Há um século,
combustível é essencial para viabilizar projetos nacionais relevantes. Por
isso, no Brasil, leilões são ainda mais incompreensíveis
Mauricio Metri – Outras Palavras
O petróleo
constitui-se, não é de hoje, num recurso estratégico. Não são poucas nem
triviais as razões para tanto. Tornou-se, há tempos, o principal combustível
das forças armadas em geral; encontra-se ao centro da matriz de transporte de
praticamente todo o mundo; e tem uso difundido e diversificado nas mais
diferentes cadeias produtivas. Daí decorre uma consequência importante para as relações
internacionais: o petróleo é amplamente utilizado no “jogo diplomático” como
arma de pressão, retaliação, dissuasão, apoio ou sustentação, cujos cálculos,
interesses e iniciativas respondem às disputas geopolíticas inerentes à
competição interestatal.
Ao longo dos
últimos anos assiste-se, por exemplo, a um acirramento das relações entre OTAN
e Rússia com desdobramentos para o setor de petróleo e gás natural. Desde o fim
da Guerra Fria, os EUA têm deslocado o cinturão de segurança e contenção da Rússia,
expandindo-o na direção da Europa Central por meio da incorporação de países
desta região à OTAN. Em 1999, República Checa, Hungria e Polônia aderiram à
Organização; em 2004, Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia,
Lituânia e Romênia; e, em 2009, Albânia e Croácia.
O Estado russo vem
reagindo de diferentes formas a esse contexto. Sob alegação de que a estatal
ucraniana havia retirado ilegalmente combustível do gasoduto que abastece o
continente, a Rússia cortou, em 2006, o fornecimento e criou uma crise
energética em diversos países europeus. Apesar da volta da normalidade de
abastecimento, reafirmou-se a consciência européia acerca de sua
vulnerabilidade energética em termos dos recursos provenientes da Rússia, como
também se evidenciou a disposição desta em utilizá-los como arma de retaliação
e dissuasão.
Não por outra
razão, abriu-se um debate, em 2007, a partir da proposta do senador
norte-americano Richard Lugar, para incorporação do conceito de “segurança
energética” ao Artigo 5º da OTAN, que determina a defesa mútua entre seus
membros. Nesse debate, Gal Luft, diretor do Instituto para Análise da Segurança
Mundial, em Washington, afirmou que “[A OTAN] Deveria trabalhar para criar uma
solidariedade política contra perturbações deliberadas do fornecimento de
energia, como foi o caso do corte do fornecimento de gás por parte da Rússia à
Ucrânia (…).” Para o norte-americano, a importância da OTAN para o setor
decorre de sua singularidade: “(…) é o único organismo multinacional que pode
contribuir com músculo para o desafio à segurança energética.” A razão para
tanto é que “o mercado energético é tudo menos um mercado livre (…). Lidar com
a energia como um assunto puramente econômico é um vestígio do passado. A
realidade que enfrentamos hoje em dia obriga-nos a adotar um novo conjunto de
instrumentos, devendo a força militar ser um deles.”
Christophe
Paillard, da Diretoria de Assuntos Estratégicos no Ministério da Defesa
Francês, até compartilha a ideia de que “alguns produtores de energia, em
particular a Rússia e o Irã, têm demonstrado uma tendência para recorrerem ao
gás e ao petróleo como forma de pressão política”. No entanto, para ele, “a
questão é saber se um ‘clube energético’ da OTAN seria apenas uma ferramenta
conveniente para manter a influência americana na Europa”. Isto porque “a
ameaça da invocação do Artigo 5º foi concebida para garantir a defesa mútua,
mas, quando é utilizada, também implica a ameaça de guerra. A segurança
energética europeia não pode ser refém do risco do conflito aberto que a
associação com a OTAN traria. Em última instância, a União Europeia é a melhor
organização para o papel.” (Para maiores detalhes, veja qui).
Associado a este e
ao contexto gerado pelo conflito na Ossétia do Sul, a Rússia propôs na
Assembléia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2008, uma cúpula
pan-europeia para a criação de um novo tratado de segurança coletiva na Europa,
de que ela mesma faria parte. No entanto, não houve adesão, apesar da
disposição para negociação da França e da Alemanha. A linha norte-americana
seguiu sendo a de expandir suas posições, como os acordos com a Polônia e
República Checa para instalação de base militar e sistema de escudo de defesa
antimísseis.
Petróleo e
Estrangulamento Externo
É relevante
perceber que a importância do petróleo vai além da segurança energética, das
garantias de acesso e abastecimento. Como se trata de um recurso com enorme
mercado internacional, as receitas decorrentes de sua exportação possuem uso
estratégico potencial para flexibilização das restrições à capacidade de
importação de um país, inerentes aos processos de expansão e modernização de
forças produtivas e militares em geral2. Isto porque a capacidade de
importação de toda economia nacional depende, em última instância, de seu
desempenho exportador. Ao viabilizar o acúmulo de reservas em divisa
estrangeira, as exportações contornam o problema estrutural do estrangulamento
externo sem recorrer à Conta de Capital, ou seja, sem precisar captar recursos
em moeda internacional por meio do endividamento externo. Este repõem, em
escala ampliada, o mesmo problema, ao criar contrapartidas futuras de envio ao
exterior de recursos em moeda estrangeira.3
Alguns casos,
antigos e recentes, bastante diversos, dessa sabedoria estratégica são
descritos a seguir. Durante os anos de 1920 e 1930 e, sobretudo, ao longo da 2º
Guerra, a região de Baku, no Cáucaso, foi decisiva para os objetivos dos
soviéticos por suprir suas urgências de abastecimento e, também, para obtenção
das divisas internacionais necessárias à passagem da “foice e martelo” para a
“indústria militar e aero-espacial de ponta”. Com a própria dimensão e escalada
que adquiriu a Guerra Fria, tornou-se preciso encontrar novos campos no final
da década de 1950. A descoberta de petróleo em Surgut próximo às margens do Rio
Ob, em 1961, deu fôlego à URSS. Os soviéticos alcançaram a posição de segundo
maior exportador de petróleo, atrás apenas da Arábia Saudita, o que lhes
garantiu não apenas sua segurança energética, mas também as condições para a
superação do estrangulamento externo de sua economia e de suas áreas de
influência.
A França no
pós-guerra deparou-se com problemas semelhantes. Na ocasião, o país dependia
das empresas britânicas e norte-americanas para seu abastecimento. A fim de
alcançar sua independência energética, implementou uma intensa busca por
recursos petrolíferos. Segundo Jean-Marie Chevalier, o importante era encontrar
petróleo em colônias ou ex-colônias, já que o recurso poderia ser comprado com
francos. Em 1954, o resultado veio. Descobriram profícuos campos de petróleo na
Argélia. Apesar da independência do país em 1962, a região produtora seguiu
como um enclave francês até 1971, quando ocorreu sua nacionalização. Ao
investir na prospecção de petróleo em suas áreas de dominação e influência, a
França revelou uma estratégia baseada num duplo movimento associado: por um
lado, buscava garantir acesso direto às fontes produtoras, além de influência
ou controle sobre a política de exploração; e, por outro, visava deslocar o
problema da restrição externa para fora do setor energético, ao garantir sua
importação com base em moeda nacional. Contornava, então, tanto o potencial de
retaliação e veto das companhias anglo-saxãs, quanto uma crise de abastecimento
decorrente de um problema de escassez de divisas.
No início dos anos
de 1980, quando o governo Reagan deu novo impulso às disputas com a URSS, o uso
do petróleo como arma reapareceu via estrangulamento externo. Os EUA
implementaram três movimentos articulados: expandiram seus gastos militares (a
“diplomacia das armas”, de que falou Maria da Conceição Tavares); deram um
choque no sistema monetário-financeiro internacional, encerrando sua liquidez e
reafirmando a posição do dólar como moeda de referência internacional (a
“diplomacia do dólar”, de que falou Maria da Conceição Tavares); e obrigaram a
Arábia Saudita a aumentar sua produção de petróleo de modo a derrubar os preços
internacionais (por analogia, pode-se falar de uma “diplomacia do petróleo”).
Desse modo, dificultaram a capacidade de a URSS responder a esta rodada de
enfrentamento, ao tornarem ainda mais imprescindíveis à URSS as divisas
internacionais, ao mesmo tempo em que fechavam os canais para sua obtenção
(fosse pelo declínio forçado das receitas de exportação soviéticas, fosse pelo
estrangulamento dos canais de endividamento externo fora do controle do FED).
Menciona-se,
também, a atuação da Venezuela na última década. Por conta de seu domínio sobre
os recursos (em moeda estrangeira) provenientes da exportações de petróleo, o
governo de Hugo Chavez ajudou no processo de estabilização econômica da
Argentina após a reestruturação da dívida externa deste país em fevereiro de
2005. A Venezuela adquiriu grandes quantidades dos títulos Boden 2012 e Bonar
2015, a ponto de se tornar o maior comprador dos bônus argentinos. Entendia que
a mitigação da vulnerabilidade externa das principais economias sul-americanas
era condição necessária a uma efetiva política de integração sul-americana com
vistas a diluir o peso e a capacidade de arbítrio dos EUA na região. Foi
durante esse período que se avançou na criação e no fortalecimento de
instituições centrais ao processo de integração regional, como, por exemplo, o
Mercosul e a Unasul.
Em suma, não é
difícil observar situações de utilização do petróleo como arma efetiva no jogo
geopolítico internacional, fosse como forma de garantir (ou vetar) o
abastecimento de petróleo; ou como meio de flexibilizar (ou restringir) a
capacidade de importação.
Multilateralismo,
“Entorno Estratégico” e o Pré-Sal Brasileiro
É oportuno lembrar
que, do ponto de vista global, o Brasil vem defendendo o multilaterismo em sua
política externa e, dentro dessa linha, tem buscado uma reinserção mais
propositiva e qualificada nos organismos internacionais em geral, de modo a
discutir a própria agenda dessas instituições conforme os seus interesses
nacionais estratégicos. No caso de instituições como o Fundo Monetário
Internacional, cabe observar que uma reinserção mais propositiva depende,
dentre outros aspectos, da capacidade de contribuição financeira e, por
conseguinte, do volume das reservas internacionais disponíveis no Banco
Central.
Dentro do marco da
nova estratégia internacional brasileira, definida no âmbito do Plano Nacional
de Defesa de 2005 e na Estratégia Nacional de Defesa de 2008, elaborou-se o
conceito de “entorno estratégico”, que compreende a América do Sul, a Bacia do
Atlântico Sul, a África Subsaariana e a Antártida, regiões onde o Brasil
pretende construir uma liderança e uma influência econômica, diplomática e
militar.
Para qualquer um
desses objetivos, faz-se necessário dispor de instrumentos efetivos e, de fato,
o petróleo do pré-sal brasileiro tem muito a contribuir, dado o volume das
reservas da região e o domínio da Petrobrás sobre as técnicas de exploração.
Nessa perspectiva,
tratou-se de um avanço a nova legislação para o setor (Lei 12.351 de 2010),
sobretudo porque o seu Artigo 12º resguarda ao Governo Brasileiro a
possibilidade de entregar à Petrobrás, sem necessidade de leilão, determinadas
áreas estratégicas, “visando à preservação do interesse nacional e ao
atendimento dos demais objetivos da política energética”. Porque o governo
brasileiro é o principal acionista da Petrobrás, o Artigo 12º acaba por
preservar-lhe autonomia para uso do petróleo como instrumento diplomático, pois
garante sua gerência exclusiva sobre a política de exploração e converte as
receitas das exportações de petróleo em reservas no Bacen, sem nenhuma
contrapartida futura em moeda estrangeira na forma de remessas de lucro por
parte de empresas estrangeiras do setor.
O Caso do Campo de
Libra
Os primeiros passos
do Brasil para exploração do pré-sal, no entanto, seguiram por caminho distinto.
O leilão do Campo de Libra atendeu a uma agenda caracterizada pelos dilemas
macroeconômicos decorrentes da política econômica assumida pelo atual governo.
Ao viabilizar uma rápida exploração do campo, por conta do financiamento de
empresas estrangeiras, e por poder contar imediatamente com os recursos pagos
pelo consórcio, o governo busca atenuar, segundo ele, suas dificuldades
conjunturais e consolidar, na sua avaliação, perspectivas futuras mais
favoráveis no que diz respeito ao cumprimento de suas metas fiscais.
Porque o governo
não se valeu do Artigo 12º e preferiu leiloar o Campo de Libra, a política de
exploração desta será determinada no âmbito do seu Comitê Operacional (Artigo
24º), composto pelo presidente da empresa pública e por um representante de
cada uma das empresas consorciadas (Artigo 23º) – Petrobrás, a francesa Total,
a anglo-holandesa Shell, e as chinesas CNPC e CNOOC. A questão é que qualquer
iniciativa estratégica das autoridades brasileiras para uso do petróleo, em
termos da sua quantidade produzida, do destino e do preço, será objeto de
negociações, disputas e controvérsias no âmbito do referido Comitê. Não
necessariamente haverá dentro deste convergência entre os interesses do Estado
brasileiro, o das empresas estrangeiras e, indiretamente, os dos Estados de
origem destas companhias.
Além desta perda de
capacidade decisória sobre a política de exploração do Campo de Libra, parte
das receitas derivadas de sua exportação será remetida aos países de origem das
empresas estrangeiras consorciadas. Trata-se, com efeito, de contrapartidas
futuras em moeda estrangeira. Comprometeu-se, em algum grau, o seu potencial de
uso nas questões relativas ao estrangulamento externo (presente ou futuro) do
país, ou a qualquer outro uso que se poderia fazer com essas reservas em moeda
estrangeira.
O dilema de como
explorar estrategicamente a região do pré-sal brasileiro seguirá em debate em
razão dos demais campos ainda não explorados, já descobertos ou não. Poder-se-á
ampliar o escopo de seus objetivos e usos, avançando, assim, não somente em
termos da agenda macroeconômica, mas também em outras tão ou mais importantes.
1 Professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Pesquisador do Grupo “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”.
(www.poderglobal.net). O autor agradece a colaboração de Juliana Pittigliani,
graduanda em Defesa e Gestão Estratégica Internacional, UFRJ.
2 Toda economia nacional, para realizar
compras e pagamentos com o exterior, precisa auferir divisas internacionais,
cujas ofertas não estão sob o controle de seus Estados.
3 Não se trata de uma questão fiscal, de
escassez de recursos para financiar gastos dentro de uma economia, mas do
desafio de se obter o instrumento de liquidação de compromissos internacionais,
já que estes não podem ser pagos com moeda local.
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