Nos
confins do Curdistão, uma cidade onde vivem “milhares de americanos”. Que os
levou até lá? Qual o verdadeiro motivo da nova campanha militar de Obama?
Steve
Coll, no New Yorker - Outras Palavras - Tradução: Vila Vudu
Defender
Erbil: essa foi a principal causa que levou o presidente Obama de volta à
guerra no Iraque semana passada, dois anos e meio depois de cumprir promessa de
campanha e retirar de lá os últimos soldados.
Depois
de Mazar-i-Sharif, Nasiriyah, Kandahar, Mosul, Benghazi, e incontáveis outras
pontos de intervenção militar dos EUA – cidades cujos nomes derrotariam todos
os candidatos de programas de “adivinhe onde fica” antes de 2001 – chegamos
agora a Erbil. Pode-se bem perdoar o isolacionista: “Chegamos… onde?!”
Erbil
tem longa história, mas, em termos de política econômica, entende-se melhor a
cidade hoje como uma espécie de “Deadwood” curda, como no seriado de David
Milch para a HBO, sobre uma cidade da corrida do ouro, cujo anti-herói, Al
Swearengen, convence um governo local a inventar por ali um verniz de governo e
normalidade, porque interessa aos negócios dele.
Erbil
é cidade da corrida do petróleo, onde os poderes locais manobram similarmente
seus ambíguos poderes para garantir ganhos financeiros – deles mesmos e de
qualquer pioneiro selvagem esperto o bastante para conseguir investir dinheiro
sem ser imediatamente roubado.
Erbil
é a capital do Governo Regional Curdo & Petróleo, no norte do Iraque. Ali
os EUA construíram alianças políticas e armaram milícias peshmerga curdas muito
antes de o governo Bush invadir o Iraque em 2003. Desde 2003, tem sido o local
mais estável de um país instável. Mas semana passada, guerrilheiros muito bem
armados, leais ao Estado Islâmico no Iraque e Levante, ISIL, ameaçaram os
arredores de Erbil, o que forçou a espetaculosa ação de Obama. (O presidente
também ordenou operações aéreas para entregar ajuda humanitária a dezenas de
milhares de yazidis e outras minorias não muçulmanas cercadas no
remoto Monte Sinjar. Um Curdistão seguro garantiria santuário para esses
sobreviventes.)
“A
região curda é funcional do modo como gostaríamos de ver” – Obama explicou em
fascinante entrevista que deu a Thomas Friedman, publicada na 6a-feira. “É
tolerante com outras seitas e outras religiões, como gostaríamos de ver em
outros pontos. Por isso achamos importante assegurar que esse espaço esteja protegido.”
Dito assim, até parece verdade, e até certo ponto é convincente.
O
Curdistão é, sim, um dos já raros aliados confiáveis dos EUA no Oriente Médio,
nesses tempos. A economia conheceu um boom em anos recentes, atraindo
investidores de todo o mundo, o que fez erguer-se ali um fulgurante novo
aeroporto internacional com as mais modernas e também fulgurantes facilidades e
serviços. Claro, comparado à, digamos, Jordânia ou Emirados Árabes Unidos, o
Curdistão tem um déficit terrível, na condição de aliado dos EUA: o Curdistão
não é estado. Nem tem nada a ver com fabricar a unidade nacional do Iraque, que
continua a ser o principal projeto do governo Obama no Iraque. Vistas as coisas
por esse ângulo, a explicação que Obama ofereceu para seu casus belli pareceu
um pouco incompleta.
Conselheiros
de Obama explicaram aos jornalistas que Erbil abriga um consulado dos EUA e que
“milhares” de norte-americanos vivem lá. A cidade tem de ser defendida, dizem
eles, contra o risco de o ISIL passar por lá, destruir tudo e ameaçar vidas de
norte-americanos. Tudo muito bem, mas… O que fazem lá, em Erbil, os tais
milhares de norte-americanos? Em busca de ar puro é que não estão.
ExxonMobil e
Chevron estão entre as muitas empresas de petróleo e gás com contratos grandes
e pequenos para perfurar no Curdistão, contratos cujos números compensam as
empresas pelo risco político sempre alto. (Chevron disse, semana passada, que
estava retirando alguns expatriados do Curdistão; ExxonMobil não quis
comentar.) Com essas gigantes do petróleo chegaram, como sempre os de sempre:
empresas de serviço nos campos de petróleo, contadores, empresas de construção,
de transporte e, no fundo do poço da cadeia econômica, diversos empreendedores
cavando espaço.
Percorrer
com os olhos a lista telefônica da Câmara de Comércio de Erbil é uma
experiência poética, só dos nomes dos empreendimentos: Cozinha dos Sonhos,
Sonho Vivo, Ouro Puro, Gala Eventos, Emoções Eventos e o endereço onde eu
pensaria em fazer minha última refeição, se colhido no torvelinho de um
massacre do ISIL, “Famous Cheeses Teak.”
Nada
tem a ver com petróleo. Depois que você tiver escrito essa frase 500 vezes na
lousa, até aprender, assista ao documentário “Why We Did It” [Porque nós
fizemos aquilo] de Rachel Maddow, para conhecer visão altamente sofisticada,
embora agudamente jornalística, e entender de uma vez por todas que a economia
mundial do petróleo sempre lá esteve, desde o início, como parceira silenciosa
do fiasco dos EUA no Iraque.
Claro
que é dever do presidente Obama defender vidas e interesses dos EUA, em Erbil e
onde for, com petróleo ou sem. Mas o caso é que, em vez de ordenar a imediata
evacuação dos cidadãos, ele ordenou campanha de ataques aéreos que durarão
meses, para defender o status quo do Curdistão, em campo – presumivelmente,
seria essencial para um Iraque unificado capaz de isolar o ISIL. Mas o status
quo no Curdistão inclui produção de petróleo por empresas internacionais, como
seria honesto declarar. OK. A defesa do Curdistão que Obama ordenou deve
funcionar, se a peshmerga curda puder ser novamente recolhida, reunida e
fortalecida em campo, depois de uma alarmante retirada, semana passada.
Mas
há buracos na lógica de Obama sobre Erbil. O presidente disse claramente,
semana passada, que ainda acredita que um governo duradouro de unidade nacional
– que inclua líderes sérios da maioria xiita do Iraque, curdos e sunitas
que se opõem ao ISIL – possa ser formado em Bagdá, ainda que exija mais
semanas, além dos três meses de dificuldades que já se passaram desde a mais recente
eleição parlamentar no país.
O
projeto de um governo unificado em Bagdá, forte o bastante para derrotar
o ISIL com um exército nacionalista e na sequência extrair dele os
seguidores dos sunitas parece cada vez mais ideia delirante; era difícil, na entrevista
a Friedman, entender de que lado Obama realmente está.
Por
que tem sido tão difícil construir qualquer tipo de unidade política em Bagdá e
há tanto tempo? Há muitas importantes razões – a desastrosa decisão dos EUA de
desmobilizar o Exército Iraquiano, em 2003, e de apoiar a furiosa
des-Baathificação, que afastou os sunitas, distanciamento que ainda não foi
corrigido; ódio sectário crescente entre xiitas e sunitas; o envolvimento de
sunitas com a filosofia da Al-Qaeda e com o dinheiro e ‘soft power’ do Golfo
Persa; a interferência do Irã; as dificuldades das fronteiras pós-coloniais do
Iraque; o mau governo em Bagdá, particularmente sob o primeiro-ministro Nouri
al-Maliki. Mas outra razão, e de primeira ordem, é que os EUA cobiçam o
petróleo dos curdos.
Durante
o governo Bush, aventuras como a da empresa Hunt Oil, que tem sede em Dallas,
pavimentaram o caminho para a ExxonMobil, que acertou um negócio em Erbil em
2011. Bush e seus conselheiros não conseguiram forçar empresas norte-americanas
de petróleo, como a Hunt, a sair do Curdistão nem a sancionar
investidores não norte-americanos. Deixaram os gatos selvagens agir como bem
entendessem, sempre insistindo que os políticos de Erbil negociassem uma
partilha de lucros do petróleo e a unidade política, com Bagdá. O governo de
Erbil nunca entendeu exatamente a necessidade de um compromisso final com
políticos xiitas de Bagdá – e com os curdos ficando cada vez mais ricos, nos
seus próprios termos, eles passaram a atrair empresas de petróleo mais confiáveis
e mais ricas; assim, cada vez mais se foi criando a impressão de que aquele
governo governava um estado de-facto. O governo Obama nada fez para reverter
essa tendência.
Assim
também, em Erbil, nas semanas vindouras, pilotos norte-americanos defenderão
por ar a capital cuja crescente independência e crescente riqueza já afrouxaram
os laços com o Iraque, ao mesmo tempo em que, em Bagdá, diplomatas dos EUA
ainda insistem quixotescamente no esforço para alinhavar juntos todos os
pedaços do mesmo país, para enfrentar o ISIL.
Obama
a defender Erbil defende, de fato, um estado-petróleo curdo não declarado.
Sobre as fontes de sedução geopolítica desse estado – como fornecedor não
russo, de longo prazo, de gás para a Europa, por exemplo –, melhor não falar,
se houver crianças ou gente civilizada na sala, como Al Swearengen, do seriado
Deadwood, entenderia. A vida – como disse Swearengen num episódio – é quase
sempre feita de “um serviço sujo depois do outro”. É como a política dos EUA no
Iraque.
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