terça-feira, 14 de outubro de 2014

Portugal: OS ADVOGADOS DO REGIME



Luís Rosa – jornal i, editorial

Ter trabalhado numa sociedade que defendeu os interesses do BES poderá influenciar o julgamento de Fernando Negrão sobre o caso

Em 2008 tive uma das vitórias mais justas que qualquer jornalista pode ter em toda a sua carreira. Dois anos depois de todos os ministros de José Sócrates, com excepção do ministro da Agricultura, terem recusado o acesso legítimo à documentação relativa à contratação de escritórios de advogados por parte dos membros do governo e da administração central, o Supremo Tribunal Administrativo obrigou o governo a respeitar a lei e a entregar todos os contratos, facturas, etc. Os papéis revelavam que os governos Durão Barroso, Santana Lopes e Sócrates tinham contratado advogados entre 2003 e 2006 sem qualquer concurso público e por um valor de cerca de 15,6 milhões de euros.

Um dos casos mais interessantes relacionava-se com o escritório Rui Pena & Arnaut. Formado por dois ex-ministros, o escritório é especializado, entre outras áreas, em energia. Além de, na altura, ter a Galp, a EDP e a Martifer como clientes, Pena tinha produzido parte importante da legislação estruturante do mercado do gás natural e ainda assessorava o governo Sócrates no lançamento de concursos de eólicas a que os seus clientes Galp (que se aliou à Martifer), EDP concorreram. Obviamente, para Rui Pena não havia qualquer espécie de incompatibilidade e o justiceiro Marinho e Pinto, que então liderava a Ordem dos Advogados, ficou calado como um rato.

Salvaguardando as respectivas diferenças, vem este pequeno exercício de memória a propósito da situação de Fernando Negrão que relatamos nas páginas ao lado. O presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES fez aquilo que muitos deputados fazem: foi consultor de um escritório de advogados ao mesmo tempo que tinha uma posição no órgão legislativo da República. Dá-se o caso de o escritório em causa, Albuquerque & Associados, um dos mais antigos de Lisboa, ser especialista em banca e ter o BES como um dos seus principais clientes. Negrão chegou a ser apresentado como o associado que iria liderar o departamento de penal económico – projecto que o também juiz alega que não se concretizou.

Mandava o bom senso que Negrão não aceitasse o convite para presidir a uma comissão de inquérito relacionada com um cliente do seu ex-escritório, mas o deputado do PSD, tal como Rui Pena, não vê qualquer incompatibilidade. Tal como o ex-ministro da Defesa de António Guterres não via qualquer problema em ser legislador, consultor do Estado e advogado de privados na mesma área de negócio, também Negrão não percebe que existe uma incompatibilidade óbvia. Os advogados e juristas do regime são assim. Portam-se como reis em terras de cegos.

Fernando Negrão até pode nem ter representado o BES, mas o facto de ter trabalhado numa sociedade que defendeu os interesses do banco de Ricardo Salgado acaba por deixar no ar a suspeita de que o seu julgamento futuro poderá ser influenciado por esse facto. Só oseu discurso de tomada de posse como presidente da comissão é suficiente para levantar essa suspeita. Afirmar que a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES não “produzirá nenhuma acusação nem nenhuma sentença” é subvalorizar os seus poderes. Além de apurar factos, os deputados podem e devem utilizar os seus poderes parajudiciais para obter documentação e testemunhos que lhes permitam tirar uma conclusão clara sobre os factos em cima da mesa. É claro que os deputados não têm o mesmo papel que os juízes. Não havia necessidade de enfatizar o óbvio.

A Comissão Parlamentar de Inquérito é demasiado importante para começar com o pé esquerdo. Trata-se do maior escândalo financeiro da democracia, e tem de ser investigado pela Assembleia da República com um único objectivo: descobrir toda a verdade.

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