Manifestantes
agem contra manobra de parlamentares para votar PEC 215, que transfere do
Executivo para o Congresso, fortemente influenciado por bancada ruralista,
decisão sobre demarcações
Hylda
Cavalcanti, da RBA – em Rede Brasil Atual
Brasília
– Entre o povo indígena Pataxó existe uma tradição de que, quando estão
próximos de iniciar alguma luta, eles realizam antes um ritual. Hoje (16),
diante de policiais militares, seguranças, transeuntes e servidores do
Legislativo com ar de perplexidade, um grupo de 60 pataxós deu início a
cerimônia semelhante – em pleno concreto da capital do país e em frente às
principais curvas das construções de Oscar Niemeyer. Desta vez, em razão da
luta que os índios travam há três semanas para impedir a votação do relatório
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere para o Congresso
o poder de decidir sobre a demarcação de terras indígenas.
Previsto
para ser votado desde o final de novembro, o relatório é objeto de grandes
discussões entre a bancada ruralista – que quer o texto aprovado da forma como
se encontra e tem feito tudo para dar encaminhamento à matéria – e os
parlamentares sensíveis à causa indígena e de outras comunidades tradicionais.
Estes últimos não concordam com o teor da proposta pelo relator, o deputado
Osmar Serraglio (PMDB-RR), e destacam a necessidade de a PEC ser melhor
analisada e se abrir para emendas.
A
sessão foi cancelada três vezes nas últimas semanas. Na última delas,
quinta-feira (11), houve grande confusão quando índios da tribos Apinajé,
Krahô, Kanela do Tocantins, Xerente, Krahô Kanela e Karajá de Xambioá tiveram
impedido o acesso à sala onde estavam os deputados – constantemente aberta ao
público.
Tanta
polêmica levou a comissão especial que avalia a matéria à decisão de suspender
qualquer atividade nesta terça-feira. Mas o grupo de deputados que deseja a
votação conseguiu com o presidente da Casa, deputado Henrique Eduardo Alves
(PMDB-RN), aprovar uma sessão extraordinária para hoje à tarde.
Foi
justamente em protesto contra essa sessão de última hora que os índios
reagiram. O que levou os trabalhos legislativos da sessão especial encarregada
de apreciar a matéria a serem cancelados outra vez, pelo presidente da Comissão
Mista da Consolidação da Legislação Federal, deputado Cândido Vaccarezza
(PT-SP). Ainda não se sabe se a votação da PEC ficará para 2015 ou se
poderá ser apreciada nos próximos dias.
“Luta
atual”
“Esse
projeto vai contra tudo o que temos e ameaça as terras que nosso povo tenta
manter durante anos”, afirmou o índio Aruanã Pataxó, ao explicar que o ritual
foi realizado para mostrar que impedir a votação da PEC é uma luta “dos tempos
atuais”.
Os
índios tentaram entrar no Congresso Nacional usando arcos, flechas e pedaços de
madeira. Foram proibidos de passar pela porta de vidro do Anexo 2 por policiais
e seguranças legislativos. A manifestação vinha sendo realizada de forma
pacífica, pela Esplanada dos Ministérios.
Quando
teve início o confronto, foram usadas bombas de gás lacrimogêneo, sprays de
pimenta por parte dos policiais e seguranças e atiradas flechas, por parte dos
pataxós. Uma delas foi parar no pé de um dos policiais, que com pequeno
ferimento, foi atendido no posto médico.
Uma
das principais reclamações, colocada pela coordenadora da Articulação dos Povos
Indígenas, Sonia Guajajara, é que as entidades defensoras da causa indígena não
foram comunicadas nem informadas sobre a votação da matéria nem mesmo sobre a
PEC em si.
Sem
reconhecimento
A
PEC retira do Executivo federal o poder de fazer demarcação de terras indígenas
por meio de decreto, o que hoje acontece mediante um histórico das áreas e
elaboração de pareceres técnicos por parte da Fundação Nacional do Índio
(Funai), subordinada ao Ministério da Justiça. De acordo com dados do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), existem no Brasil quase 900 mil índios e mais
de 690 terras indígenas. Os povos nativos reivindicam, no entanto, o reconhecimento
de cerca de centenas de áreas em procedimentos – que dificilmente serão
ratificados se a PEC 215 for aprovada da forma como se encontra.
Conforme
estabelece a proposta, a demarcação passará a ser decidida mediante aprovação
de projeto de lei pelo Congresso, onde atualmente é grande o poder da bancada
ruralista, contrária às demarcações. O Executivo também já se posicionou
contrário ao teor da matéria.
Em
seu texto, o deputado Osmar Serraglio defende que a mudança nas regras
permitirá maior segurança jurídica às regulamentações de tais terras a serem
desmarcadas – tese com a qual nem todos concordam.
"Se
a proposta for aprovada, as demarcações ficarão inviabilizadas e o agronegócio
avançará sobre as terras indígenas. Os povos tradicionais não terão mais
direito às suas terras. Ocorrerá um recrudescimento dos conflitos e da
violência no campo. Do ponto de vista ambiental, os danos serão enormes, com
mais florestas devastadas, mais veneno lançado na natureza, menos rios e menos
biodiversidade", afirmou a bancada do Partido Verde, por meio de nota,
criticando o substitutivo de Serraglio.
Terras
tradicionais
Outro
ponto controverso do texto diz respeito à definição de terras tradicionais
indígenas. Atualmente, de acordo com o que estabelece a Constituição Federal,
são consideradas assim "todas as terras habitadas por povos indígenas em
caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas e
imprescindíveis à preservação de recursos ambientais necessários ao seu
bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições".
“É
um verdadeiro retrocesso, uma forma de se tentar reverter direito
constitucional, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal”, ressaltou o
deputado Padre João (PT-MG). “Trata-se de um atentado aos direitos dos índios,
capitaneados pelos ruralistas para impedir que eles permaneçam em terras que
são suas, para poderem expandir cada vez mais o agronegócio”, acrescentou o
deputado Ivan Valente (PSol-SP).
No
seu relatório, o relator Osmar Serráglio também colocou que serão consideradas
terras indígenas apenas as que atendiam a esses critérios no período de 5 de
outubro de 1988. Na avaliação de parlamentares e técnicos contrários à PEC,
esta nada mais é do que uma brecha para impedir que terras indígenas ocupadas
por fazendeiros e empresários não possam mais ter o direito de serem
demarcadas.
Além
disso, o texto permite aos índios poder explorar as terras direta ou
indiretamente, mas mediante uma série de exigências tidas como complicadas para
eles, como ocupações consideradas de relevante interesse público da União,
instalação e intervenção de forças militares e policiais, instalação de redes
de comunicação, rodovias, ferrovias e hidrovias destinadas à prestação de
serviços públicos.
Foto:
GABRIELA KOROSSY/CÂMARA DOS DEPUTADOS
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