domingo, 6 de julho de 2014

Macau: AQUI NÃO QUERO MORRER



ISABEL CASTRO – Hoje Macau, opinião

Só a teimosia explica aquilo que toda a gente sabe, mas que números divulgados esta semana vêm confirmar: Macau tem falta de médicos, tem falta de enfermeiros, tem falta de camas nas unidades hospitalares. A população está a envelhecer e a velhice traz doenças – é uma chatice. A população reproduz-se e os nascimentos requerem cuidados médicos – outra maçada. Vida e saúde misturam-se do princípio ao fim, que não se vive sem saúde: sobrevive-se e sobrevive-se mal quando a saúde falha. Sobrevive-se ainda pior quando não se confia na saúde que se tem.

Não conheço os detalhes do caso do miúdo que não se consegue mexer e que culpa o Centro Hospitalar Conde de São Januário do estado em que se encontra. Às tantas até não tem razão. Não conheço os detalhes do caso revelado esta semana acerca da administração errada de fármacos a um recém-nascido. Parece que os pais têm razão – o hospital público até apresentou um invulgar pedido de desculpas.

Não conheço os detalhes destes dois casos, mas estes dois casos não interessam: são só mais dois que se juntam a todos os outros e a todas as queixas que se ouvem por aí. Como não é hábito meu escrever sobre o que se diz, aqui dispo a minha pele de jornalista para dizer que conheço suficientemente bem o hospital. E neste hospital fui maltratada. Neste hospital já me mandaram voltar no dia seguinte por não haver cama para ser internada. (E neste hospital já fui muito bem tratada – fica a ressalva pelo respeito e admiração por quem, em condições de terceiro mundo, faz das tripas coração para que quem passa pelo hospital não tenha de lá voltar tão cedo.)

Tudo o que ouvi dizer nestes anos em Macau e tudo o que conheço por já lá ter estado me levam a escrever que é impossível corresponder ao pedido deixado na passada semana pelo director dos Serviços de Saúde, pedido dirigido ao tal miúdo que não se consegue mexer: ao contrário do que espera Lei Chin Ion, não é possível confiar no hospital que se tem. Ninguém confia.

E ninguém confia no hospital porque o São Januário não cumpre os critérios mínimos. Os números divulgados esta semana – que mostram que Macau fica abaixo dos critérios das jurisdições economicamente pujantes e com índices de desenvolvimento humano elevados – servem apenas para vincar o paradoxo, a teimosia e as estranhas teias da saúde em Macau, o lugar do mundo que ocupa a quarta posição na lista mundial dos territórios e países com a maior riqueza per capita.

Claro que todos sabemos que isto não se resolve porque não se quer – e assim se explica a teimosia que serve, por sua vez, para explicar tudo o resto. A coisa resolvia-se com a mesma facilidade com que se constroem camas de hotéis de luxo: fazem-se depressa e bem, com lençóis sem remendos. A coisa resolvia-se indo buscar médicos e enfermeiros lá fora, sendo que o discurso do contra não tem qualquer relevo: quando quer, o Governo faz o que quer; e na hora da aflição, não há doente que peça o passaporte a quem lhe oferece segurança, coisa que a maioria dos atarefados médicos e enfermeiros do hospital não consegue garantir.

A coisa resolvia-se ainda com um ou dois concursos públicos para dar um melhor aspecto à coisa e algum conforto aos doentes que, num delírio febril, poderão achar que se encontram num hospital de campanha. A coisa resolvia-se com outro concurso público para garantir condições mínimas de higiene. E por aí fora – peritos em gestão hospitalar não faltam, a começar pelo Chefe do Executivo que, apesar de não mostrar qualquer brio em relação ao hospital do território que governa, tem obrigação curricular de perceber muito, mas mesmo muito, da matéria.

A coisa resolvia-se se houvesse vontade. Não há. Há teimosia. E a teimosia revela-se nesta incapacidade de perceber que todos ficam a ganhar quando se distribui por todos. Porque há teimosia, responde-se com teimosia: já perdi a conta aos textos que escrevi sobre a saúde em Macau e, por isso, adivinho desde já os suspiros de enfado nalguns gabinetes. É a vida. A minha e a dos outros que também aqui não querem morrer.

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