quinta-feira, 3 de julho de 2014

Portugal: UMA LUCIDEZ DE NÁUFRAGOS



Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

O ESTADO DA NAÇÃO 

Somos cada vez mais um Estado sem Nação e uma Nação sem Estado: é este duplo processo de deslaçamento que produz a decomposição da sociedade e o atordoamento dos cidadãos que todos sentimos hoje. Isto não são apenas palavras: o sentimento de nação não resiste de facto à tenaz do europeísmo, da globalização e do hiperindividualismo. E o Estado esfarela-se de facto numa miríade de funções sem definição nem meios, que frustram todo o tipo de convicções e de expectativas.

O debate sobre o "estado da nação" ilustrou bem esta realidade, que no turbilhão do dia-a-dia em boa parte nos escapa. Quanto ao mais, tornou-se num ritual sem substância que, na ausência quer de um verdadeiro balanço do que se fez e não fez quer de projetos que definam o que se pretende fazer no futuro, mais parece uma sessão suplementar dos habituais debates quinzenais com o Governo.

E o Conselho de Estado de hoje, presidido por um Presidente da República que nunca conseguiu, por culpa própria, ser o hábil mediador político de que o País precisa, também não deve ir muito além de um previsível comunicado final, com mais um apelo ao consenso que todos sabemos inviável nas presentes circunstâncias políticas. A não ser que o ponto de agenda sugerido pelo secretário-geral do PS, sobre a criação de um "consenso nacional em torno da renegociação do pagamento da dívida", seja levado a sério. 

O ESTADO DO PS  

Como há três anos escrevi aqui mesmo, na altura em que o PS perdeu as últimas eleições legislativas, era então não só oportuno como necessário fazer um inventário dos seus seis anos de governo. Por uma razão muito simples: é que não o fazer seria condenar-se a ficar refém do passado, e de um passado que passaria a ser facilmente manipulado pelos seus adversários, ao sabor das suas conveniências políticas. É o que tem acontecido. 

O inventário não é, na vida política dos partidos, uma opção dos seus militantes, mas um imperativo perante o País que eles dizem querer servir. É um exercício de humildade e de verdade: de humildade porque é vital reconhecer os erros que se cometeram, e de verdade porque só essa exigência permite repor as condições de credibilidade de que um partido político necessita para poder aspirar de novo ao exercício do poder. 

A disputa em curso no Partido Socialista revela agora bem o erro, ou a ilusão, de se ter poupado a este escrutínio a governação de José Sócrates, a que António Costa aparece muito colado e António José Seguro mais distante, mas que nunca foi objeto de verdadeira análise crítica ou de um balanço ponderado, que deviam ter sido feitos no arranque da fase que se lhe seguiu. 

Era contudo evidente que, no momento em que ocorresse qualquer disputa séria pela liderança do PS, se desencadearia a necessidade desse inventário, como temos vindo a ver. E vale mais tarde do que nunca: ele permitirá, se for feito com seriedade e rigor, não só compreender muitas das diferenças que tantas vezes se diz não se vislumbrarem entre os atuais rivais, como diferenciar as suas visões de futuro e avaliar melhor os seus valores e projetos.  

Eu sei que há várias maneiras de ver os partidos: um modo mais clubista, que os vê à imagem das claques de futebol, vibrando cegamente, sejam quais forem as circunstâncias, contra todos os adversários. Ou um modo mais pretoriano, que os concebe como organismos de natureza mais ou menos militar, que se destinam sobretudo a proteger e a perpetuar no poder o chefe e os seus fiéis.  

Mas há também um modo mais cidadão, que os vê e vive como associações de pessoas livres que partilham, de um modo naturalmente controverso, valores idênticos e projetos convergentes para o País. Tem de ser este último o modo adoptado na campanha que vai levar à inédita forma de escolha do candidato do PS a primeiro-ministro, mostrando assim que o PS sabe que é aqui que se encontra o mais importante marcador da democracia e o cursor da sua vitalidade. 

O ESTADO DA EUROPA 

O principal significado da escolha/eleição de Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão Europeia é o de revelar que a Europa já não tem soluções inovadoras para nada, que ela vive de remendos atrás de remendos. Foi uma escolha democrática, dir--se-á, invocando os resultados de 25 de maio último. Mas é preciso acrescentar e perceber que se trata de uma democracia em profunda - e ainda pouco percebida - transformação, cheia de estratagemas para fazer os cidadãos sufragar o que não sabem ou não conhecem.

J. C. Juncker virá a ser votado, e certamente eleito, pelo Parlamento Europeu para as funções de presidente da Comissão Europeia. Mas ninguém poderá honestamente dizer que ele foi explicita e conscientemente escolhido pelos cidadãos da União Europeia.

E este facto leva-nos ao verdadeiro estado da União Europeia, dominado pelo ceticismo e pela descrença, que dificilmente acreditará que um político do passado como Juncker possa abrir as vias para o futuro de que a União Europeia precisa, e que passam pelo reforço da sua legitimidade política, pela audácia face a uma globalização que põe em causa todo o statu quo europeu e pelo aprofundamento cultural e civilizacional da identidade europeia e do seu riquíssimo potencial.

São coisas sabidas. O estranho é que na Europa, no País, no PS, se viva como se esse saber de pouco servisse, como se se tratasse de uma lucidez de náufragos quando, na verdade, precisávamos de uma lucidez de visionários.

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