Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Frequentemente,
as equipas perdedoras em vez de reconhecerem os seus erros e identificarem as
suas fragilidades, tentam culpar os árbitros pelas suas derrotas. Se já no
futebol, este tipo de conduta é censurável, num órgão de soberania é totalmente
inaceitável.
Contudo,
não merece outra leitura a reação governamental ao acórdão do Tribunal
Constitucional que veio "declarar com força obrigatória geral" a
inconstitucionalidade de três normas do Orçamento Geral do Estado para o ano em curso. Aliás , o
ataque perpetrado pelo Governo e a respetiva maioria parlamentar contra o
Tribunal Constitucional não tem precedentes na história da nossa democracia. É
um comportamento que atenta gravemente contra o princípio constitucional da
separação dos poderes e a independência do poder judicial, quando procura
arrastar para o terreno da luta político-partidária a instância suprema à qual
a Constituição confiou a administração da justiça "em matérias de natureza
jurídico-constitucionais" (artigo 221º) - o Tribunal Constitucional.
O
pedido de aclaramento técnico-jurídico de algumas passagens do acórdão ainda
pareceria admissível no âmbito da cooperação institucional entre órgãos de soberania,
apesar da ausência de específico fundamento legal e de ser duvidosa a
relevância das "dúvidas" alegadas. É fácil de perceber que sejam os
subsídios pagos por inteiro ou por duodécimos, ou que o acórdão produza efeitos
a partir do dia 30 ou 31 de maio, o respetivo impacto financeiro seria
insignificante e a perturbação induzida seria mínima... a não ser que não
houvesse máquinas de calcular no Ministério das Finanças. Ouvindo porém as
declarações de Passos Coelho e Paulo Portas acusando o Tribunal de
"irresponsabilidade", exigindo-lhe que "explique o seu
pensamento" e ofereça "pistas claras" sobre quais as
"medidas substitutivas" a adotar, percebe-se a discrepância flagrante
com aquele pedido inócuo de "aclaramento técnico" endereçado através
da Assembleia da República. O pedido de "aclaramento" revela-se mero
"papel de embrulho" para a inédita provocação lançada a um tribunal
que, precisamente, acusam de usurpar as competências do Governo! Afinal, quem
subverte a separação dos poderes e das funções constitucionais é o próprio XIX
Governo Constitucional ao pretender agora que um tribunal desenvolva "o
seu pensamento" para definir orientações positivas da governação - uma
responsabilidade que a Constituição lhe confia exclusivamente. Deplora-se a
falta de cultura democrática e a ausência de um mínimo de "sentido de
Estado" evidenciados por este despudorado ataque à independência judicial.
Como se não bastasse, para assegurar a continuidade desta novela nos meios de
Comunicação Social, o primeiro-ministro veio antecipar novos episódios,
lançando para a arena a necessidade de maior rigor na seleção dos juízes do
Tribunal Constitucional. Uma questão, enfim, que terá deixado perplexa a
Senhora Presidente da Assembleia da República que em tempos foi selecionada
para juíza do mesmo tribunal, pela mesma Assembleia...
São
os próprios fundamentos do Estado de Direito que desta forma são postos em causa. A leviandade de
tal conduta apenas se pode compreender como tentativa desesperada de ocultar o
incalculável sofrimento e a extensa devastação económica que as políticas de
Passos e Portas infligiram ao país, clamorosamente censuradas pelos cidadãos
nas últimas eleições. A verdade é que apesar dos efeitos cumulativos das
medidas de austeridade aplicadas, não conseguiram ao longo de três anos cumprir
nenhuma das metas orçamentais previamente acordadas nem assegurar a
sustentabilidade da diminuição da despesa pública. O que bem demonstra que a
via única dos cortes nos rendimentos e do aumento da carga fiscal é uma "receita"
que só pode contribuir para o agravamento da crise, na ausência de uma
verdadeira reforma do Estado que redimensione os encargos e racionalize os
serviços públicos, num quadro de reestruturação da dívida cuja necessidade,
todavia, o Governo insiste em
negar. Começou por rejeitar a possibilidade de outros
caminhos e recusou todos os contributos dos partidos da Oposição, afunilando
demagogicamente o espaço do pluralismo democrático. Por esta declaração de
guerra aos tribunais, revela agora a sua crassa impreparação cívica e indicia
preocupantes inclinações totalitárias.
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