Alain Gresh - Le
Monde Diplomatique, Paris – Opera Mundi
Conflito toma
"rumo confessional" e se espalha pelos países vizinhos
A situação militar
recente na Síria foi marcada pela vitória das tropas oficiais, apoiadas pelo
Hezbollah, em Qusayr, e pela decisão dos Estados Unidos de armar os
insurgentes. Nada prenuncia o fim dos enfrentamentos. Pelo contrário: o
conflito toma um rumo confessional e se espalha para toda a região.
O guia da revolução, o aiatolá Ali Khamenei, vai realizar o sonho de pronunciar
um sermão do alto da cadeira da Mesquita dos Omíades, em Damasco. Ele vai
anunciar ter realizado a unidade islâmica que prometia há muito tempo. Vai
descer da cadeira com grande pompa para colocar sua mão na cabeça de uma pobre
criança e assim manifestar a tolerância dos poderosos [com relação aos
sunitas]. Depois ele permanecerá de pé ao lado de um certo número de clérigos
sunitas sírios. Ele vai lhes dar a mão e eles levantarão os braços juntos
diante das câmeras que registrarão esse momento histórico.”
Assim um influente editorialista saudita descreveu, no dia seguinte à vitória
do Exército sírio em Qusayr, o futuro sinistro, em sua opinião, de um mundo
muçulmano que caiu na mão dos “persas” e dos xiitas.
No mesmo momento, no Líbano, Hassan Nasrallah, o secretário-geral do Hezbollah,
pronunciou um discurso no qual justificava o envio de seus combatentes para a
Síria, ao mesmo tempo que reconhecia – diferentemente de Bashar al-Assad – que,
“se uma grande parte dos sírios apoia o regime, outra grande parte se opõe a
ele, sem dúvida”. Para ele, essa dimensão interna é secundária, e “o Líbano, o
Iraque, a Jordânia e o conjunto da região são alvos de um plano
norte-americano-israelo-takfirista” ao qual é preciso resistir a todo custo, o
que supõe apressar-se para socorrer o regime de Damasco.
Agora, como explicou um oficial norte-americano no relatório extremamente
completo que publicou o ICG (International Crisis Group) “uma guerra síria com
dimensões regionais está se transformando em uma guerra regional no entorno da
Síria”. Uma nova “guerra fria” divide o Oriente Médio, similar à que, nos anos
1950 e 1960, tinha visto o enfrentamento entre o Egito nasseriano aliado dos
soviéticos e a Arábia Saudita parceira dos Estados Unidos. Mas os tempos
mudaram: o nacionalismo árabe diminuiu, os discursos confessionais se
espalharam, e nos perguntamos inclusive a respeito da perenidade dos Estados e
das fronteiras que tiveram origem na Primeira Guerra Mundial.
A Síria, com suas dezenas de milhares de mortos, seus milhões de refugiados, a
destruição de sua infraestrutura industrial e de seu patrimônio histórico, é a
principal vítima desse enfrentamento. A esperança que nasceu na virada de 2011
se transformou em pesadelo. Por que o que foi possível no Cairo não se produziu
em Damasco
Determinação iraniana e russa
O presidente egípcio Hosni Mubarak foi deposto com relativa facilidade por pelo
menos duas razões. As elites e as classes sociais ligadas à camarilha do poder
nunca sentiram seus privilégios realmente ameaçados, ainda menos sua
integridade física. Que se tratasse de homens de negócios, altos oficiais do
Exército ou responsáveis pelos serviços de segurança, todos puderam se
reconverter serenamente depois da revolução. Apenas uma ínfima minoria foi
levada – com muita lentidão e reticências – para os tribunais. Além do mais, a
partida de Mubarak não provocou nenhuma alteração na situação geopolítica
regional. Os Estados Unidos e a Arábia Saudita puderam se acomodar com as
mudanças que não tinham desejado, mas que não ameaçavam seus interesses
fundamentais, bastando canalizá-las.
Na Síria, estamos assistindo a uma história completamente diferente. Desde o
início da contestação, o uso ilimitado da violência pelos serviços de
informação permitiu ao regime ganhar meses preciosos e se organizar. Ele
incentivou a militarização da oposição e seu aumento, estimulando até mesmo a
confessionalização, para despertar o medo de frações importantes da população:
não apenas as minorias, mas também a burguesia e as classes médias urbanas,
assustadas pelo discurso extremista de alguns grupos da oposição e pelo afluxo
de combatentes estrangeiros colocados em cena pelo regime.
À medida que as
valas comuns se acumulavam, qualquer transição sem espírito de vingança se
tornava impossível, e, querendo ou não, camadas relativamente amplas da
sociedade, temendo por sua sobrevivência em caso de vitória dos “islamitas”,
ligavam-se ao regime. O espantalho islamita assusta ainda mais por estar
estampado há vários anos em muitas capitais ocidentais e dá crédito ao discurso
de Damasco dirigido à França: “Por que vocês ajudam na Síria os grupos que
combatem no Mali?”.
O regime também usou de sua posição estratégica junto a seus dois principais
aliados, o Irã e a Rússia, que se comprometeram no conflito de modo bem mais
determinado do que os países árabes ou os ocidentais – uma determinação que
pegou seus adversários de surpresa.
Para o Irã, a Síria constitui, desde a revolução de 1979, o único aliado árabe
seguro, que o apoiou em todos os momentos difíceis, principalmente durante a
invasão iraquiana de 1980, quanto todos os países do Golfo se mobilizaram em
favor de Saddam Hussein. Enquanto o isolamento do país se acentuou nestes
últimos anos, ele é visado por implacáveis sanções norte-americanas e
europeias, tanto que o risco de uma intervenção militar israelense e/ou
norte-americana não pode ser descartado, e a implicação da república islâmica
na Síria, mesmo que não seja moral, constitui uma escolha estratégica racional
que a eleição do novo presidente Hassan Rohani provavelmente não vai
influenciar. Linhas de crédito ao Banco Central Sírio, fornecimento de
petróleo, envio de conselheiros militares: Teerã não poupou meios para salvar
seu aliado.
Esse engajamento a levou a incentivar o Hezbollah, com o aval do Kremlin, a se
envolver diretamente nos combates. Claro, a organização e seu secretário-geral
puderam argumentar que, do Líbano como de outros países árabes, milhares de
combatentes islamitas estavam indo para a Síria; mas tal intervenção só fez
agravar as tensões entre sunitas e xiitas – os incidentes armados se
multiplicaram no Líbano – e botar mais lenha na fogueira dos pregadores sunitas
mais radicais.
A conferência realizada no Cairo no dia 13 de junho de 2013, sob a palavra de
ordem “apoio a nossos irmãos sírios”, fez apelo à jihad. O presidente egípcio
Mohamed Morsi participava dela. Ele, que tinha se mostrado prudente no
relatório, anunciou a ruptura das relações diplomáticas com Damasco. A reunião
marcou um aumento da retórica antixiita, inclusive por parte dos xeques
moderados. O representante da Universidade Al-Azhar, instituição importante do
islã sunita localizada no Cairo, se perguntou: “Qual é o significado da
ingerência do Hezbollah, que derrama sangue de inocentes em Qusayr? Por que
eles estão lá? É uma guerra contra os sunitas e uma prova do confessionalismo
dos xiitas”.
Quanto à Rússia, suas razões para se engajar ultrapassam amplamente a
personalidade de Vladimir Putin, reduzido a uma caricatura na imprensa
ocidental. Elas refletem antes de mais nada a vontade de Moscou de acabar com
sua inexistência na cena internacional.
É preciso um diplomata egípcio para decifrar essa preocupação: “Os ocidentais”,
ele nos explica, “pagam o preço por suas tentativas de marginalizar a Rússia,
depois do fim da URSS. Assim, apesar da boa vontade de Boris Yeltsin com
relação a eles, a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] se estendeu
até as fronteiras do país”. No relatório sírio, durante dois anos, “os
ocidentais propuseram ao Kremlin uma aliança pura e simples com seu plano. Não
era realista”.
A maneira como a Resolução n. 1.973 do Conselho de Segurança da ONU sobre a
Líbia foi distorcida para legitimar a intervenção militar também escaldou a
Rússia – e não apenas ela: diversos países, como o Brasil, a Índia, a África do
Sul e a China manifestaram, desde então, reservas quanto às resoluções
ocidentais sobre a Síria apresentadas à ONU. Para o Kremlin, a queda do regime
de Al-Assad seria uma séria contrariedade: ela constituiria uma nova vitória
dos islamitas e poderia afetar, no próprio seio da Federação da Rússia, as
populações muçulmanas entre as quais ele denuncia uma propaganda wahabita
ativa.
Diante dessa determinação russo-iraniana, os apoios externos da oposição síria
foram divididos, erráticos, ineficientes, bem longe da imagem de um grande
complô “árabo-saudito-catariano-norte-americano-israelo-salafista”. Da Turquia
à Arábia Saudita, do Catar à França, cada um tocou segundo sua própria
partitura, favorecendo seus clientes, fornecendo sua ajuda a uns, ao mesmo
tempo que a recusava a outros. O cúmulo do grotesco foi atingido em abril de
2013, com a imposição pelo Catar, conseguida com o custo de milhões de dólares,
de Ghassan Hitto, de nacionalidade norte-americana, para o cargo de
primeiro-ministro de um governo tão “interino” quanto fantasma. A ingerência
dos ricos homens de negócios do Golfo, que não respondem a nenhuma estratégia
de Estado e escapam a qualquer controle, aumenta a confusão.
Enfim, é difícil se encontrar no meio das múltiplas frações, grupos,
katibas(unidades combatentes) organizadas sob a etiqueta tão cômoda quanto
enganosa de “islamitas”, o que permite diminuir tanto sua diversidade quanto
suas divergências estratégicas e políticas. Assim, a frente Al-Nosra, que se
reclama da Al-Qaeda, provoca inquietações tanto no Ocidente quanto na Arábia
Saudita, onde ela conduziu nos anos 2003-2005 uma luta de morte contra a
organização de Osama bin Laden. Essa apreensão existe também nas organizações
salafistas. Nader Bakkar, o muito midiático porta-voz do principal partido
salafista egípcio, Al-Nour, nos explica que é preciso ultrapassar a Al-Qaeda:
“O que queremos é uma zona de exclusão aérea para que os próprios
revolucionários obtenham a vitória. Conclamamos as pessoas no Egito a não ir
para lá: a vitória tem de ser apenas dos sírios”.
Um jogo de soma zero
Essa cacofonia foi favorecida pelo desaparecimento dos Estados Unidos, que,
mesmo desejosos da queda do regime sírio, não estão inclinados a começar uma
nova aventura no Oriente Médio, depois de seus fracassos no Iraque e no
Afeganistão. Melhor que outros, Richard Haass reflete essa evolução do estado
de espírito de Washington. Cabeça pensante do establishmentrepublicano em
matéria de relações internacionais e antigo colaborador do presidente George W.
Bush, ele acaba de publicar um livro intitulado Política externa começa em
casa: por que é preciso pôr ordem nos Estados Unidos. Seu raciocínio? Os
problemas internos, da deterioração do sistema de transportes à falta de
operários qualificados, impedem os Estados Unidos de exercer uma liderança
mundial.
Como interpretar então a decisão do presidente Barack Obama de fornecer armas
aos rebeldes sírios? O uso de gás sarin pelo Exército sírio, muito controverso
– segundo Washington, ele teria provocado 140 das 90 mil mortes do conflito –,
mostra aquilo que realmente é: um pretexto. Mas a quê?
A Síria se tornou um campo de batalha regional e internacional, e nenhum dos
dois campos pode aceitar a derrota de seus protegidos. Depois da vitória de
Qusayr, os Estados Unidos querem impedir um triunfo do regime sírio, que além
do mais é bem improvável, tamanha é a rejeição do poder por uma parte
importante da população que se radicalizou e não tem mais nada a perder. Mas
essa vontade não deveria se traduzir em uma intervenção maciça, ainda menos
pela imposição de zonas de exclusão aérea ou pelo envio de tropas no terreno.
Com a manutenção do equilíbrio das forças, o impasse deveria então perdurar,
com seu cortejo de destruições e mortes, mas também seus riscos de extensão a
toda a região, o que resume o título do relatório do ICG, “Conflito em
metástase na Síria”.
O Iraque, a Jordânia e o Líbano se encontram envolvidos no conflito.
Combatentes iraquianos e libaneses, sunitas e xiitas, se enfrentam na Síria. As
estradas da “internacional insurgida”, que, do Afeganistão ao Sahel, levam
combatentes, armas e ideias, estão saturadas. Enquanto os protagonistas
externos continuarem a ver o conflito como um jogo nulo, o calvário sírio vai
continuar. Com o risco de levar toda a região na tormenta.
(*) Artigo originalmente publicado em Le Monde Diplomatique
(**) Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde
Diplomatique (edição francesa).
Leia mais em Opera
Mundi
Sem comentários:
Enviar um comentário