Tradicionalmente, a
Justiça é representada por uma estátua que tem os olhos vendados para
simbolizar a imparcialidade e a objetividade; a balança, a ponderação e a
equidade; e a espada, a força e a coerção para impor o veredito.
Ao analisarmos o
longo processo da Ação Penal 470, que julgou os envolvidos na dita compra de
votos para os projetos do governo do PT, dentro de uma montada
espetacularização mediática, notáveis juristas, de várias tendências,
criticaram a falta de isenção e o caráter político do julgamento.
Não vamos entrar no
mérito da Ação Penal 470, que acusou 40 pessoas. Admitamos que houve crimes,
sujeitos às penas da lei. Mas, todo processo judicial deve respeitar as duas
regras básicas do direito: a presunção da inocência e, em caso de dúvida, esta
deve favorecer o réu.
Em outras palavras,
ninguém pode ser condenado senão mediante provas materiais consistentes; não
pode ser por indícios e ilações. Se persistir a dúvida, o réu é beneficiado
para evitar condenações injustas. A Justiça como instituição, desde tempos
imemoriais, foi estatuída exatamente para evitar que o justiciamento fosse
feito pelas próprias mãos e inocentes fossem injustamente condenados; mas,
sempre no respeito a estes dois princípios fundantes.
Parece não ter
prevalecido, em alguns Ministros de nossa Corte Suprema, esta norma básica do
Direito Universal. Não sou eu quem o diz; mas, notáveis juristas de várias
procedências. Valho-me de dois de notório saber e pela alta respeitabilidade
que granjearam entre seus pares. Deixo de citar as críticas do notável jurista
Tarso Genro por ser do PT e Governador do Rio Grande do Sul.
O primeiro é Ives
Gandra Martins, 88 anos, jurista, autor de dezenas de livros, Professor da
Mackenzie, do Estado Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.
Politicamente, se situa no polo oposto ao PT, sem sacrificar em nada seu
espírito de isenção. No dia 22 de setembro de 2012, na FSP, numa entrevista à
Mônica Bérgamo, ele disse claramente, com referência à condenação de José
Dirceu por formação de quadrilha: todo o processo lido por mim não contem
nenhuma prova. A condenação se fez por indícios e deduções, com a utilização de
uma categoria jurídica questionável, utilizada no tempo do nazismo, a
"teoria do domínio do fato”. José Dirceu, pela função que exercia
"deveria saber”. Dispensando as provas materiais e negando o princípio da
presunção de inocência e do "in dubio pro reo”, foi enquadrado na tal
teoria.
Claus Roxin,
jurista alemão que se aprofundou nesta teoria, em entrevista à FSP, de
11/11/2012, alertou para o erro de o STF: tê-la aplicado sem amparo em provas.
De forma displicente, a Ministra Rosa Weber disse em seu voto: "Não tenho
prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me
permite”. Qual literatura jurídica? A dos nazistas ou do notável jurista do
nazismo Carl Schmitt? Pode uma juíza do Supremo Tribunal Federal se permitir
tal leviandade ético-jurídica?
Gandra é
contundente: "Se eu tiver a prova material do crime, não preciso da teoria
do domínio do fato para condenar”. Essa prova foi desprezada. Os juízes ficaram
nos indícios e nas deduções. Adverte para a "monumental insegurança
jurídica” que pode, a partir de agora, vigorar. Se algum subalterno de um
diretor cometer um crime qualquer e acusar o diretor, a este se aplica a
"teoria do domínio do fato”, porque "deveria saber”. Basta esta
acusação para condená-lo.
Outro notável é o
jurista, Antônio Bandeira de Mello, 77, professor da PUC-SP, na mesma FSP do
dia 22/11/2013, assevera: "Esse julgamento foi viciado do começo ao fim.
As condenações foram políticas. Foram feitas porque a mídia determinou. Na
verdade, o Supremo funcionou como a longa manus da mídia. Foi um ponto fora da
curva”.
Escandalosa e
autocrática, sem consultar seus pares, foi a determinação do Ministro Joaquim
Barbosa. Em princípio, os condenados deveriam cumprir a pena o mais próximo
possível de suas residências. "Se eu fosse do PT” –diz Bandeira de Mello–
"ou da família, pediria que o presidente do Supremo fosse processado. Ele
parece mais partidário do que um homem isento”. Escolheu o dia 15 de novembro,
feriado nacional, para transportar para Brasília, de forma aparatosa num avião
militar, os presos, acorrentados e proibidos de se comunicar. José Genuino,
doente e desaconselhado de voar, podia correr risco de vida. Colocou todos em
prisão fechada mesmo aqueles que estariam em prisão semiaberta. Ilegalmente,
prendeu-os antes de concluir o processo com a análise dos "embargos
infringentes”.
O animus
condemnandi (a vontade de condenar) e de atingir letalmente o PT é inegável nas
atitudes açodadas e irritadiças do Ministro Barbosa. E nós tivemos ainda que
defendê-lo contra tantos preconceitos que, de muitas partes, ouvimos pelo fato
de sua ascendência afrobrasileira. Contra isso, afirmo sempre: "somos
todos africanos”, porque foi lá que irrompemos como espécie humana. Mas, não
endossamos as arbitrariedades deste Ministro culto; mas, raivoso. Com o
Ministro Barbosa, a Justiça ficou sem as vendas porque não foi imparcial; aboliu
a balança porque ele não foi equilibrado. Só usou a espada para punir mesmo
contra os princípios do direito. Não honra seu cargo e apequena a mais alta
instância jurídica da Nação.
Ele, como diz São
Paulo aos Romanos: "aprisionou a verdade na injustiça” (1,18). A frase
completa do Apóstolo, considero-a dura demais para ser aplicada ao Ministro.
[Leonardo Boff foi
professor de Ética na UERJ e escreveu Ética e Moral: em busca dos fundamentos,
Vozes 2003].
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