Luís
Rosa – jornal i, editorial
Ter
trabalhado numa sociedade que defendeu os interesses do BES poderá influenciar
o julgamento de Fernando Negrão sobre o caso
Em
2008 tive uma das vitórias mais justas que qualquer jornalista pode ter em toda
a sua carreira. Dois anos depois de todos os ministros de José Sócrates, com
excepção do ministro da Agricultura, terem recusado o acesso legítimo à
documentação relativa à contratação de escritórios de advogados por parte dos
membros do governo e da administração central, o Supremo Tribunal Administrativo
obrigou o governo a respeitar a lei e a entregar todos os contratos, facturas,
etc. Os papéis revelavam que os governos Durão Barroso, Santana Lopes e
Sócrates tinham contratado advogados entre 2003 e 2006 sem qualquer concurso
público e por um valor de cerca de 15,6 milhões de euros.
Um
dos casos mais interessantes relacionava-se com o escritório Rui Pena &
Arnaut. Formado por dois ex-ministros, o escritório é especializado, entre
outras áreas, em
energia. Além de, na altura, ter a Galp, a EDP e a Martifer
como clientes, Pena tinha produzido parte importante da legislação estruturante
do mercado do gás natural e ainda assessorava o governo Sócrates no lançamento
de concursos de eólicas a que os seus clientes Galp (que se aliou à Martifer),
EDP concorreram. Obviamente, para Rui Pena não havia qualquer espécie de
incompatibilidade e o justiceiro Marinho e Pinto, que então liderava a Ordem
dos Advogados, ficou calado como um rato.
Salvaguardando
as respectivas diferenças, vem este pequeno exercício de memória a propósito da
situação de Fernando Negrão que relatamos nas páginas ao lado. O presidente da
Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES fez aquilo que muitos deputados fazem:
foi consultor de um escritório de advogados ao mesmo tempo que tinha uma posição
no órgão legislativo da República. Dá-se o caso de o escritório em causa,
Albuquerque & Associados, um dos mais antigos de Lisboa, ser especialista
em banca e ter o BES como um dos seus principais clientes. Negrão chegou a ser
apresentado como o associado que iria liderar o departamento de penal económico
– projecto que o também juiz alega que não se concretizou.
Mandava
o bom senso que Negrão não aceitasse o convite para presidir a uma comissão de
inquérito relacionada com um cliente do seu ex-escritório, mas o deputado do
PSD, tal como Rui Pena, não vê qualquer incompatibilidade. Tal como o
ex-ministro da Defesa de António Guterres não via qualquer problema em ser
legislador, consultor do Estado e advogado de privados na mesma área de
negócio, também Negrão não percebe que existe uma incompatibilidade óbvia. Os
advogados e juristas do regime são assim. Portam-se como reis em terras de
cegos.
Fernando
Negrão até pode nem ter representado o BES, mas o facto de ter trabalhado numa
sociedade que defendeu os interesses do banco de Ricardo Salgado acaba por
deixar no ar a suspeita de que o seu julgamento futuro poderá ser influenciado
por esse facto. Só oseu discurso de tomada de posse como presidente da comissão
é suficiente para levantar essa suspeita. Afirmar que a Comissão Parlamentar de
Inquérito ao BES não “produzirá nenhuma acusação nem nenhuma sentença” é
subvalorizar os seus poderes. Além de apurar factos, os deputados podem e devem
utilizar os seus poderes parajudiciais para obter documentação e testemunhos
que lhes permitam tirar uma conclusão clara sobre os factos em cima da mesa. É
claro que os deputados não têm o mesmo papel que os juízes. Não havia
necessidade de enfatizar o óbvio.
A
Comissão Parlamentar de Inquérito é demasiado importante para começar com o pé
esquerdo. Trata-se do maior escândalo financeiro da democracia, e tem de ser
investigado pela Assembleia da República com um único objectivo: descobrir toda
a verdade.
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