Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
O
Governo tentou, desde o primeiro dia de governação, substituir a Lei
Fundamental e os valores que ela garante, pelo "memorando de
entendimento" com a "troika" e os interesses dos credores da
dívida soberana. Porque esse intento perverso foi sendo contrariado ao longo
destes três anos pelo Tribunal Constitucional, o Governo, num derradeiro braço
de ferro, tenta agora transferir para os juízes a responsabilidade por qualquer
perturbação na aprovação do último orçamento da legislatura, articulando com o
Presidente da República a submissão a controlo preventivo de
constitucionalidade, dos projetos legislativos que, expeditamente retocados,
lhe permitam prosseguir as habituais políticas de corte nos rendimentos dos
funcionários públicos e dos reformados.
Mas
qualquer que seja o sentido em que o tribunal se pronuncie, o Governo já
alcançou o seu objetivo e o "discurso do Pontal" só aguarda os
acertos finais. À "hora de fecho" desta crónica ainda se desconhece o
teor do acórdão e dispenso-me de prognósticos quanto ao seu sentido. É claro,
porém, que não cabe nas atribuições do Tribunal o escrutínio direto das
políticas sufragadas pela maioria parlamentar. Essa é a missão da luta
política, da oposição democrática, dos cidadãos eleitores. Aos juízes, cabe
apenas averiguar da conformidade constitucional das normas jurídicas contidas
em diplomas legislativos aprovados pelos órgãos de soberania competentes, ainda
que não tenham entrado em vigor, como no caso presente. E aqui reside o alcance
da mudança tática a que aludíamos acima: suspendeu-se a política, a
responsabilidade e o dever de prestação de contas aos eleitores, porque tudo
ficou na dependência exclusiva do poder dos juízes que, segundo as palavras de
Montesquieu, não são mais do que "um poder (...) invisível e nulo".
Um poder politicamente neutralizado para que possa cumprir a sua função
soberana exclusiva: decidir os litígios que não tenham solução em nenhuma outra
instância. Por uma virtuosa pirueta, a "austeridade" deixa de ser uma
opção política para se consubstanciar numa sentença judicial... qualquer que
ela seja.
A"judicialização
da política" perverte o sentido e os procedimentos próprios das
democracias constitucionais. A banalização dos princípios e dos valores gera um
efeito de contágio flagrante numa deliberação recente do Conselho Superior do
Ministério Público, órgão para que fui eleito pela Assembleia da República, nos
tempos do saudoso Procurador-Geral Cunha Rodrigues. O afloramento de interesses
corporativos e conveniências particulares é inerente ao funcionamento de todas
as instituições, públicas ou privadas, mas nunca ali se consentiu que atingisse
as proporções escandalosas patentes no recente veto da designação de António
Cluny para representar Portugal no "Eurojust" - European Union"s
Judicial Cooperation Unit - o órgão de cooperação judicial da União Europeia
que visa a articulação de esforços e a partilha de informação no combate à
criminalidade organizada, nomeadamente, na investigação dos crimes financeiros,
assunto que se presume da maior relevância para aquele Conselho Superior.
Porém, ambições mesquinhas e pretensões inconfessáveis lograram sobrepor-se à
sua missão constitucional de "defender a legalidade democrática" -
justificação da autonomia reconhecida a esta magistratura - tendo o Conselho
deliberado "vetar" por voto secreto e sem indicação de qualquer
impedimento legal - a que todavia estava obrigado - a designação de António
Cluny para aquelas funções. O 25 de Abril chegou tarde aos tribunais. Do lado
das magistraturas, foi o Ministério Público o grande impulsionador das mudanças
exigidas pela democratização da justiça portuguesa, o que lhe valeu merecido
prestígio e notória influência. António Cluny foi um dos magistrados que mais
se destacaram nesse processo árduo e complexo de reforma e modernização das
instituições judiciais. Espera-se do Conselho que prontamente corrija o seu
erro e assuma também para si próprio a "defesa da legalidade" que a
Constituição da República especificamente lhe comete.
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