sexta-feira, 6 de junho de 2014

Portugal: "Guerra" à independência judicial



Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião

Frequentemente, as equipas perdedoras em vez de reconhecerem os seus erros e identificarem as suas fragilidades, tentam culpar os árbitros pelas suas derrotas. Se já no futebol, este tipo de conduta é censurável, num órgão de soberania é totalmente inaceitável.

Contudo, não merece outra leitura a reação governamental ao acórdão do Tribunal Constitucional que veio "declarar com força obrigatória geral" a inconstitucionalidade de três normas do Orçamento Geral do Estado para o ano em curso. Aliás, o ataque perpetrado pelo Governo e a respetiva maioria parlamentar contra o Tribunal Constitucional não tem precedentes na história da nossa democracia. É um comportamento que atenta gravemente contra o princípio constitucional da separação dos poderes e a independência do poder judicial, quando procura arrastar para o terreno da luta político-partidária a instância suprema à qual a Constituição confiou a administração da justiça "em matérias de natureza jurídico-constitucionais" (artigo 221º) - o Tribunal Constitucional.

O pedido de aclaramento técnico-jurídico de algumas passagens do acórdão ainda pareceria admissível no âmbito da cooperação institucional entre órgãos de soberania, apesar da ausência de específico fundamento legal e de ser duvidosa a relevância das "dúvidas" alegadas. É fácil de perceber que sejam os subsídios pagos por inteiro ou por duodécimos, ou que o acórdão produza efeitos a partir do dia 30 ou 31 de maio, o respetivo impacto financeiro seria insignificante e a perturbação induzida seria mínima... a não ser que não houvesse máquinas de calcular no Ministério das Finanças. Ouvindo porém as declarações de Passos Coelho e Paulo Portas acusando o Tribunal de "irresponsabilidade", exigindo-lhe que "explique o seu pensamento" e ofereça "pistas claras" sobre quais as "medidas substitutivas" a adotar, percebe-se a discrepância flagrante com aquele pedido inócuo de "aclaramento técnico" endereçado através da Assembleia da República. O pedido de "aclaramento" revela-se mero "papel de embrulho" para a inédita provocação lançada a um tribunal que, precisamente, acusam de usurpar as competências do Governo! Afinal, quem subverte a separação dos poderes e das funções constitucionais é o próprio XIX Governo Constitucional ao pretender agora que um tribunal desenvolva "o seu pensamento" para definir orientações positivas da governação - uma responsabilidade que a Constituição lhe confia exclusivamente. Deplora-se a falta de cultura democrática e a ausência de um mínimo de "sentido de Estado" evidenciados por este despudorado ataque à independência judicial. Como se não bastasse, para assegurar a continuidade desta novela nos meios de Comunicação Social, o primeiro-ministro veio antecipar novos episódios, lançando para a arena a necessidade de maior rigor na seleção dos juízes do Tribunal Constitucional. Uma questão, enfim, que terá deixado perplexa a Senhora Presidente da Assembleia da República que em tempos foi selecionada para juíza do mesmo tribunal, pela mesma Assembleia...

São os próprios fundamentos do Estado de Direito que desta forma são postos em causa. A leviandade de tal conduta apenas se pode compreender como tentativa desesperada de ocultar o incalculável sofrimento e a extensa devastação económica que as políticas de Passos e Portas infligiram ao país, clamorosamente censuradas pelos cidadãos nas últimas eleições. A verdade é que apesar dos efeitos cumulativos das medidas de austeridade aplicadas, não conseguiram ao longo de três anos cumprir nenhuma das metas orçamentais previamente acordadas nem assegurar a sustentabilidade da diminuição da despesa pública. O que bem demonstra que a via única dos cortes nos rendimentos e do aumento da carga fiscal é uma "receita" que só pode contribuir para o agravamento da crise, na ausência de uma verdadeira reforma do Estado que redimensione os encargos e racionalize os serviços públicos, num quadro de reestruturação da dívida cuja necessidade, todavia, o Governo insiste em negar. Começou por rejeitar a possibilidade de outros caminhos e recusou todos os contributos dos partidos da Oposição, afunilando demagogicamente o espaço do pluralismo democrático. Por esta declaração de guerra aos tribunais, revela agora a sua crassa impreparação cívica e indicia preocupantes inclinações totalitárias.

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