domingo, 8 de setembro de 2013

A FRONTEIRA INVISÍVEL DO APARTHEID SOCIAL

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Observar a fronteira entre os USA e o México é arrepiante. O aparato da vigilância militar, com as câmaras de infravermelhos, as redes electrificadas, as estruturas policiais, são aterradores para qualquer cidadão honesto e trabalhador, que queira construir a sua vida, de forma digna. Mas a fronteira não é apenas esta barreira de paranoia e de tecnologia da servidão que, por exemplo, separa San Diego e Tijuana. A fronteira também é psicológica, acompanha o migrante quando este cruza as fronteiras dos Estados-nação, é uma barreira interiorizada, invisível, produtora de corpos dóceis e de mentes servis.
 
Na fronteira entre os USA e o México esta violência é levada ao extremo, inculcada pelas forças militares, estatais e paramilitares. Esta é uma fronteira darwinista (por muito que este termo custe aos fundamentalistas cristãos criacionistas), por onde passam os mais aptos. Os que forem menos aptos (os mais fracos, os mais velhos, os mais doentes, os mais enfraquecidos pela pobreza), não passam. Morrem, são aprisionados e deportados ou são vencidos pelo medo. Os que passam são usados como mão-de-obra barata em trabalhos precários e sem direitos.    É uma política fronteiriça que gera servos indocumentados.
 
São onze milhões, os indocumentados que sobrevivem nos USA. Gente que vê os seus movimentos restringidos, submetidos ao medo da deportação. Muitos destes homens e mulheres vieram para os USA com os seus pais. Eram crianças assustadas que cresceram como adolescentes assustados e vivem como adultos assustados. Não conhecem os seus países de origem e cresceram dentro da realidade norte-americana. Sabem contornar o ICE (Immigration Custom Enforcement) evitando os agentes destes serviços á saída dos bares, restaurantes e discotecas.    
 
A fronteira tragou-lhes os sonhos e a juventude. Vivem num espaço concentracionário, sub-humano. São não-cidadãos, infra-Homens. Os que enveredaram pela universidade e concluíram os seus estudos, guardam os diplomas em casa, pois não lhes serve para nada uma vez que os seus números falsos da segurança social só podem ser usados nos trabalhos mal remunerados e como não têm documentos não podem exercer a sua preparação académica no mercado de trabalho. É toda uma estrutura de poder que os exclui e que os condena á servidão. É a vingança dos “gringos” por eles, os “xicanos”, terem tido um sonho.        O ritmo das deportações aumentou na administração Obama e chegou ao meio milhão, proeza que mais nenhum presidente norte-americano conseguiu. Trágico e irónico que seja o primeiro presidente negro dos USA, Obama, a conseguir tamanha proeza.
 
As estruturas organizativas dos indocumentados começam a surgir. A Nor One More (NOM) é uma delas, formada por jovens universitários indocumentados. Esta organização para além do seu papel reivindicativo presta apoio judicial aos indocumentados e é responsável por diversas acções de protesto e de denúncia contra os centros de internamento para imigrantes e contra a violência e abuso de autoridade por parte dos serviços de migração e fronteiras.  
 
A reforma migratória aprovada pelo Senado em finais de Junho deste ano foi um passo tímido que permite aos indocumentados resolver o seu problema a conta-gotas. A recente legislação não concede a cidadania imediata (conforme os preceitos constitucionais exigem) e é um emaranhado labiríntico de procedimentos e papelada. Obriga os indocumentados a pagarem quantias que não possuem e a perder dias de trabalho. Mesmo assim foi celebrada e aplaudida pelos indocumentados como constituindo um passo em frente na resolução do problema.
 
Mas a troco de legalizar os 11 milhões de indocumentados a nova legislação insiste ma militarização da fonteira, perdendo a administração Obama uma oportunidade de alterar este processo e iniciar uma politica de humanização do espaço fronteiriço. A nova legislação amplia a vigilância electrónica, criando um espaço vigiado de mais 700 milhas, autoriza o uso de aparelhos de voo não tripulados (drones) nos sistemas de vigilância e eleva o número de agentes de imigração colocados na fronteira com o México para 40 mil elementos, um número superior ao da concentração de forças militares entre as duas Coreias. 
 
A retorica da doutrina de segurança, adoptada pós 11 de Setembro de 2001, não passa de discurso de vendas, que justifica e implementa o lucrativo negócio da segurança e vigilância electrónica. Após o 11 de Setembro a fronteira tornou-se fonte de negócios, um nicho de mercado. É um imenso “target” comercial que cilindra a humanização da fronteira. Pouco interessa que o número de mortes aumente em cada ano que passa, seja pelas duras condições do deserto do Arizona, seja por acção directa ou indirectas das autoridades migratórias ou das milícias paramilitares, como a dos “Minutemen”.
 
Do lado de lá da fronteira, na “terra das oportunidades”, aguardam por eles o trabalho precário e os centros de detenção. Estes centros multiplicam-se e como as fronteiras, são espaços concentracionários, regulados pelo Estado de excepção, onde as garantias legais estão suspensas. São imensos armazéns de corpos a aguardar a decisão do carcereiro: o Estado.
 
É uma cruz pesada, a da fronteira invisível. O que a carrega suportará uma cruel e dolorosa crucificação. E sem Pai para perdoar, pois o crucificado é Filho do Homem indocumentado….
 
II - Quando da sua libertação em 1990, Mandela afirmou, á saída da prisão, que o ANC assumiria a transformação económica e social da África do Sul e que o combate á pobreza era a máxima prioridade. Este princípio, segundo Mandela, seria inalterável: “É impensável uma alteração ou modificação das nossas perspectivas quanto a essa questão". Uma vez no poder, o ANC abandonou a política oficial do partido para terminar com a pobreza. O Programa de Reconstrução e Desenvolvimento foi substituído por coisa nenhuma e um dos ministros do ANC chegou a gabar-se de que a politica do seu partido era “thatcherista”. Quando confrontado com esta questão o ANC utiliza uma evasiva indisposta e os seus dirigentes põem cara de poucos amigos, murmurando entre dentes que “cada processo é um processo” e recheiam o seu discurso de incongruências.
 
Este “processo” foi iniciado poucos anos antes da libertação de Mandela, quando o ANC fez um acordo com a elite africânder, em reuniões na Mells Park House, uma residência imponente perto de Bath. Os promotores do acordo foram os grupos empresariais e financeiros multinacionais, que colocaram os seus recursos á disposição de ambas as partes. Mandela, em 1982, foi transferido da Ilha Robben para a prisão Pollsmoor e passou a receber visitas. O regime do apartheid pretendia dividir o ANC entre os “moderados”, aqueles com que podia negociar (Mandela, Thabo Mbeki e Oliver Tambo) e os “radicais” dos subúrbios, que lideravam a Frente Democrática Unida. A 5 de Julho de 1989 Mandela encontrou-se com P.W. Botha, o presidente da Africa do Sul do apartheid, o “Groot Krokodil” (Grande Crocodilo). O encontro foi realizado nos aposentos de Botha e Mandela ficou deliciado porque o Grande Crocodilo é que serviu o chá.
 
Durante a década de 80 o apartheid ofereceu generosos empréstimos aos empresários negros e permitiu que estes expandissem as suas empresas para fora dos bantustões. Foi a incubação de uma nova burguesia negra, crescida no compadrio. Em 1994 as primeiras eleições democráticas terminaram com o apartheid racial e iniciaram um novo “processo” do apartheid social e económico. Enquanto as disparidades entre negros e brancos diminuíam, aumentaram as disparidades entre negros e “pretos”.
 
A lengalenga de que a “nova riqueza chegaria a toda a família sul-africana e criaria empregos” deixou de fazer qualquer sentido no meio dos duvidosos acordos de “fusão e restruturação” que tiveram como finalidade reduzir postos de trabalho. Para as empresas estrangeiras, um rosto negro na direcção era a garantia de um investimento exitoso. Nos subúrbios o povo sentiu poucas alterações. Os despejos continuaram, tal como na era do apartheid, apenas mudaram os rostos e a cor dos executantes da acção de despejo. Os sonhos foram travados pela corrupção e o “African National Congress” foi transformado em “African New Capitalism”.
 
Dai até ao massacre dos 34 mineiros, em Marikana, no ano passado, foi um passo. É a logica dos massacres do apartheid e as razões que conduziram ao massacre de Marikana em nada diferem das que conduziram ao massacre de Sharpeville, cinquenta anos antes. Excepto num ponto: Deixou de ser um “problema com os pretos” sendo agora um problema com os pobres.   
 
III - Em Junho deste ano o ex-presidente norte-americano, Bill Clinton, discursou em honra de Shimon Peres. Em determinado momento do discurso Clinton afirmou: “Não importa quanto colonos plantas na Cisjordânia. Os palestinianos têm mais bebés que os israelitas. Tens uma questão existencial por resolver…” Estes comentários de Clinton, portadores de um indisfarçável racismo, não só recordam Golda Meir e o seu temor a uma explosão demográfica palestiniana, como complementam o pensamento de Obama sobre o assunto, expresso em Maio de 2011 num discurso efectuado no Comité dos Assuntos Públicos USA/Israel (AIPAC), em Washington: “Estes são os factos que devemos enfrentar. (…) O número de palestinianos que vivem a Oeste do rio Jordão cresce rapidamente”.  
 
Para os palestinianos as declarações de Clinton e de Obama não constituíram qualquer surpresa. Estão habituados á descriminação e vivem num Estado de apartheid desde 1948. Termos como a “bomba demográfica” e outros referentes ao seu crescimento populacional, são palavras doces, quando compararmos á brutalidade do discurso interno sionista. Em 2009, por exemplo, o ministro da habitação de Israel, na época, Ariel Atias, pronunciou a seguinte afirmação, num discurso efectuado na Associação dos Advogados: “É um dever nacional prevenir a propagação de uma população que não ama o Estado de Israel. Se seguirmos como até agora, perderemos a Galileia. Populações que não deveriam misturar-se estão em franca expansão. Não é apropriado que árabes e judeus vivam juntos. A expansão da população árabe deve ser detida.”
 
Michel Oran, o actual embaixador israelita nos USA, escreveu em 2009, para a revista “Commentary”, um artigo intitulado “Sete ameaças existenciais” que tinha um sugestivo subtítulo: “A ameaça demográfica árabe”. Com uma escrita apocalíptica (pouco cuidada e grunhida), escreve o embaixador sionista: “A população palestiniana expande-se mais rapidamente do que a população judaica. Seremos superados em menos de uma década! O Estado judaico baseia-se numa maioria judaica estável e decisiva de pelo menos 70% da população. Uma percentagem menor fará com que Israel tenha que decidir entre ser um Estado Judeu ou ser um Estado Democrático. Se optar pela democracia, Israel deixará de existir, como Estado Judeu. ”
 
Quem sabe, sabe e quem sabe, efectivamente, não teme, mas a intelectualidade sionista e os meios académicos do apartheid sionista temem, não porque não saibam, mas porque sabem que os seus crimes conduziram a uma situação incontrolável. Académicos e intelectuais sionistas juntam-se ao coro da incitação racial e justificam os crimes étnicos cometidos. “Há circunstancias que justificam a limpeza étnica. (…) O estado Judaico nunca teria chegado a existir sem a deslocação forçada de 700 mil palestinianos. Era necessário suprimir essas populações. Não houve outro remedio que não fosse a expulsão (…) Os árabes israelitas são uma bomba de tempo (…) Transformaram-se em emissários do inimigo e são uma Quinta Coluna. Em termos demográficos debilitam o Estado.” São comentários típicos que se podem ouvir da boca dos académicos sionistas e da intelectualidade orgânica de Israel.  
 
Esta terminologia não é apenas usada contra os palestinianos, mas também contra as comunidades berberes, contra os judeus africanos e os exilados africanos que pedem asilo em Israel. Em 2010, numa entrevista ao Haaretz, Netanyahu afirmou que os africanos eram uma ameaça para o carácter judeu do Estado.
 
A limpeza étnica, o robô de terras, a destruição da memória histórica, os massacres e a ocupação militar são inerentes ao apartheid sionista, que vigora á mais de seis décadas e meia. Talvez seja por isso que a sombra de um judeu crucificado á dois mil anos perdura no Monte das Oliveiras. Sem Pai para os perdoar…
        
IV - Nove milhões somos nós, os angolanos documentados. Os outros parecem estar em trânsito pelo país (provavelmente para verem o mundial de Hóquei em Patins). Serão quantos milhões os indocumentados ou os parcialmente documentados? (Parcialmente porque muitos têm o cartão eleitoral). O angolano está habituado a ser cidadão apenas quando precisam dele, seja para a guerra ou para votar. Depois acabou. Perdem a cidadania. Ficam só sem BI, sem documento, á mercê do Pai Grande. 
 
Serão quantos milhões? Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove? Talvez os bandos que pululam pela burocracia de Luanda saibam. Cobram em média entre 30 e 60 mil Kwanzas (30 a 60 USD) para resolver o documento. È só pagar e tornas-te cidadão com BI. O passaporte é outro mambo, Mas para que precisas tu de passaporte? Arranja só o kumbu para pagar o mambo do documento!
 
Será mesmo que o Pai Grande os olha? Se calhar é antes o processo de uma descolonização incompleta…Faltou a descolonização cultural. Ou então é mesmo o Pai Grande…Se esqueceu. Dos pobres, claro.   
 
Fontes
 

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