JOÃO MIGUEL TAVARES – Público,
opinião
O chuto para a
Procuradoria é apenas um expediente espertalhão com o objectivo de adiar a
admissão do óbvio: o primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.
Não há qualquer
vontade de apurar “a verdade” ou desejo de esclarecer a pátria no pedido do
primeiro-ministro para a Procuradoria-Geral da República investigar o caso
Tecnoforma. O Ministério Público tem mais que fazer e Passos Coelho sabe muito
bem o que fez. Pode ter sido há 15, 20 ou 30 anos: ninguém se esquece de um
ordenado que duplica o rendimento mensal. Simplesmente, Passos não quer, nem
pode, admiti-lo – para ser coerente com o moralismo que apregoa, teria de se
demitir no minuto seguinte. Donde, o chuto para a Procuradoria é apenas um
expediente espertalhão com o objectivo de adiar a admissão do óbvio: o
primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.
Isto é
simultaneamente ridículo e sintomático. Ridículo, porque os valores que estão
em causa não justificariam a queda de um primeiro-ministro. Sintomático, porque
o problema da Tecnoforma está longe de ser o dinheiro que pagava a Passos
Coelho – a empresa é um retrato perfeito de como se desviam fundos europeus
para actividades que podem até nem ser ilegais, mas que são inconcebíveis e
imorais. Convém recordar aos mais esquecidos que a Tecnoforma era essa
extraordinária empresa, impulsionada pelo romântico par Passos-Miguel Relvas,
que se propunha, em troca de 1,2 milhões de euros, dar formação a 1063 pobres
almas com um objectivo que parece saído do argumento de uma série cómica
britânica: ensinar os mais de mil formandos a operar em nove aeródromos da
Região Centro, dos quais só três estavam activos e empregavam, no total, cerca
de 10 trabalhadores.
Foi assim que,
durante anos e anos, foram estoiradas dezenas de milhões de euros de fundos
comunitários que deveriam contribuir para o desenvolvimento do país. E claro:
quem frequentava os corredores da Assembleia da República era um veículo
privilegiado para canalizar os fundos para terrenos favoráveis. O Manuel sabia
de um concurso para a formação de medidores de perímetros de beringelas e dizia
ao Joaquim; o Joaquim sabia de um concurso para a formação de analistas em
brilho de superfícies inox em restaurantes e dizia ao Asdrúbal; o Asdrúbal
sabia de um concurso para formar os formadores disto tudo e dizia ao Manuel. A
única variável neste processo era mesmo a dimensão da lata e a vocação dos
senhores deputados e secretários de Estado para gerir negócios. Havia alguns,
como Miguel Relvas, que tinham muita lata e muita vocação. Havia outros, como
Passos Coelho, que provavelmente seriam um pouco mais modestos – mas que, ainda
assim, aproveitavam uma migalha aqui e outra acolá, porque a vida é longa e o
ordenado de deputado curto.
Só que, ao
contrário de Relvas, que tem um sorriso do tamanho da sua lista telefónica e se
assume como “facilitador de negócios”, Pedro Passos Coelho sempre se apoiou
numa imagem de extrema modéstia e parcimónia. Ele é o homem de Massamá. Ele é o
homem que passa férias em
Manta Rota. Ele é o homem que pôs os ministros a viajar em turística. E esse
homem, claro está, não pode conviver com uma acusação de cinco mil euros a
caírem-lhe no bolso todos os meses sem que ele se recorde disso, ao mesmo tempo
que invoca o estatuto de deputado em exclusividade para sacar 60 mil euros de
subsídio de reintegração. É possível que Passos Coelho apenas tenha feito
aquilo que todos fizeram durante os festivos anos 90. Só que aquilo que ele fez
em 1999 não é aceitável em 2014. E ainda bem. A sonsice vai aguentá-lo – mas a
sua reputação de governante impoluto morreu.
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Passos Coelho foi
vice-presidente do grupo parlamentar do PSD na VII legislatura, razão pela qual
recebia um acréscimo de 15% sobre o seu vencimento. Nessa altura, o abono
devido aos deputados em exclusividade era de 10%. Essa poderá ser a explicação
para só ter declarado a exclusividade no fim do mandato. (leia mais)
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