Correio do Brasil, com
Agência Pública e Rachael Bale, do CIR - de Washington
No momento em que a
patrulha de fronteira avançou sobre Cláudia e seu marido, Marvin, enquanto
tentavam atravessar o Rio Grande, uma fronteira natural entre o México e os
Estados Unidos, a salvadorenha de 31 anos, mãe de duas crianças, sentiu-se
vagamente aliviada. Era o fim de uma árdua jornada de 18 dias desde El
Salvador, de onde a família fugiu para escapar das mãos – e facas – de uma
gangue criminosa. Porém, era o começo de um novo e inesperado suplício: ela foi
separada do marido e presa com os filhos – um menino pré-adolescente e uma
menina, ainda bebê – para as celas cujo nome tem se tornado conhecido entre os imigrantes.
– Nos levaram para
as famosas hieleras (geleiras, na tradução literal) – diz Cláudia.
As hieleras, ou “os
freezers”, é como imigrantes e alguns agentes da patrulha de fronteira se
referem às gélidas celas de detenção que ficam ao longo da divisa entre EUA e
México. As instalações são usadas para abrigar imigrantes ilegais
temporariamente, até que possam ser transferidos para uma prisão das forças
legais de Imigração e Alfandega (ICE, em inglês), de onde são enviados aos seus
países de origem, ou soltos até as audiências de imigração.
Depois de serem
detidos, Marvin e Claudia prestaram uma queixa contra a patrulha da fronteira,
o que pode levar os agentes a enfrentarem ações disciplinares. O bebê do casal
ainda hoje tem uma tosse persistente, segundo Claudia.
– É assim que eles
nos fazem sentir absolutamente sem valor, como se tivesse cometido um crime
horroroso – afirmou.
Segundo entrevistas
e documentos jurídicos, muitos imigrantes são presos nestas salas cujas
temperaturas são mantidas tão baixas que homens, mulheres e crianças acabam
desenvolvendo doenças associadas ao frio. As celas são superlotadas, com
comida, água e padrões de higiene inadequados – o que causa mais doenças.
Em 2011, uma
pesquisa feita com recém-imigrantes pelo grupo de defesa No More Deaths mostrou
que 7 mil dentro dentre 13 mil imigrantes entrevistados enfrentaram condições
desumanas nas celas da patrulha de fronteira. Cerca de 3 mil afirmaram terem
sofrido frio extremo.
O conturbado debate
no congresso norte-americano sobre expandir a patrulha de fronteira com o
México e revisar o sistema de imigração no país jamais tocou no assunto do
tratamento aos imigrantes ou as condições das celas de patrulha. Mas, para
milhares de homens e mulheres, esses prédios significam uma recepção dura logo
depois do acreditavam ter sido a parte mais difícil da jornada, a travessia da
fronteira. Além disso, os imigrantes presos têm passado mais tempo nesas celas
temporárias porque as instalações da ICE já estão muito lotadas e não há
agentes de fronteira suficientes para resolver rapidamente seus problemas.
Em junho, a
senadora Barbara Boxer, uma democrata da Califórnia, propôs uma emenda ao
pacote de revisão da imigração, impondo um limite de pessoas presas por cela,
uma temperatura adequada, água potável, itens de higiene e acesso a cuidados
médicos. Porém, a emenda foi retirada da versão do Senado. Em setembro, outra
deputada democrata, Lucille Roybal-Allard, também da Califórnia, incluiu pontos
similares no projeto de lei “Protect Family Values at the Border Act” (“Proteger
Valores Familiares na Fronteira”, em inglês), que atualmente está sendo
discutida no congresso.
O repórter Luis
Megid, Univision (parceira da CIR), conseguiu visitar as celas provisórias, de
concreto com privadas de alumínio. Não lhe foi permitido entrar em uma cela com
detentos para julgar a temperatura, mas o oficial Daniel Tirado garantiu que
agentes dão cobertores a quem pedir. O local pareceu mais limpo do que descrito
pelos imigrantes, mas Christopher Cabrera, vice-presidente do Conselho de
Patrulha de Fronteira, sindicato que representa os 21 mil agentes da ICE,
contou que a equipe de limpeza é imediatamente acionada quando há uma visita ou
inspeção especial de investigação.
É claro que as
estações estão superlotadas. Segundo o oficial de patrulha da fronteira Juan
Ayala, outro dia ele levou quase cinco horas para preparar 732 sanduíches de
mortadela para um único almoço na estação da patrulha em McAllen, no Texas. Ele
mesmo carregou os sanduíches e os sucos em um carrinho de compras, e os
entregou aos 732 imigrantes adultos detidos da estação naquele dia.
A estação, segundo
Cabrera e Ayala, foi construída para abrigar entre 200 e 250 presos.
Frio torturante
Dentre todas as
adversidades, os imigrantes ex-detentos relatam que a pior era mesmo o frio
extremo. Muitos dos que atravessaram a fronteira e acionaram advogados e grupos
de direitos concordaram dar seus depoimentos para esta reportagem, sob a
condição de anonimato.
Adonys, 15, que
migrou de Honduras em julho para juntar-se à sua mãe nos Estados Unidos, disse
que a patrulha de fronteira o apreendeu atravessando a divisa perto de McAllen,
no meio de um grupo de 28 homens, mulheres e crianças. Já na estação, os
oficiais o obrigaram, a despir seu casaco – ele ficou apenas com uma camiseta –
e tirar o cadarço dos sapatos. “Quando agachei para desamarrar o sapato, senti
um agente jogando água gelada em mim. Ele ficou rindo”. Cinco outros policiais
ficaram parados, sem dizer nada. Depois, o colocaram em uma cela fria, com
camiseta molhada e tudo. “Pedi algo para me cobrir e um deles disse ‘Não, você
vai ficar aí desse jeito’”, lembra Adonys:
– Estava muito, muito
frio. Era insuportável. Não conseguia aguentar.
Sofia, uma mulher
de 25 anos que também fez pedido de refúgio nos EUA, ficou presa ali por duas
semanas. Segundo ela, a cela era tão fria que dava para ver sua respiração.
– É tão frio que
você treme e os lábios racham – lembra.
Apesar das
condições relatadas, existem poucas queixas legais sobre a detenção de curto
prazo. Geralmente, os advogados dos imigrantes se importam mais com a questão
imediata de como ficar nos EUA. No começo deste ano, a organização Americanos
por Justiça Imigratória, sediada na Flórida, entrou com um processo legal por
danos a sete mulheres e um homem detidos nas hieleras de estações no sul do
Texas.
O problema,
entretanto, se repete ao longo de toda a
fronteira dos EUA com o México, de acordo com advogados e ativistas. “Não
poderia ser mais difundido”, diz James Duff Lyall, um advogado de causas
migratórias da ACLU (American Civil Liberties Union) no Arizona.
Punição sem crime
A preocupação,
segundo alguns advogados de imigrantes detidos, é que eles estejam sendo
colocados em lugares gelados para serem punidos – sendo que o propósito da
detenção de fronteira é assegurar que pessoas procurando abrigo ou encarando
deportação compareçam às audiências. Elas não são acusadas de nenhum crime.
Lyall, da ACLU,
explica que a detenção de imigração é regida pela Quinta Emenda da Constituição
Americana, que proíbe condições que consistam em punição até que o processo
seja julgado, incluindo a privação de comida, roupa, abrigo e cuidados médicos
adequados. Ele também relata violações como a falta de acesso a um advogado e
aos consulados, e a coerção de detentos a assinarem ordens de remoção
voluntária.
Um dos problemas é
que a Agência de Proteção de Fronteira e Alfândega não é sujeita a inspeções
regulares que garantam cumprimento dessas diretrizes.
A política da
Agência dita que “sempre que possível” detentos não podem ser mantidos em prisões
temporárias por mais de 12 horas. Passadas 24 horas, um memorando tem que ser
enviado para o encarregado pela estação de patrulha. Depois de 72 horas, o
chefe do setor deve ser avisado.
Para advogados de
direitos humanos, as condições nas “hieleras” violam padrões internacionais.
Para Michele Garnet McKenzie, diretora de advocacia na organização Advogados
pelos Direitos Humanos, se a temperatura é rebaixada no intuito de humilhar ou
degradar os detentos, se conformaria um tipo mais grave de violação. “Há um
momento em que (a temperatura) é deliberadamente abaixada como forma de coerção
e privação de sono”, disse McKenzie. “E é aí onde se tem a argumentação para
uma queixa legal”.
De El Salvador para
a detenção
Para Cláudia e sua
família, as celas de detenção frias foram um verdadeiro choque.
Eles deixaram San
Salvador, capital de El Salvador, às pressas. Encheram duas pequenas mochilas
com algumas roupas, fraldas e dinheiro, e pegaram um ônibus em direção ao
norte. Marvin tinha sacado seu pagamento como motorista de ônibus no dia
anterior, e Cláudia tinha um pouco de dinheiro que conseguiu como vendedora
ambulante.
O casal acabara de
receber a notícia de que a família fora “denunciada” – marcada para morrer –
pela MS-13, a gangue que controlava o seu bairro. Isso porque Marvin vira
membros do grupo torturando um cunhado de Cláudia, que tinha no peito a
tatuagem de uma falange rival. Por um tempo a gangue permitiu que a família
ficasse em paz; mas quando veio a ameaça, eles tiveram que fugir.
Durante 18 dias,
viajaram em ônibus lotados e velhos até Cancún, no México, e dali para a cidade
de Reynosa, na fronteira com o sul do Texas.
O bebê pegou um
resfriado. Sem dinheiro, tiveram que ficar oito dias numa casa de um cartel de
“coyotes” que atravessam os imigrantes pela fronteira. Só conseguiram
atravessar o Rio Grande quando um familiar enviou a quantia do Canadá. Foram
presos logo depois de cruzarem o rio.
Uma vez dentro da
instalação da patrulha de fronteira, Cláudia recebeu um cobertor que reflete
calor, parecido com um saco de salgadinhos. O filho foi para uma cela com
outros adolescentes, ninguém contou a ela onde seu marido estava, e o bebê
tossia muito. A pequena cela estava cheia.
Milhas longe dali,
em outra estação da patrulha
de fronteira, Marvin também estava numa cela lotada e fria. Ali não havia
espaço sequer para agachar-se, quanto mais deitar e dormir. As luzes eram
mantidas acesas o tempo todo, e o oficiais faziam barulho quando algum dos
presos fechava os olhos. Além disso, não havia colchões, apenas o chão de
concreto gelado, debaixo de ventiladores que sopravam um ar gelado.
Em ambas celas, a
privada não tinha privacidade. Na cela de Claudia, uma câmera de segurança
mirava o assento, e ela podia ver os oficiais assistindo toda vez que uma
mulher, desesperada, usava o banheiro. Não havia chuveiros, sabonete ou escovas
de dentes.
Claudia comia dois
sanduíches por dia, de mortadela no pão branco. A água tinha gosto de lama, e
ela teve medo de beber, pois estava amamentando a bebê, que tossia cada dia
mais. Foram então levadas a um hospital, onde Cláudia pôde banhá-la e vesti-la
com roupas limpas. De volta à cela, os oficiais não deram os remédios
receitados pelo médico.
A família viveu
assim por seis dias, ou 144 horas. Sem ter nenhum conhecido nos Estados Unidos,
Claudia e suas crianças hospedaram-se no La Posada Providencia, um abrigo de
imigrantes em San Benito, Texas, cuja diretora, a irmã Zita Telkamp, ajudou a
localizar Marvin.
O bebê ainda está
doente e Cláudia tem pesadelos com a patrulha de fronteira. Agora, o plano,
segundo Marvin, é seguir lutando:
– Para que eles não
nos mandem de volta.
Sem comentários:
Enviar um comentário