quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Macau: “O Governo tem receio em tornar a violência doméstica um crime público” - Juliana Devoy



FILIPA ARAÚJO – Hoje Macau, em Destaque, Entrevista

Juliana Devoy, que dirige o Centro do Bom Pastor, defende que é preciso que o Governo faça uma lei contra a violência doméstica com boas definições, sobre o que é considerado violência grave ou não. Acérrima defensora da transformação deste crime em crime público, Devoy não se mostra optimista e diz mesmo que o receio do Governo é o principal obstáculo a que isso aconteça

A irmã Juliana tem sido um agente activo na causa contra a violência doméstica, tentando que, de uma vez por todas, se torne crime público. O que a motiva? 

Sim, confesso que sim, é algo por que tenho trabalhado muito. É um assunto muito delicado e muito importante para qualquer sociedade. É difícil perceber esta necessidade de dividir em crime semi-público ou público. É violência, deveria ser crime em qualquer parte do mundo.

Esta causa tem vindo agora a mover mais pessoas…

É verdade. E digo-lhe que os jornais portugueses foram os maiores impulsionadores desta causa. Foram eles que começaram a falar sobre este assunto, sobre esta falha na lei. Não sei ler português, mas muita gente sabe. E foram essas pessoas que, ao ler os jornais, começaram a questionar-se. Com o passar do tempo alguns académicos começaram a entrar em contacto com as organizações, inclusive com este Centro [do Bom Pastor], a fazer perguntas, a marcar encontros. Alunos e professores começaram a interessar-se e a ouvir muitos casos reais. Um dia organizaram-se e lançaram uma campanha no Facebook para recolher assinaturas para uma revisão da lei. Uns dias depois, os alunos foram todos para a rua recolher mais assinaturas, ultrapassámos as seis mil. O Governo começou a perceber e a mexer-se também, por causa disso.

Acredita que haja um interesse genuíno por parte do Executivo? 

Acredito que o Governo está de boa fé para que haja um consenso entre o seu interesse e o das organizações e claro, as vítimas. Durante o mês de Junho e Agosto estive nos Estados Unidos a visitar familiares e, nessa altura, o Governo reuniu-se com várias organizações de Macau para perceber todos os pontos de vista. Fiquei muito feliz quando no meu regresso tive a oportunidade de me encontrar com os representantes do Executivo para conversarmos e apresentar o meu ponto de vista.

A irmã participou também na última análise da ONU a Macau sobre a Convenção Internacional para os Direitos Humanos, Económicos e Sociais, onde conseguiu falar com o Comité. 

Sim. Nós temos três irmãs, em Nova Iorque, Genebra e em Viena, e foi essa ponte com a irmã colocada em Genebra que fez com que tudo acontecesse. Um dia, a conversarmos, achámos que seria uma excelente ideia conseguirmos ter direito a dois minutos para expor este assunto. Confesso que tivemos que falar com muita gente, visitar muitos escritórios, mas conseguimos. Quando percebi que tínhamos conseguido e que iria falar sobre o assunto, em nome da Aliança Anti-Violência Doméstica de Macau, fiquei muito feliz. Preparei um discurso e quando o li à irmã ela só dizia “corta, precisas de cortar isso”, porque sem perceber como funcionava o Comité preparei uma intervenção de cinco minutos, mas só tinha dois. Ao aconselhar-me que mais vale falar pouco em vez de o Comité me cortar a palavra, foquei-me apenas no essencial: é preciso que a violência doméstica seja considerada crime público.

Acredita que isso está prestes a acontecer?

Apesar de achar que há boa fé por parte do Governo, tenho muitas dúvidas quanto a este assunto. Pelo o que tenho percebido das últimas reuniões, o Executivo pretende que só a violência com armas, o abuso sexual de menores e a repetição de episódios violentos sejam considerados crimes públicos. Sinto que o Governo tem algum receio em tornar qualquer tipo de violência doméstica em crime público…

Seria como abrir a caixa da Pandora?

Exactamente! O pensamento é este: se qualquer violência doméstica é crime, então uma palmada da mãe ao filho é crime, um arrufo de irmãos é crime, um empurrão é crime. Percebe? Claro que o Governo teme que isso tome proporções incontroláveis. Mas é preciso entender que as pessoas têm bom senso. Imagine, vou a passar na rua e vejo uma mãe a dar uma palmada no filho, claro que não vou a correr fazer queixa à polícia. Mas vou ter com a mãe, se achar excessivo, e repreendo-a, claro.

Como se poderia contornar essa questão?

É preciso, e é isso que proponho ao Governo, criar uma lei com boas definições. Ou seja, ponto por ponto, pensando em todas as hipóteses, em todos os pormenores. Quem é que define o que é grave ou menos grave na violência doméstica? É a polícia? Como é que eles vão fazer quando uma vítima chegar à polícia e disser que sofre maus tratos? Eles vão perguntar quantas vezes é que já aconteceu e dependendo do número vão encaminhar o caso? Então, e se for o primeiro episódio? Mandam-na para casa e dizem: volte quando se repetir? É do conhecimento mundial que a violência doméstica e o comportamento do agressor funcionam como um ciclo. Salvo raras excepções, nunca um caso só aconteceu uma vez. E depois quem pensa nas crianças que assistem a este tipo de violência? Elas mesmo são vítimas só por estarem a olhar para o que está a acontecer. E como se pode pedir a uma vítima que acuse o seu marido, irmão, irmã, tornando-o criminoso? Repare: só é crime se existir queixa e a única pessoa, segundo a lei actual, que pode fazer queixa é a vítima, ou seja, só ela é que pode trazer [a público] o conceito de crime. Está errado, deve ser o Governo a dizer “isto é crime”.

E nestes casos há sempre muita vergonha e muito medo…

Absolutamente. Muitas mulheres, falo principalmente em mulheres porque só trabalhamos com mulheres, têm medo e muita vergonha dos seus casos. É preciso também pensar na cultura em que estamos envolvidos. Quero com isto dizer que, em Macau, vive-se muito o espírito do “não me meto na vida dos outros” e, por isso, pedir a um vizinho que já assistiu a vários momentos de violência que vá testemunhar a tribunal é muito complicado. Só em casos muito graves. E quais são esses casos? A morte de uma das vítimas como aconteceu em Hong Kong? É preciso pensar muito bem nesta lei e nas suas definições de grave e não grave.

Texto parcial. A entrevista continua no original.


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