Diferentemente
do que diz a grande mídia, não foram poucos os pedidos de intervenção militar e
seus derivados ocorridos nas manifestações desse domingo.
Caroline
Silveira Bauer - Carta Maior
Diferentemente
do afirmado pela grande mídia, não foram poucos os pedidos de intervenção
militar e seus derivados ocorridos nas manifestações desse domingo; ou melhor,
não foi ontem que eles se iniciaram: estão presentes desde as jornadas de junho
de 2013, e são incitados corriqueiramente por setores que apoiam a ditadura
civil-militar implementada em 1964. Paradoxalmente, a data escolhida para as
manifestações marcava exatamente os 30 anos de retorno à democracia, se se
considerar o ano de 1985 e a posse de José Sarney como marcos democráticos no
processo de transição política.
O clamor intervencionista teve uma resposta rápida. Várias postagens em redes sociais comparavam os dias anteriores às manifestações do último final de semana com a conjuntura criada pela imprensa de crise e desestabilização prévia à derrubada de João Goulart, em março de 1964. Também houve comparações entre a imagem de bonecos de Lula e Dilma enfocados em um viaduto com a fotografia de Vladmir Herzog, morto em 1975 em decorrência das torturas sofridas no Doi-Codi, cuja versão de suicídio por enforcamento foi desmentida há poucos anos.
Trata-se claramente de uma batalha de memórias sobre a ditadura civil-militar brasileira, disputa de sentidos presente em diversos momentos neste curto período de aprendizado democrático. Seja na promulgação de políticas de memória e reparação por parte do Estado brasileiro – entendidas como medidas de reafirmação da democracia ou, para outros, “bolsa ditadura” –, ou no desenvolvimento dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – acusada de imparcialidade por averiguar apenas os crimes cometidos pelos agentes estatais, e não pelos “terroristas”, essa batalha transferiu para os níveis ideológicos e simbólicos os conflitos que se deram em outras instâncias durante o período discricionário.
A existência desta multiplicidade de experiências e interpretações sobre a ditadura torna veemente uma reflexão sobre como se dão os processos de construção e transmissão de memórias às novas gerações. Em dado apurado pela CNV, mais de 82 milhões de brasileiros nasceram após 1985, ou seja, não vivenciaram o regime ditatorial, embora muitos convivam com o autoritarismo e a impunidade, que são dois de seus principais legados. E, nas ruas, neste domingo, a presença maciça de jovens que se regozijavam segurando faixas e cartazes pedindo a intervenção militar leva a outros questionamentos: qual o alcance do ensino de história – visto que a história, e não a experiência, é, para esses jovens, a mediadora entre o presente e o passado – na construção da cidadania e no aprofundamento da democracia? Pode-se, através do ensino de história, desenvolver uma "consciência histórica" para que não se permita que situações como o terrorismo de Estado e as ditaduras voltem a ocorrer?
Embora sejam questões de difícil resposta, gostaria de chamar a atenção sobre a importância dos debates suscitados pelas rememorações que ocorrerão no final desse mês em relação às datas do 31 de março e 1º de abril. Ainda que não tenham o mesmo peso simbólico que uma data redonda – como os “50 anos do golpe” em 2014 – em uma conjuntura onde se questiona a interrupção do processo democrático a partir de uma intervenção militar, as reflexões sobre a ditadura, o papel das forças armadas na política, e a democracia são urgentes. Não se trata de perpetuar uma visão da história como mestra da vida, nem um moralismo maniqueísta, mas um questionamento sobre por que tais discursos ainda encontram legitimidade dentro da sociedade.
Infelizmente, o crime de apologia à ditadura ou ao terrorismo de Estado não está tipificado no Brasil, porém o caminho jurídico da interdição não é a forma para se compreender a validade das manifestações intervencionistas. Paradoxalmente, há um ano atrás quando se lembrava os “anos de chumbo” em seu 50º aniversário, ninguém gostaria de ser identificado como um apoiador do regime, e todos bradavam pelas conquistas democráticas das últimas décadas, recomendando, inclusive, a virada de página e o olhar para o futuro.
Que as respostas que possamos dar aos pedidos de intervenção militar surjam de uma reflexão aprofundada sobre o autoritarismo e a negação da cidadania presentes na sociedade brasileira, e a legitimidade social de discursos que incitam à interrupção da democracia e a apologia à ditadura seja questionada em seu âmago.
(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro "Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória".
O clamor intervencionista teve uma resposta rápida. Várias postagens em redes sociais comparavam os dias anteriores às manifestações do último final de semana com a conjuntura criada pela imprensa de crise e desestabilização prévia à derrubada de João Goulart, em março de 1964. Também houve comparações entre a imagem de bonecos de Lula e Dilma enfocados em um viaduto com a fotografia de Vladmir Herzog, morto em 1975 em decorrência das torturas sofridas no Doi-Codi, cuja versão de suicídio por enforcamento foi desmentida há poucos anos.
Trata-se claramente de uma batalha de memórias sobre a ditadura civil-militar brasileira, disputa de sentidos presente em diversos momentos neste curto período de aprendizado democrático. Seja na promulgação de políticas de memória e reparação por parte do Estado brasileiro – entendidas como medidas de reafirmação da democracia ou, para outros, “bolsa ditadura” –, ou no desenvolvimento dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – acusada de imparcialidade por averiguar apenas os crimes cometidos pelos agentes estatais, e não pelos “terroristas”, essa batalha transferiu para os níveis ideológicos e simbólicos os conflitos que se deram em outras instâncias durante o período discricionário.
A existência desta multiplicidade de experiências e interpretações sobre a ditadura torna veemente uma reflexão sobre como se dão os processos de construção e transmissão de memórias às novas gerações. Em dado apurado pela CNV, mais de 82 milhões de brasileiros nasceram após 1985, ou seja, não vivenciaram o regime ditatorial, embora muitos convivam com o autoritarismo e a impunidade, que são dois de seus principais legados. E, nas ruas, neste domingo, a presença maciça de jovens que se regozijavam segurando faixas e cartazes pedindo a intervenção militar leva a outros questionamentos: qual o alcance do ensino de história – visto que a história, e não a experiência, é, para esses jovens, a mediadora entre o presente e o passado – na construção da cidadania e no aprofundamento da democracia? Pode-se, através do ensino de história, desenvolver uma "consciência histórica" para que não se permita que situações como o terrorismo de Estado e as ditaduras voltem a ocorrer?
Embora sejam questões de difícil resposta, gostaria de chamar a atenção sobre a importância dos debates suscitados pelas rememorações que ocorrerão no final desse mês em relação às datas do 31 de março e 1º de abril. Ainda que não tenham o mesmo peso simbólico que uma data redonda – como os “50 anos do golpe” em 2014 – em uma conjuntura onde se questiona a interrupção do processo democrático a partir de uma intervenção militar, as reflexões sobre a ditadura, o papel das forças armadas na política, e a democracia são urgentes. Não se trata de perpetuar uma visão da história como mestra da vida, nem um moralismo maniqueísta, mas um questionamento sobre por que tais discursos ainda encontram legitimidade dentro da sociedade.
Infelizmente, o crime de apologia à ditadura ou ao terrorismo de Estado não está tipificado no Brasil, porém o caminho jurídico da interdição não é a forma para se compreender a validade das manifestações intervencionistas. Paradoxalmente, há um ano atrás quando se lembrava os “anos de chumbo” em seu 50º aniversário, ninguém gostaria de ser identificado como um apoiador do regime, e todos bradavam pelas conquistas democráticas das últimas décadas, recomendando, inclusive, a virada de página e o olhar para o futuro.
Que as respostas que possamos dar aos pedidos de intervenção militar surjam de uma reflexão aprofundada sobre o autoritarismo e a negação da cidadania presentes na sociedade brasileira, e a legitimidade social de discursos que incitam à interrupção da democracia e a apologia à ditadura seja questionada em seu âmago.
(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro "Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória".
Créditos
da foto: Reprodução/Guerrilheiro do Anoitecer
Sem comentários:
Enviar um comentário