sábado, 28 de dezembro de 2013

Macau: O SÍNDROME DO CU TREMIDO

 


Fernando Eloy – Hoje Macau, opinião
 
“Você precisa de se mexer mais”, dizia-me o médico há dias, “Ande pelo menos uma hora por dia”, acrescentava. Eu sei que ele tem razão e até gosto de andar, mas sou assaltado pela dúvida se andar a pé por Macau trará de facto benefícios à minha saúde. Na realidade, e sem qualquer cinismo, andar por Macau até é (ou era) um ‘desporto’ atraente – frequentemente nunca nada é exactamente igual à última vez em que por ali passámos ou, mais interessante, apesar da minguada dimensão da cidade, existe sempre mais um beco, mais um recanto ou um pormenor que antes nos escaparam resultando muitas vezes a sua descoberta num deleite bastas vezes susceptível de nos excitar a imaginação. Todavia, andar por Macau, se não ocorrer durante a noite ou bem cedo, há muito que deixou de poder ser considerado um ‘passeio higiénico’ tendo chegado ao nível de desporto de alto risco. Se o nosso percurso não nos permitir desviar por ruelas traseiras e becos alternativos, é por demais evidente que a nossa saúde está em risco. A abrasiva e omnipresente pestilência dos gases automóveis invadem-nos de forma irreprimível cada vez mais concentrados pelo emparedamento em curso da cidade. É físico, intenso e declaradamente pernicioso. Longe vão os tempos em que os aromas marítimos, do incenso ou do encantador odor dos lótus (expressão omnipresente na poesia chinesa) podiam figurar na literatura e na poesia como factores distintivos de Macau tendo agora de serem obrigatoriamente substituídos por dióxidos gases e sintéticos odores dos modernaços casinos sob pena do texto cair no ridículo. Não é só a nossa saúde que está risco mas toda a percepção do lugar. O cheiro de um sitio, mesmo que normalmente não o incluamos na nossa descrição corriqueira de um qualquer lugar visitado (a menos que pestilento), nunca consegue ser dissociado daquele. A este respeito lembro-me da minha primeira viagem ao Brasil (já faz uns bons anos) e da pergunta que um meu amigo, pintor, pessoa sensível às coisas me fez à chegada: queria ele saber a que cheirava o Brasil. Nunca alguém me tinha feito semelhante pergunta mas rapidamente percebi onde queria ele chegar pois, apesar dele lidar com o real em imagens através da pintura, sabia bem que nenhum retrato de um lugar fica completo sem os odores que lhe correspondem. ‘Cheira a doce e a terra’ respondi-lhe ao vasculhar nas minhas memórias. Nesta mesma senda odorífica, uma amiga de Hong Kong que em tempos decidiu trocar a metrópole vizinha por esta nossa terra à procura de sossego e bom ar (mas que depressa voltou à casa partida quando a revolução COTAI se iniciou) visitava-me e dizia-me: ‘Macau cheira ao mesmo do costume’. Naturalmente, perguntei-lhe a que se referia, ‘Ao que me levou daqui’ respondeu, ‘Gasolina’. Fiquei triste e sem resposta. Ela tinha razão. Conseguimos ultrapassar Hong Kong. Alguma vez teria de ser…
 
Resumindo, o ar de Macau tantas vezes louvado por poetas, escritores, viajantes e habitantes é, hoje em dia, uma merda! Tal qual. De quem é a culpa? Seria fácil dizer que é do Governo. Naturalmente, eles têm a sua quota parte de responsabilidade mas não há Governo nenhum do mundo, a menos que autocrático e Macau, apesar de tudo, ainda não chegou aí, que faça aquilo que a população não quer e a população de Macau não quer privar-se dos seus inúmeros automóveis. A maioria, talvez porque nunca saia do ar condicionado, continua indiferente insistindo em andar de cu tremido, a bem dizer. É absolutamente incompreensível como uma cidade tão pequena necessita de tantos automóveis e porque tantas famílias precisam de mais do que um em casa e, se repararem, a maioria leva apenas uma pessoa lá dentro, às vezes duas.
 
Macau era, até há bem pouco tempo, o local do mundo com maior esperança de vida por habitante, mas com este ambiente não acredito que essa estatística se mantenha por muito mais. O carro, um dos objectos mais anacrónicos deste nosso suposto mundo avançado e tecnológico, há muito que deixou de fazer sentido nas cidades mas nós, porque somos estúpidos mas liberados porque não temos medo que o céu nos caia em cima da cabeça, continuamos indiferentes a gasear-nos uns aos outros como se fosse a coisa mais normal do mundo.
 
Uma das desculpas clássicas que vou ouvindo frequentemente, e me deixa à beira de um ataque de nervos, aponta para as crianças. Dizem-me então que a existência do automóvel se fica a dever às crianças, o que não deixa de constituir uma aberração profunda pois se nós agora já sentimos as consequências, imaginem a cidade que as coitadas das crianças vão herdar ainda por cima vindo a saber que culpa foi em parte delas… Não, caros amigos, a culpa não é das crianças, é vossa. Macau é pequeno demais para que essa justificação faça algum sentido. Outra desculpa vulgarmente escutada, e ainda pior, aponta para tiques bacocos de classe que não permitem aos sujeitos misturar-se com o povo nos autocarros. Mas, a realidade, é que é fácil andar de transportes em Macau e o povo dos autocarros é bem mais fraterno que do que povo ‘automovido’. Os autocarros de Macau levam-nos praticamente a todo o lado e se não nos deixam à porta pouco falta. Atrasam-se? Talvez, mas se não existissem tantos carros na rua andariam mais depressa.
 
É natural que o Governo pode fazer alguma coisa como regulando o número de autocarros autorizados aos casinos e agências de viagens, incentivando as transportadoras a adquirirem veículos não poluentes, aumentando os espaços pedonais fechando ruas ao trânsito particular, criando horários para cargas e descargas, lançando um dia sem automóveis como se faz na Europa, eliminando as motoretas de 50 cc, lançando campanhas de sensibilização etc. Mas não podemos ficar à espera que seja o Governo a resolver algo que começa na própria vontade dos cidadãos. Como dizia o arquitecto Mauro Munhoz, organizador do Festival Literário de Parati Brazil, durante a última Rota das Letras em Macau: “Não existe político bom em nenhum lugar do mundo. A única maneira do político fazer coisas que interessam é você ter uma rede da sociedade civil que controla o político”.
 
Por isso, caro leitor, quando se sentar no seu carro pense bem no que está a fazer. Sim, eu quero que se sinta culpado, envergonhado até, como ficaria se se peidasse sonoramente em público.
 

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