sexta-feira, 3 de outubro de 2014

ZIMBABWE, HIPERINFLAÇÃO E MODELOS SIMILARES CAMUFLADOS (1)



Rui Peralta, Luanda

I - São muitos - em África e no resto do mundo - os que pensam que nos seus países (ou nos países onde residem) nunca acontecerá nada que se aproxime, sequer, do pesadelo ocorrido no Zimbabwe  (não, Mugabe não é o pesadelo, mas apenas um dos seus grotescos personagens e não, não estou a referir-me á expulsão dos zimbabwenos brancos, ex-rodesianos, que esses fazem parte da tragédia). O pesadelo a que me refiro é o seguinte: em 1997, o Zimbabwe registava uma taxa de inflação de 20%, em 1997, para uma surrealista (ao nível de um quadro de Dali, ou uma das joias literárias de André Breton) taxa de  89,700,000,000,000,000,000,000% (é provável que faltem três zeros) em 2008.

A causa desta "surrealidade" é inteiramente politica e tentar descortinar nesta aberração qualquer tipo de fenómeno económico, financeiro ou social é apenas uma tentativa de transformar um "cadáver exquis" num conto tradicional africano. O governo zimbabweno viveu num limbo que aos poucos tornou-se num purgatório e terminou num inferno (Dante teria demonstrado o maior interesse pelo "modelo zimbabweno de proletarização"). Desperdício diverso, gastos militares excessivos, pseudorreforma agrária, populismo, racismo, etnicismo, misturados com discursos ideológicos formados por uma estranha poção mágica feita de marxismo-leninismo tardio, com nacionalismo, tudo revestido com uma camada envernizada que aparentava uma democracia-liberal (para anglo-saxónico dormir) e uns esgares progressistas (que excluiu os grupos homossexuais da sociedade - á velha maneira de Ian Smith e da Frente Rodesiana - campanha que levou á demissão do presidente Banana). Esta mistura explosiva gerou o inevitável desastre. E tudo isto num período em que as dinâmicas externas não constituíam um factor desfavorável para o país, que até gozava de alguma complacência por parte do U. K. (ex-colonizador e eterno candidato a neocolonizador) e beneficiava de fortes aliados na Commonwealth. Não sofreu, também neste período, com as reformas estruturais. Ou seja o problema tem origem na elite politica e administrativa, nas suas guerras internas e nos seus suspeitos e cinzentos objectivos.

Quando a derrapagem já não podia ser camuflada o governo de Mugabe imprime moeda e ao fazê-lo alimentou a inflação, iniciando um vertiginoso processo de empobrecimento e uma via rápida para a ruina económica. Milhões de cidadãos zimbabwenos, das áreas urbanas (que sentiram o maior impacto) e das áreas rurais foram empurrados para a pobreza, o desemprego, a inércia e uma vida sem perspectivas. Num período de 11 anos a economia entrou num processo descontrolado de empobrecimento, causado pela galopante escalada inflacionária, que por sua vez foi gerada pelas políticas irrealistas da clique no poder, mais preocupada com os grupos concorrentes e com o incremento do seu domínio sobre a sociedade do que com o "crescimento do bolo".  O resultado desta idiotice conduziu a que 1/3 dos zimbabwenos emigraram (muitos foram forçados a um misto de emigração económica e exilio politico), enviando remessas para os seus familiares, mensalmente.

A resposta do governo foi a habitual e ineficaz tabela de preços, controlo que era prontamente  ignorado. Neste ambiente hiperinflacionário as lojas fechavam as portas, os assaltos e os saques aos estabelecimentos comerciais eram uma constante e os motins nas ruas eram frequentes e rapidamente reprimidos (se a camarilha fascistoide de Mugabe fosse tão competente a lidar com a derrapagem económica como era a lidar com o bastão...). O mercado alternativo, em contrapartida, floresceu e implantou-se á escala nacional em todos os níveis da actividade comercial: alimentos e bebidas, medicamentos, moeda, etc..

Uma visita a Harare, nesses tempos distorcidos (não que actualmente a realidade zimbabwena não seja distorcida, mas é mais aparentada a cenário neorrealista do que surrealista) pela hiperinflacção, tornava óbvio ao visitante (a população vivia no óbvio), que alguns segmentos da sociedade viviam de forma abertamente opulenta, não se preocupando a esconder essa opulência, passeando-a de forma arrogante pela cidade. A elite da ZANU-PF geria o mercado informal, fornecendo, distribuindo e vendendo divisas, combustível, farinha, açúcar, manteiga, leite e outros bens de primeira necessidade.

O comércio paralisou. As filas diárias para o pão, as lojas sem produtos e as que tinham algo para vender estavam sem clientes, os preços a serem alterados duas, três, quatro vezes por hora, tornaram-se rotinas que passaram a caracterizar a vida dos zimbabwenos. As pessoas deixaram de pensar nas percentagens da  inflação, limitaram-se a senti-la para sobreviverem. Os valores reais monetários, os preços, os salários, a circulação monetária passaram a ser realidades disformes e dois mais dois podiam ser quatro, como 40 ou 400, que dava no mesmo. Nada é mais alienante do que a hiperinflação e é relativamente fácil cair nessa situação, mesmo nas economias como a norte-americana, a europeia, a japonesa ou qualquer outra, até dos BRICS. Basta as máquinas de impressão e cunhagem começarem a funcionar. Este não é um fenómeno africano ou sul-americano (se atendermos ao passado recente do Brasil e da Argentina). A sua origem é politica e não económica, ou seja, é um erro (ou um conjunto de pressupostos errados) de gestão, cujas consequências se refletem com grande impacto negativo na economia e nas finanças.

Vejamos, a título de exemplo, o débito orçamental dos USA. Este débito atingiu a magnifica quantia de $6,5 triliões de USD, iniciando a sua louca cavalgada em 2008. Isto representa uma expansão em cerca de 70%  da circulação monetária, nos últimos 5 anos, ou seja, as impressoras estão a funcionar em pleno e os norte-americanos não se encontram muito longe da situação vivida pelos zimbabwenos (país que a maioria dos norte-americanos desconhece, ou já ouviu falar, apenas).

O mau exemplo zimbaweno (é mais correcto dizer-se "os maus exemplos", pois a hiperinflação é um dos muitos problemas do "modelo zimbabweno de regressão". Por todo o lado assiste-se á explosão das mais diversas formas de racismo, xenofobia e discriminação de todo o tipo, um regresso ao fascismo - ou melhor, a regeneração do fascismo através do fascismo do seculo XXI - situação perante a qual Mugabe e a sua camarilha aparecem como aprendizes de feiticeiro). Cada vez são mais os governos que, desesperados com a ineficácia das respostas e com o avolumar de situações potencialmente geradoras de conflitos de vária ordem e de grande intensidade e amplitude, que cruzam os braços perante a falência das suas politicas económicas, lutando de forma infrutífera contra os enormes débitos acumulados e não sabendo como resistir á tentação de aumentar taxas e impostos. Em Março  de 2013 os cidadãos cipriotas que tinham nas suas contas bancárias mais de  €100,000 viram o seu dinheiro ser confiscado, para conter a derrapagem da banca do Chipre. A U.E. tem uma directiva que obriga os Estados membros a seguirem o modelo cipriota de salvação da banca. Banqueiros Europeus descansai! O modelo cipriota resolve tudo! Os cidadãos mais abastados pagarão os vossos desaires e os mais pobres serão cada vez mais, sempre dispostos a lavar as fachadas dos vossos templos, por cada vez menos dinheiro!

O modelo cipriota não resolve o problema dos Bancos Europeus ou norte-americanos (USA e Canadá adoptaram directivas similares). Estes países têm agora as baterias apontadas para os fundos de pensões privados (que podiam ser públicos se fossem mutualizados ou cooperativizados), para "irrigar" os fundos públicos (que não são públicos, mas sim, estatais) e que estão "secos", completamente estagnados. Ora esta situação em nada difere do que aconteceu no Zimbabwe, mas com terra, não com as contas bancárias ou os fundos privados. 

A reforma agrária é um factor de desenvolvimento essencial. É o primeiro passo para o desenvolvimento (a seguir ás alterações nas elites politicas), para a modernização e foi também uma revindicação dos camponeses e das comunidades rurais, para além de ser uma promessa (geralmente adiada para a eternidade). Mas no Zimbabwe, com o aprofundar da derrapagem económica provocada pela acumulação de erros de gestão, uma pseudorreforma agraria foi lançada na estrutura económica, levando o país á penúria (algo de muito semelhante, mas muito mais sangrento, aconteceu no Camboja, no regime de Pol Pot), empobrecendo os camponeses (que, descapitalizados, não tinham meios para trabalhar), adulterando a estrutura agrária tradicional (que recebeu um rude golpe e foi forçada a emigrar para Harare, ou mesmo para a Africa do Sul), descapitalizou a burguesia agrária (perdendo a oportunidade de definir áreas de capitalização da agricultura, fundamentais para a exportação, desperdiçando capital e conhecimento) e destruindo o mercado interno, essencial ao camponês e à estrutura da agricultura familiar africana (no mercado interno estes deverão ser os principais intervenientes e deverão ser projectados para os segmentos da distribuição dos produtos - através de estruturas colectivas - evitando o parasitismo do Estado e dos intermediários privados).

É evidente que isto implicava a existência de uma direcção politica e não de um bando armado. O resultado está a vista de todos (excepto aqueles a quem a miopia politica, racial e cultural impede de ver, ou que padecem de um deficit de inteligência e honestidade): com um só golpe a camarilha de Mugabe camuflou os assaltos efectuados pelo seu bando de delinquentes aos cofres do Estado, levou os camponeses á miséria, no meio dos aplausos das massas famintas de promessas, livrou-se dos sindicatos (Mugabe, como todos os fascistas convictos, vive aterrorizado com a existência de organizações de trabalhadores) dos seus adversários políticos e com os seus concorrentes, os fazendeiros brancos (que o racista Mugabe e a sua clique cleptomaníaca consideram uns párias, não-africanos, por terem a pele branca). Hoje, por cima dos escombros da regressão, da fome e da miséria, as multinacionais do agro-negócio apoderam-se das terras que Mugabe assaltou para os camponeses, com o intuito de os desapossar para oferecer as mesmas aos seus sócios maioritários brancos estrangeiros. Chama-se a isto: "política da terra queimada".

Os ares poluídos do colapso financeiro global pairam nos pulmões do sistema financeiro internacional. Quanto tempo irá durar a tosse, ninguém sabe (talvez os profetas da desgraça ou os conjuradores das catástrofes iminentes) mas que vai ser necessário mudar de xarope, todos sabemos. O Zimbabwe demorou 11 anos a  atingir o colapso apos ter iniciado a  agressiva impressão de dinheiro. A Alemanha nazi demorou 9 anos a atingir este patamar de frenesim hiper-produtivo de moeda e o mesmo período de incubação ocorreu na Republica de Weimar. 

Largos milhares de zimbabwenos (alguns dados de ONG's do pais e sul-africanas referem acima de um milhão) fugiram deste ambiente hiperinflacionário, atravessando o Limpopo para a Africa do Sul. Aí muitos viram as suas vidas melhorarem e outros foram vítimas dos preconceitos territorialistas das hordas de primatas da extrema-direita sul-africana (das duas facções: a bóer, na fronteira - através dos grupos armados que a patrulham - e nas cidades pelos grupos extremistas bantos). 

As medidas a tomar para a resolução do quebra-cabeças hiperinflacionários (uma das muitas obras-primas dos primos dos mestre-de-obras produzidos pelas politicas keynesianas e neokeynesianas, estes últimos a tentarem corrigir os efeitos predatórios dos neoliberais com as falinhas mansas do velho e caduco conciliador) implicam uma profunda transformação - metamorfose seria o conceito mais correcto -  que implicaria varias fases a longo-prazo e que passariam por diversos níveis de políticas (mas nunca de paliativos) como, a nível fiscal, ausentar de taxação o capital aplicado nos sectores produtivos, novas tecnologias, inserção destas no processo produtivo (adeus ao pleno emprego, ao emprego como promessa eleitoral e ao culto do trabalho) e de investigação cientifico-tecnológica; isentar os rendimentos de trabalho impostos aos trabalhadores; taxar a propriedade e os investimentos não-produtivos, principalmente o sector imobiliário, actividade bancária e seguradora não relacionada com investimentos produtivos e criadores de riqueza; globalização da segurança social; eliminação dos bancos centrais e da emissão de moeda pelo Estado, tendo os bancos a obrigatoriedade de emitir moeda; regresso ao padrão ouro (no sistema mundial, podendo coexistirem padrões continentais ou regionais, como m padrão prata na América do Sul); regresso dos mercados ao tecido social.

È o fim do mundo que conhecemos? Não... É o início do final do pesadelo em que vivemos... 

Continua

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