quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O VULCÃO SUL AFRICANO

 

Martinho Júnior, Luanda
 
MEMÓRIA DE PABLO NERUDA
 
1 – Tenho um imenso respeito e admiração por Pablo Neruda: como muito poucos, ele foi capaz de nos transmitir com um elevado poder de síntese, os quadros mais compulsivos da América, expondo a nu e a cru as injustiças históricas que se vão arrastando de século em século, de década em década… o que acontece quando o império se impõe sobre as bandeiras dos povos…
 
Se as suas substantivas referências são uma sensível comoção do que acontece na América Latina, nem por isso ele deixa de ser universal: sinto-o isso a partir de África, por que cá como lá há o mel das imensas riquezas, apenas com oportunidade para “moscas” que não deixam de ser da mesma estirpe, que fazem parte do mesmo agregado, utilizam os mesmos métodos, os mesmos processos, os mesmos vícios, o mesmo padrão de “culturas”, os mesmos rituais, quantas vezes rituais de sangue…
 
Explico: se por lá é a United Fruit Company, aqui são as Anglo American Corporations, as Lonrhos, as De Beers, agora uma Lonmin… o arsenal de mineiras que exploram não a superfície, mas as entranhas mais profundas da terra, sobretudo desde a explosão da Revolução Industrial e seguindo a pista e o génio geo estratégico de Cecil John Rhodes, servidor e inspirador das mais poderosas elites do império!...
 
Por isso recordo Pablo Neruda: a mesma essência, com o colorido de outras latitudes, outras paragens, outras “United Fruit Companies”, outras mãos de obras baratas e sem defesa:
 
“Cuando sonó la trompeta, estuvo
todo preparado en la tierra,
y Jehová repartió el mundo
a Coca-Cola Inc., Anaconda,
Ford Motors, y otras entidades:
la Compañía Frutera Inc.
se reservó lo más jugoso,
la costa central de mi tierra,
la dulce cintura de América.
Bautizó de nuevo sus tierras
como Repúblicas Bananas,
y sobre los muertos dormidos,
sobre los héroes inquietos
que conquistaron la grandeza,
la libertad y las banderas,
estableció la ópera bufa:
enajenó los albedríos
regaló coronas de César,
desenvainó la envidia, atrajo
la dictadura de las moscas,
moscas Trujillos, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas húmedas
de sangre humilde y mermelada,
moscas borrachas que zumban
sobre las tumbas populares,
moscas de circo, sabias moscas
entendidas en tiranía.
 
Entre las moscas sanguinarias
la Frutera desembarca,
arrasando el café y las frutas,
en sus barcos que deslizaron
como bandejas el tesoro
de nuestras tierras sumergidas.
 
Mientras tanto, por los abismos
azucarados de los puertos,
caían indios sepultados
en el vapor de la mañana:
un cuerpo rueda, una cosa
sin nombre, un número caído,
un racimo de fruta muerta
derramada en el pudridero.
 
PARA ALÉM DO “APARTHEID”
 
2 – Poucos estranharam, interrogaram e se interrogaram por que o fim dum regime tão ignóbil como o do “apartheid” ocorria precisamente no mesmo momento em que desaparecia o socialismo real na Europa e se implodia a União Soviética…
 
Poucos entenderam sem equívocos e em tempo oportuno, o que os arautos anunciavam como “sinal dos tempos”, ou ainda “o fim da história”…
 
Por isso foram poucos os cáusticos em relação às figuras emergentes na África do Sul: De Klerk, Nelson Mandela, Thabo M’Beki…
 
Na oportunidade, acerca deles foram pronunciados louvores ao superlativo, que até hoje perduram: a história, tinha de ser contada à sua maneira por que o que interessava sobretudo era fazer perdurar a lógica capitalista e garantir mão-de-obra barata e submissa, os indispensáveis lucros em benefício das elites sobre a miséria dos povos…
 
Quando me tenho referido às sequelas do colonialismo e do “apartheid”, não o faço de ânimo leve e coloco tão históricas quanto legítimas interrogações:
 
Até que ponto conseguiu ir a ânsia de liberdade, de soberania, de socialismo e de democracia, que fez parte da essência do movimento de libertação, para além do tempo útil em que perdurou o “apartheid”?
 
Que garantias havia para, reforçando-se sem mais constrangimentos a lógica capitalista, conseguir-se vencer o peso histórico do elitismo, quando o processo de sequência da Revolução Industrial continuava a ver garantida na África do Sul a sua “natural” sequência?
 
O elitismo dominou na formação da União Sul Africana, dominou no “apartheid” e continua a dominar na “democracia representativa” da África do Sul!!!
 
Por isso lembro o que publiquei no número 371 do “Actual”, a 8 de Novembro de 2003, quando tive a ousadia de interrogar “Que eternidade para Nelson Mandela?”, com uma fotografia em que face a face o velho Mandela ex-prisioneiro do “apartheid”, admirava a face duma foto do novo, daquele que já era conhecido como líder do ANC antes da longa prisão!
 
Entre o velho e o novo Mandela, preferia sem qualquer dúvida o novo, aquele que tendo ainda tanta vida por viver entregue à causa da libertação em África, estava ainda muito longe de ser “eterno”, reduzindo-se à posição de mais uma “mosca” entre as inúmeras “moscas” que a aristocracia financeira mundial, por via do carácter do seu domínio, foi disseminando por toda a imensidão dos países do Sul!...
 
A associação das “moscas” à tirania e da tirania às explosões sociais, ao sangue dos “condenados da terra”, em 2003 era tão legítima quanto a “guerra dos diamantes de sangue” tinha finalmente acabado em Angola com a morte de Savimbi, um fiel servidor do signo de Rhodes!
 
O velho Nelson Mandela trazia sintomas com os quais eu não me podia identificar, pelo que coloquei-me “contra corrente”: eram previsíveis futuras erupções sociais na África do Sul e noutros países africanos para além dos “diamantes de sangue”, era tudo uma questão de tempo, de maturação e eu era pela paz e pelo socialismo, como hoje!
 
 

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