tanto mais que essa presença era espontânea e não correspondia à chamada dos pequenos partidos da oposição anti-fascista.

Efectivamente, nos primeiros meses da Revolução, o Partido Comunista, a força maioritária da resistência à ditadura, as pequenas organizações maoistas e trotsquistas, as organizações de luta armada como o PRP-BR e a Luar não passavam de algumas centenas de militantes e simpatizantes, e no caso do PCP alguns poucos milhares. Quanto aos anarquistas que haviam tido um significativo peso histórico até aos anos trinta, seja através da Confederação Geral do Trabalho (CGT), de raiz anarco-sindicalista, seja através da União Anarquista Portuguesa e da Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), praticamente tinham desaparecido face à dura repressão da ditadura. Essa repressão atingiu o seu auge nos anos 30, após a tentativa de Greve Geral de 18 de Janeiro de 1934 que levou à prisão de centenas de militantes, muitos dos quais enviados para o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde alguns morreriam e os restantes só regressariam a Portugal após a II Guerra Mundial.

Nos anos seguintes, ainda ocorreram algumas acções armadas de solidariedade com a Revolução Espanhola, além do atentado contra o ditador Salazar, executado por um grupo de anarquistas e alguns comunistas, entre os quais o conhecido militante Emídio Santana. A partir dos anos 40, o anarquismo praticamente tinha desaparecido como movimento, subsistindo alguns militantes associados ao movimento cooperativista e de inquilinos, participando da oposição anti-fascista. Uns poucos, de uma geração mais jovem, estiveram ligados às organizações de luta armada, LUAR e BR.

Em 1974, restavam reduzidos a algumas dezenas, talvez uma centena, de velhos militantes anarquistas, sobreviventes da geração anterior à ditadura, a que se viriam acrescentar algumas dezenas de jovens militantes exilados, principalmente em França. Uma parte deles desertores da guerra colonial, a que se somariam algumas centenas de ainda mais jovens estudantes e trabalhadores que se aproximaram do movimento anarquista após a queda da ditadura. Nos meses seguintes ao 25 de Abril, houve a tentativa de reorganização de uma corrente anarco-sindicalista que se traduziu na criação da ALAS, Aliança Libertária Anarco-sindicalista, e no relançamento do órgão histórico da CGT, A Batalha, iniciativas que tiveram algum apoio da SAC, a organização sindicalista revolucionária sueca.

Mais tarde, seria lançado o jornal A Voz Anarquista, órgão específico anarquista, e recriada a Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), de curta duração. Paralelamente foram criados inúmeros jornais e fanzines de grupos jovens que ficariam conhecidos como anarcas, alguns de incipiente conteúdo teórico, mas muitos outros utilizando a clássica linguagem da imprensa anarquista. Revistas como A Ideia e Acção Directa seriam as que teriam mais longevidade, tendo sido lançadas por militantes que se aproximaram do anarquismo em França, nos anos 70. Dentro dessa imprensa anti-capitalista, fora da influência partidária destacou-se o jornal Combate, fundado em Junho por militantes marxistas críticos que haviam rompido com o leninismo. Ao longo dos meses seguintes, seria o principal divulgador das lutas autónomas dos trabalhadores e das experiências de autogestão.

Eram poucos os militantes anti-capitalistas das diversas organizações e correntes nesses primeiros meses após a queda da ditadura, e as movimentações de milhares de trabalhadores nas ruas não foi resultado da convocação das organizações e partidos, mas produto da espontânea movimentação, resultado do que muitos consideram o destapar da panela de pressão da ditadura.

O apartidarismo, a confraternização, a alegria, o livre debate de ideias, sem preconceito de sexo, idade e condição foi o que caracterizou esses primeiros meses após o 25 de Abril. Nesse movimento espontâneo, tiveram origem as primeiras ocupações de casas, seja para moradia, seja para a criação de novos espaços de infantários, clínicas populares e centros de cultura. As comissões de moradores que se criaram nos bairros populares, foram algumas das primeiras manifestações de auto-organização, a que se seguiram comissões de trabalhadores em diversas fábricas e empresas. Essas comissões que se multiplicaram por todo o país seriam a principal manifestação da auto-organização na revolução portuguesa.

Alguns consideram os primeiros meses da revolução de verdadeira anarquia, dada a ausência de Estado, já que o aparelho repressivo tinha em grande medida desaparecido, pela extinção da polícia política, PIDE/DGS e da Legião Portuguesa, mas também porque a polícia, PSP e a guarda, GNR, estavam sujeitas a um processo de depuração dos seus quadros ligados à ditadura, levando a que as forças policiais receassem intervir por estarem descredibilizadas. Esse amplo movimento de depuração dos quadros da ditadura, a que se chamou saneamento, teve um papel importante na paralisação do Estado, já que os funcionários superiores e intermédios de todos os serviços e órgãos do Estado, desde as Forças Armadas até às polícias, poder local, sistema judiciário, universidades e escolas, assim como empresas públicas e privadas, passaram por uma depuração que afastou centenas de responsáveis e colocou muitos outros sobre suspeita de conivência com os governos da ditadura. Criou-se um ambiente favorável ao assembleismo e às decisões colectivas. Um historiador, César de Oliveira, diria nas suas memórias «Entre o 25 de Abril e meados de Maio pode dizer-se que, no sentido último da utopia de Emídio Santana, não houve Estado em Portugal. Tudo foi para a rua e o poder esteve nas ruas.». Podemos dizer que essa foi uma realidade que se prolongou pelo menos por todo o ano de 1974.

Esse vácuo de poder e o alinhamento de sectores militares com as iniciativas e lutas populares explica o avanço acelerado e vitorioso dessas lutas sociais e sindicais. Nesse contexto, o PCP e a central sindical que controlavam, a Intersindical, desempenharam um papel de freio, criticando greves e ocupações, a que não era estranho o facto do Partido Comunista ter passado a integrar os governos provisórios e se legitimar. Mas esse papel moderador da direcção do PCP foi, ao longo de todo o processo revolucionário, ambíguo, pois as suas próprias bases populares estavam dispostas a ultrapassar as directivas da direcção partidária, até porque na sua maioria eram novos militantes ainda pouco enquadrados pelo aparelho partidário.

Os novos partidos políticos, desde logo o PCP e o PS, foram montados rapidamente, graças fundamentalmente ao apoio externo, tendo a União Soviética e outros países do bloco de leste, colocado à disposição do Partido Comunista recursos relevantes que lhe permitiram abrir sedes, criar editoras e jornais, aparelho técnico e empresarial, permitindo aos comunistas dispor de uma máquina partidária de grande dimensão em poucos meses. O mesmo se diga do Partido Socialista apoiado pela Internacional Socialista e principalmente por alguns países nórdicos, mas também pela República Federal Alemã e EUA, o que lhe permitiu passar de uma pequena organização informal de algumas dezenas de profissionais liberais, a uma poderosa máquina partidária, com sedes em todo o país, editoras, jornais e aparelho técnico. Esta intervenção externa seria decisiva para os caminhos que a chamada revolução portuguesa ia trilhar ao longo dos anos de 74 e 75.

A radicalização política iria acentuar-se em 1975, após duas tentativas, em 28 de Setembro de 74 e 11 de Março de 75, de sectores conservadores e de extrema-direita, concentrar o poder nas mãos do General António de Spínola, retirando-o dos jovens oficiais do MFA e das ruas. Esse era um dos generais que não havia participado do golpe do 25 de Abril, mas havia sido colocado no centro do Poder pelo MFA, por defender uma solução política para a guerra colonial.

Seria a tentativa desarticulada de golpe de extrema-direita ligada ao General Spínola, que iria originar mudanças significativas no contexto económico e social da revolução portuguesa, uma alteração das relações de poder e uma real radicalização política que abriria o que passou a ser conhecido como Processo Revolucionário em Curso (PREC), ou seja, uma verdadeira crise social revolucionária.

A derrota da tentativa de golpe de direita, além de ter resultado na prisão de um número significativo de militares, militantes e empresários conservadores e de extrema-direita, levando à fuga para Espanha e para o Brasil de muitos outros, resultou na decisão do MFA avançar com a nacionalização de sectores significativos da economia portuguesa: banca, seguros, construtoras, transportes e grandes empresas comerciais e industriais. Essa decisão política, praticamente inevitável, dada a fuga de uma parte significativa de empresários, grandes accionistas e proprietários rurais, criou uma economia altamente estatizada, consolidando o projecto governamental da esquerda partidária, principalmente do PCP e seus aliados militares. Mas como escreveu o jornal Combate na época: “Capitalismo Privado ou Capitalismo de Estado não é escolha!”

Obviamente que as disputas geoestratégicas nunca estiveram ausentes em Portugal, a partir de 25 de Abril de 1974, desde logo no financiamento dos principais partidos, nem no apoio às forças conservadoras e suas sucessivas tentativas de travar o processo revolucionário, mas foi após o 11 de Março de 1975 que a intervenção das superpotências, Estados Unidos e União Soviética, mas também de países como a Espanha, França, Reino Unido e República Federal Alemã se tornaram claras e abertas, no sentido de reforçar a influência entre os militares do MFA, apoiando também os principais partidos que disputavam o poder.

Um pouco à margem destas disputas, as lutas sociais dentro das empresas, mas também nos bairros e nos campos, onde tinham avançado as ocupações de grandes propriedades latifundiárias no Ribatejo e Alentejo em finais de 1974, um movimento que iria acelerar ao longo do ano seguinte, caracterizavam-se por uma grande margem de espontaneidade e auto-organização. Para lá dos objectivos concretos, greves por aumento de salários, ocupações de casas, empresas e latifúndios, traduzia-se numa ideia, um tanto indefinida, de criação de um socialismo de base, assente no chamado poder popular, que tinha alguma influência das ideias conselhistas e do modelo chileno, mas que não era de todo estranho alguma reminiscência das ideias e práticas libertárias do passado.

Evidentemente que nesse processo revolucionário, agudizando-se a luta política e partidária, tornando-se mais fortes os partidos políticos, as lutas pela hegemonia dentro das lutas sociais e das organizações de base, comissões de trabalhadores, de moradores, empresas em autogestão, cooperativas rurais etc., levaram ao agudizar do sectarismo ideológico e ao enfraquecimento dessas organizações de base, que, ao serem partidarizadas, iam tornando inviável a luta comum. O mesmo aconteceu dentro das forças armadas, quer no MFA, quer no movimento de soldados, cada vez mais alinhados partidariamente e envolvidos na disputa pela influência política.

Em Abril de 1975, acontecem as primeiras eleições livres para eleger a Assembleia Constituinte, ganhas pelo Partido Socialista, que passa a reivindicar o estatuto de partido maioritário. Apesar disso, no frágil equilíbrio das forças sociais e das ruas, os caminhos da crise revolucionária ainda não estavam claros. O PREC culminou no chamado Verão Quente de 1975, quando o confronto político se tornou cada vez mais ameaçador. Os conservadores e a extrema direita, conjugados com a Igreja Católica, avançaram com manifestações, principalmente no norte do país, que finalizavam com assaltos a sedes de partidos de esquerda e extrema-esquerda, a que não era estranha a acção de duas organizações de extrema-direita, o Exercito de Libertação de Portugal (ELP) e Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), que reuniam ex-membros da polícia política da ditadura, militares apoiantes de Spínola e empresários exilados em Espanha, contando com a protecção da polícia e serviços secretos espanhóis, o que lhes permitia executar acções terroristas em Portugal. Paralelamente, na região de Lisboa, as organizações de extrema-esquerda fizeram uma tentativa de criar uma frente comum com o Partido Comunista, mas que o PCP abandonou rapidamente, não impedindo que essa extrema-esquerda criasse a FUR, Frente de Unidade Revolucionária. Um dos principais articuladores foi o PRP-BR, próximo de uma concepção conselhista que influenciava o grupo militar em torno de Otelo Saraiva de Carvalho, pressionando os sectores militares mais próximos para que avançassem para uma ruptura revolucionária. O militante libertário exilado em França, Jorge Valadas, chamaria a essas manobras da esquerda revolucionária “uma concepção golpista da revolução social”.

A ideia de Insurreição não chegou, no entanto, a unir todas essas diferentes organizações, cada uma com sua táctica e com uma visão distinta do que seria a Revolução, e acima de tudo, sem plano, coragem e força social que lhes permitisse avançar nessa direcção. Isto apesar dessa esquerda revolucionária ter acumulado armamento desviado dos quartéis ao longo dos meses anteriores. Quanto ao Partido Comunista, parece hoje bastante claro que nunca se poderia aventurar numa tomada do poder nos velhos moldes leninistas: a sua relação e dependência da União Soviética não lho permitiriam. Brejnev, que por diversas vezes acalmou os dirigentes ocidentais, e os sectores militares conservadores portugueses não estavam dispostos a violar os acordos de Helsínquia e pôr em risco as negociações que decorriam na época com os EUA. Apesar disso, tudo indica que alguns sectores de base e alguns quadros e dirigentes do PCP, formados ainda na mística leninista, estiveram tentados a impulsionar ou apoiar uma lógica de enfrentamento com os sectores conservadores.

Seriam pois os militares liberais, conservadores e de extrema-direita, a que se somavam alguns grupos maoistas, aglutinados em torno do chamado documento dos nove, que passaram à ofensiva em 25 de Novembro de 1975, sob comando operacional do então tenente-coronel Ramalho Eanes, contra os sectores militares de esquerda e extrema-esquerda, desarmando-os e retirando-lhes a influência político-militar, no que seria o golpe de misericórdia no chamado Processo Revolucionário. Esta contra-revolução preventiva estava planeada há meses e havia recebido o apoio do embaixador americano, Frank Carlucci, que, anos mais tarde, viria a assumir a direcção da CIA e dos principais países ocidentais. Ficando acertado um plano de avançar, se necessário, para a guerra civil, e se fossem derrotados em Lisboa, retirarem o governo para o norte do país de onde retomariam a ofensiva sobre o que definiam como a Comuna de Lisboa. O apoio a esse plano militar estava já garantido pelo governo inglês. O pretexto próximo do golpe seria uma insubordinação de tropas paraquedistas que foi caracterizado como prenúncio da tentativa dos comunistas tomarem o poder.

A vitória em Lisboa desse plano foi surpreendentemente simples, pois nem as diversas organizações e partidos tinham preparado um plano de resistência, nem principalmente os sectores militares, ligados ao PCP e aos sectores mais radicais onde pontificava Otelo Saraiva de Carvalho, se decidiram pelo enfrentamento com as forças conservadoras, mesmo tendo uma clara superioridade militar na região de Lisboa. O receio de uma guerra civil talvez tenha sido o factor determinante de contenção da chamada esquerda revolucionária política e militar.

As consequências da derrota foram definitivas, os militares mais radicais foram presos, expulsos das forças armadas ou afastados de postos de comando, sendo as forças armadas depuradas de todos os elementos de esquerda e reorganizadas, disciplinadas, refazendo-se todas as cadeias de comando com elementos da confiança do grupo militar vitorioso, segundo os padrões convencionais supervisionados pela NATO. Também os órgãos de poder, civil e militar, foram reorganizados segundo esta nova relação de forças. Quanto aos movimentos sociais ficava claro que, mesmo não sendo ilegalizados, deixaram de ter apoio de sectores militares, como havia acontecido até aí, e passariam a ser contidos com base na repressão, iniciando-se a reestruturação das forças policiais e de intervenção. Em Junho de 1976, seria eleito como primeiro presidente da república Ramalho Eanes, chefe operacional do golpe de 25 de Novembro. Logo em seguida, tomava posse o primeiro governo constitucional chefiado pelo socialista Mário Soares, que havia sido decisivo para a articulação política desse golpe.

Estava claro que, a partir daí, a situação política, social e económica iria mudar profundamente, o Processo Revolucionário em Curso (PREC) era já uma coisa do passado, o país iria ser estabilizado à força com o apoio dos países ocidentais que haviam sido determinantes para a vitória do golpe conservador de 25 de Novembro.

Mesmo assim, uma sociedade que havia entrado num ritmo acelerado de conflito e de luta social não poderia ser parada de um dia para o outro, e a nova realidade militar e de governo não iria impedir que, ao longo dos anos seguintes até ao começo dos anos 80, Portugal mantivesse um grau elevado de conflitualidade social, até porque a crise económica e as tentativas de desmantelar a Reforma Agrária geravam ainda uma forte resposta do movimento sindical e social. No entanto, a luta espontânea e autónoma dos trabalhadores iria esmorecer, praticamente desaparecer, consolidando-se o papel do PCP e da Intersindical, como representantes dos trabalhadores dentro do quadro de uma democracia parlamentar.

O Partido Socialista, o grande vitorioso do 25 de Novembro, iria assumir o governo e ser o principal responsável por desmantelar a Reforma Agrária e devolver as terras, bem como as empresas nacionalizadas, à burguesia que havia fugido do país. Seria também o estratega da adesão de Portugal à CEE, que seria decisiva para enquadrar definitivamente este país periférico na lógica capitalista europeia. Mas o quadro legal e constitucional, influenciado pelas movimentações sociais e pelo 25 de Abril, iria manter-se ainda durante décadas.

Nos finais dos anos 80, o anarquismo não tinha avançado nada em relação ao seu ressurgimento em 1974. A velha geração ia desaparecendo, era a incontornável fatalidade biológica, a esperança no ressurgimento do anarquismo em Espanha nos anos de transição não se concretizou, e a nova geração sofreu, como todos os outros sectores anti-capitalistas, a desilusão do fracasso revolucionário e de enfraquecimento dos movimentos sociais. Dividido entre o velho anarquismo e anarco-sindicalismo do começo do século XX e uma expressão mais contemporânea do anarquismo pós-68, o anarquismo em Portugal não conseguiu nunca encontrar a sua forma organizativa, nem a sua convergência na acção, e menos ainda difusão nas classes populares, que haviam sido em grande parte cooptadas pelas organizações partidárias marxistas-leninistas durante o PREC. A revolução portuguesa tinha todas as características para merecer a desconfiança dos libertários: nasceu de um golpe militar, os militares tornaram-se actores decisivos nas lutas sociais que se seguiram, havia a presença de inúmeras organizações leninistas, o movimento sindical estava enquadrado pelo partido comunista e o movimento anarquista era insignificante e incapaz de influenciar os acontecimentos. Apesar disso, na revolução portuguesa, manifestou-se em diversos momentos uma espontaneidade e auto-organização de carácter libertário nos movimentos populares que não podiam deixar de gerar uma simpatia de muitos anarquistas portugueses e estrangeiros que passaram por Portugal nessa época.

O final dos anos setenta e início dos oitenta iria ainda ser decisivamente influenciado pelo rescaldo da revolução portuguesa. Um sector da extrema-esquerda insurreccional, principalmente os provenientes dos sectores militares mais radicalizados e de organizações como o PRP-BR e Luar, criaram uma organização clandestina, as Forças Populares 25 de Abril (FP25), na qual participaram alguns libertários que viriam a desenvolver acções armadas ao longo dos anos 80 e 90. Já sem apoio militar e popular, essa tentativa desesperada de parar a reorganização capitalista em Portugal estava condenada ao fracasso, a grande maioria dos seus militantes seriam presos a meio dos anos 80 e condenados a pesadas penas de prisão.

Nos anos 90, seriam libertados, através de uma amnistia, num típico acordo político de pacificação social à portuguesa. Entre os seus membros, estavam ex-dirigentes e militantes do PRP-BR, marxistas com alguma influência conselhista, militares de Abril, como o tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho, o estratega do golpe militar do 25 de Abril, e entre os seus mortos estava o nome de António Guerreiro, um dos oficiais milicianos que cercaram e prenderam o último Presidente do Conselho da ditadura.

A Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974 foi, para muitos que a viveram, uma experiência única de uma quase revolução, uma revolução fracassada para outros, ou a revolução impossível, como lhe chamou Phil Mailer, o libertário irlandês que a viveu de perto. Mesmo para os historiadores mais conservadores, o 25 de Abril não foi só um golpe militar, foi uma crise social revolucionária, a última grande movimentação anti-capitalista na Europa do século XX. Nas palavras irónicas do Coronel Varela Gomes, um militar rebelde que havia participado de uma tentativa de derrubar a ditadura portuguesa em 1961, e que viria a ser reintegrado no exército após o 25 de Abril, participando directamente de forma activa do PREC, tendo de se exilar após o golpe de 25 de Novembro, dizia ele que a Revolução de 25 de Abril de 1974 foi o “maior cagaço que a burguesia portuguesa apanhou no século XX”. Mesmo que fosse só por isso, mas não foi, porque derrubou-se uma velha ditadura podre, acabou com a Guerra Colonial, dando origem a novos países, contribuiu para o fim de outras ditaduras, e demonstrou que, de forma inesperada, o poder pode cair na rua e o povo assumir-se como protagonista da história. Só por isso valeu a pena viver essa época.

Bibliografia

A Contra-Revolução de Fachada Socialista. J. Varela Gomes. Ler Editora, Lisboa, 1981.

A Queda do Fascismo. Seguido de em Abril Lembrar Novembro. António Ferreira. Editorial Chão, Lisboa, 1999.

A Reforma Agrária em Portugal. Das Ocupações de Terras à Formação das novas Unidades de Produção. Afonso de Barros. Centro de Estudos de Economia Agrária, Lisboa, 1979.

Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril. José Mihazes. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2013.

História do Povo na Revolução Portuguesa. Raquel Varela. Bertrand, Lisboa, 2014.

Os Americanos na Revolução Portuguesa 1974-1976. Tiago Moreira de Sá. Editorial Notícias, 2004.

Portugal: A Concepção Golpista da Revolução Social. Charles Reeve. Meridiano, Lisboa, 1976.

Portugal: A Revolução Impossível? Phil Mailer. Antígona, Lisboa, 2018.

Sem Mestres, nem Chefes o Povo Tomou a Rua. Lutas dos Moradores no pós-25 de Abril. José Hipólito dos Santos. Letra Livre, Lisboa, 2014.

Todos os editoriais do Jornal O Combate. AAVV. Vosstanie, Paris, 2019.

Guerrilha no Asfalto. As FP25 e o Tempo Português. M. Ricardo Sousa. Fora do Texto, Coimbra, 1992.

Texto publicado em maio de 2024

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