Rui
Peralta, Luanda
I
- São muitos - em África e no resto do mundo - os que pensam que nos seus
países (ou nos países onde residem) nunca acontecerá nada que se aproxime,
sequer, do pesadelo ocorrido no Zimbabwe (não, Mugabe não é o pesadelo,
mas apenas um dos seus grotescos personagens e não, não estou a referir-me á
expulsão dos zimbabwenos brancos, ex-rodesianos, que esses fazem parte da
tragédia). O pesadelo a que me refiro é o seguinte: em 1997, o Zimbabwe
registava uma taxa de inflação de 20%, em 1997, para uma surrealista (ao nível
de um quadro de Dali, ou uma das joias literárias de André Breton) taxa
de 89,700,000,000,000,000,000,000% (é provável que faltem três zeros) em
2008.
A
causa desta "surrealidade" é inteiramente politica e tentar descortinar
nesta aberração qualquer tipo de fenómeno económico, financeiro ou social é
apenas uma tentativa de transformar um "cadáver exquis" num conto
tradicional africano. O governo zimbabweno viveu num limbo que aos poucos
tornou-se num purgatório e terminou num inferno (Dante teria demonstrado o
maior interesse pelo "modelo zimbabweno de proletarização").
Desperdício diverso, gastos militares excessivos, pseudorreforma agrária,
populismo, racismo, etnicismo, misturados com discursos ideológicos formados por
uma estranha poção mágica feita de marxismo-leninismo tardio, com nacionalismo,
tudo revestido com uma camada envernizada que aparentava uma democracia-liberal
(para anglo-saxónico dormir) e uns esgares progressistas (que excluiu os grupos
homossexuais da sociedade - á velha maneira de Ian Smith e da Frente Rodesiana
- campanha que levou á demissão do presidente Banana). Esta mistura explosiva
gerou o inevitável desastre. E tudo isto num período em que as dinâmicas
externas não constituíam um factor desfavorável para o país, que até gozava de
alguma complacência por parte do U. K. (ex-colonizador e eterno candidato a
neocolonizador) e beneficiava de fortes aliados na Commonwealth. Não sofreu,
também neste período, com as reformas estruturais. Ou seja o problema tem
origem na elite politica e administrativa, nas suas guerras internas e nos seus
suspeitos e cinzentos objectivos.
Quando
a derrapagem já não podia ser camuflada o governo de Mugabe imprime moeda e ao
fazê-lo alimentou a inflação, iniciando um vertiginoso processo de
empobrecimento e uma via rápida para a ruina económica. Milhões de cidadãos
zimbabwenos, das áreas urbanas (que sentiram o maior impacto) e das áreas
rurais foram empurrados para a pobreza, o desemprego, a inércia e uma vida sem
perspectivas. Num período de 11 anos a economia entrou num processo
descontrolado de empobrecimento, causado pela galopante escalada inflacionária,
que por sua vez foi gerada pelas políticas irrealistas da clique no poder, mais
preocupada com os grupos concorrentes e com o incremento do seu domínio sobre a
sociedade do que com o "crescimento do bolo". O resultado desta
idiotice conduziu a que 1/3 dos zimbabwenos emigraram (muitos foram forçados a
um misto de emigração económica e exilio politico), enviando remessas para os
seus familiares, mensalmente.
A
resposta do governo foi a habitual e ineficaz tabela de preços, controlo que
era prontamente ignorado. Neste ambiente hiperinflacionário as lojas
fechavam as portas, os assaltos e os saques aos estabelecimentos comerciais
eram uma constante e os motins nas ruas eram frequentes e rapidamente
reprimidos (se a camarilha fascistoide de Mugabe fosse tão competente a lidar
com a derrapagem económica como era a lidar com o bastão...). O mercado
alternativo, em contrapartida, floresceu e implantou-se á escala nacional em
todos os níveis da actividade comercial: alimentos e bebidas, medicamentos,
moeda, etc..
Uma
visita a Harare, nesses tempos distorcidos (não que actualmente a realidade
zimbabwena não seja distorcida, mas é mais aparentada a cenário neorrealista do
que surrealista) pela hiperinflacção, tornava óbvio ao visitante (a população
vivia no óbvio), que alguns segmentos da sociedade viviam de forma abertamente
opulenta, não se preocupando a esconder essa opulência, passeando-a de forma
arrogante pela cidade. A elite da ZANU-PF geria o mercado informal, fornecendo,
distribuindo e vendendo divisas, combustível, farinha, açúcar, manteiga, leite
e outros bens de primeira necessidade.
O
comércio paralisou. As filas diárias para o pão, as lojas sem produtos e as que
tinham algo para vender estavam sem clientes, os preços a serem alterados duas,
três, quatro vezes por hora, tornaram-se rotinas que passaram a caracterizar a
vida dos zimbabwenos. As pessoas deixaram de pensar nas percentagens da
inflação, limitaram-se a senti-la para sobreviverem. Os valores reais
monetários, os preços, os salários, a circulação monetária passaram a ser
realidades disformes e dois mais dois podiam ser quatro, como 40 ou 400, que
dava no mesmo. Nada é mais alienante do que a hiperinflação e é relativamente
fácil cair nessa situação, mesmo nas economias como a norte-americana, a
europeia, a japonesa ou qualquer outra, até dos BRICS. Basta as máquinas de
impressão e cunhagem começarem a funcionar. Este não é um fenómeno africano ou
sul-americano (se atendermos ao passado recente do Brasil e da Argentina). A
sua origem é politica e não económica, ou seja, é um erro (ou um conjunto de
pressupostos errados) de gestão, cujas consequências se refletem com grande
impacto negativo na economia e nas finanças.
Vejamos,
a título de exemplo, o débito orçamental dos USA. Este débito atingiu a
magnifica quantia de $6,5 triliões de USD, iniciando a sua louca cavalgada em
2008. Isto representa uma expansão em cerca de 70% da circulação
monetária, nos últimos 5 anos, ou seja, as impressoras estão a funcionar em
pleno e os norte-americanos não se encontram muito longe da situação vivida
pelos zimbabwenos (país que a maioria dos norte-americanos desconhece, ou já
ouviu falar, apenas).
O
mau exemplo zimbaweno (é mais correcto dizer-se "os maus exemplos",
pois a hiperinflação é um dos muitos problemas do "modelo zimbabweno de
regressão". Por todo o lado assiste-se á explosão das mais diversas formas
de racismo, xenofobia e discriminação de todo o tipo, um regresso ao fascismo -
ou melhor, a regeneração do fascismo através do fascismo do seculo XXI -
situação perante a qual Mugabe e a sua camarilha aparecem como aprendizes de
feiticeiro). Cada vez são mais os governos que, desesperados com a ineficácia
das respostas e com o avolumar de situações potencialmente geradoras de
conflitos de vária ordem e de grande intensidade e amplitude, que cruzam os
braços perante a falência das suas politicas económicas, lutando de forma
infrutífera contra os enormes débitos acumulados e não sabendo como resistir á
tentação de aumentar taxas e impostos. Em Março de 2013 os cidadãos
cipriotas que tinham nas suas contas bancárias mais de €100,000 viram o
seu dinheiro ser confiscado, para conter a derrapagem da banca do Chipre. A
U.E. tem uma directiva que obriga os Estados membros a seguirem o modelo
cipriota de salvação da banca. Banqueiros Europeus descansai! O modelo cipriota
resolve tudo! Os cidadãos mais abastados pagarão os vossos desaires e os mais
pobres serão cada vez mais, sempre dispostos a lavar as fachadas dos vossos
templos, por cada vez menos dinheiro!
O
modelo cipriota não resolve o problema dos Bancos Europeus ou norte-americanos
(USA e Canadá adoptaram directivas similares). Estes países têm agora as
baterias apontadas para os fundos de pensões privados (que podiam ser públicos
se fossem mutualizados ou cooperativizados), para "irrigar" os
fundos públicos (que não são públicos, mas sim, estatais) e que estão
"secos", completamente estagnados. Ora esta situação em nada difere
do que aconteceu no Zimbabwe, mas com terra, não com as contas bancárias ou os
fundos privados.
A
reforma agrária é um factor de desenvolvimento essencial. É o primeiro passo
para o desenvolvimento (a seguir ás alterações nas elites politicas), para a
modernização e foi também uma revindicação dos camponeses e das comunidades
rurais, para além de ser uma promessa (geralmente adiada para a eternidade).
Mas no Zimbabwe, com o aprofundar da derrapagem económica provocada pela
acumulação de erros de gestão, uma pseudorreforma agraria foi lançada na
estrutura económica, levando o país á penúria (algo de muito semelhante, mas
muito mais sangrento, aconteceu no Camboja, no regime de Pol Pot), empobrecendo
os camponeses (que, descapitalizados, não tinham meios para trabalhar),
adulterando a estrutura agrária tradicional (que recebeu um rude golpe e foi
forçada a emigrar para Harare, ou mesmo para a Africa do Sul), descapitalizou a
burguesia agrária (perdendo a oportunidade de definir áreas de capitalização da
agricultura, fundamentais para a exportação, desperdiçando capital e
conhecimento) e destruindo o mercado interno, essencial ao camponês e à
estrutura da agricultura familiar africana (no mercado interno estes deverão
ser os principais intervenientes e deverão ser projectados para os segmentos da
distribuição dos produtos - através de estruturas colectivas - evitando o
parasitismo do Estado e dos intermediários privados).
É
evidente que isto implicava a existência de uma direcção politica e não de um
bando armado. O resultado está a vista de todos (excepto aqueles a quem a
miopia politica, racial e cultural impede de ver, ou que padecem de um deficit
de inteligência e honestidade): com um só golpe a camarilha de Mugabe camuflou
os assaltos efectuados pelo seu bando de delinquentes aos cofres do Estado,
levou os camponeses á miséria, no meio dos aplausos das massas famintas de
promessas, livrou-se dos sindicatos (Mugabe, como todos os fascistas convictos,
vive aterrorizado com a existência de organizações de trabalhadores) dos seus
adversários políticos e com os seus concorrentes, os fazendeiros brancos (que o
racista Mugabe e a sua clique cleptomaníaca consideram uns párias,
não-africanos, por terem a pele branca). Hoje, por cima dos escombros da
regressão, da fome e da miséria, as multinacionais do agro-negócio apoderam-se
das terras que Mugabe assaltou para os camponeses, com o intuito de os
desapossar para oferecer as mesmas aos seus sócios maioritários brancos
estrangeiros. Chama-se a isto: "política da terra queimada".
Os
ares poluídos do colapso financeiro global pairam nos pulmões do sistema
financeiro internacional. Quanto tempo irá durar a tosse, ninguém sabe (talvez
os profetas da desgraça ou os conjuradores das catástrofes iminentes) mas que
vai ser necessário mudar de xarope, todos sabemos. O Zimbabwe demorou 11 anos
a atingir o colapso apos ter iniciado a agressiva impressão de
dinheiro. A Alemanha nazi demorou 9 anos a atingir este patamar de frenesim
hiper-produtivo de moeda e o mesmo período de incubação ocorreu na Republica de
Weimar.
Largos
milhares de zimbabwenos (alguns dados de ONG's do pais e sul-africanas referem
acima de um milhão) fugiram deste ambiente hiperinflacionário, atravessando o
Limpopo para a Africa do Sul. Aí muitos viram as suas vidas melhorarem e outros
foram vítimas dos preconceitos territorialistas das hordas de primatas da
extrema-direita sul-africana (das duas facções: a bóer, na fronteira - através
dos grupos armados que a patrulham - e nas cidades pelos grupos extremistas
bantos).
As
medidas a tomar para a resolução do quebra-cabeças hiperinflacionários (uma das
muitas obras-primas dos primos dos mestre-de-obras produzidos pelas politicas
keynesianas e neokeynesianas, estes últimos a tentarem corrigir os efeitos
predatórios dos neoliberais com as falinhas mansas do velho e caduco
conciliador) implicam uma profunda transformação - metamorfose seria o conceito
mais correcto - que implicaria varias fases a longo-prazo e que passariam
por diversos níveis de políticas (mas nunca de paliativos) como, a nível
fiscal, ausentar de taxação o capital aplicado nos sectores produtivos, novas
tecnologias, inserção destas no processo produtivo (adeus ao pleno emprego, ao
emprego como promessa eleitoral e ao culto do trabalho) e de investigação cientifico-tecnológica;
isentar os rendimentos de trabalho impostos aos trabalhadores; taxar a
propriedade e os investimentos não-produtivos, principalmente o sector
imobiliário, actividade bancária e seguradora não relacionada com investimentos produtivos e criadores de riqueza; globalização
da segurança social; eliminação dos bancos centrais e da emissão de moeda pelo
Estado, tendo os bancos a obrigatoriedade de emitir moeda; regresso ao padrão
ouro (no sistema mundial, podendo coexistirem padrões continentais ou
regionais, como m padrão prata na América do Sul); regresso dos mercados ao
tecido social.
È
o fim do mundo que conhecemos? Não... É o início do final do pesadelo em que
vivemos...
Continua
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