Num
cenário em que EUA
apelam à guerras e vigilância permanentes, mobilização social é indispensável.
Mas Rússia pode ser aliado importante
Seumas
Milne, Guardian – Outras Palavras - Tradução Eduardo
Sukys
O
que foi feito do “fim da História”? Conflitos multiplicam-se em três
continentes. Do Afeganistão até o norte da África, há um “arco de guerra”,
intervenção estrangeira e colapso dos Estados. Agora, o chamado Estado
Islâmico – filho mutante da “guerra ao terror” – é o alvo de nova intervenção,
conduzida pelos EUA no Iraque e na Síria. Na Ucrânia, milhares já morreram na
guerra por procuração entre rebeldes apoiados pela Rússia e o governo de Kiev,
patrocinado pelo Ocidente. E no Extremo Oriente, crescem as tensões entre
China, Japão e outros aliados americanos.
As
tropas britânicas finalmente encerraram as operações de combate no Afeganistão
após treze
anos de uma ocupação desastrosa. A justificativa bizarra, apesar
do aumento da presença global da al-Qaeda, é de que a missão foi “muito
bem-sucedida”. Isso em um país no qual dezenas de milhares de pessoas foram
mortas, o Talibã controla áreas imensas, a violência contra as mulheres
aumentou demais e as eleições são uma cortina de fumaça para fraudes e
intimidações.
A
invasão afegã deu início ao que se tornaria a guerra sem fim do Ocidente,
abrangendo a catástrofe do Iraque, guerras com drones do Paquistão à Somália,
apoio às escuras para rebeldes jihadistas na Síria e intervenção “humanitária”
na Líbia que deixou para trás um estado falido à beira da guerra civil.
O
Oriente Médio está mergulhado em uma crise ímpar e sem precedentes. Mais do que
qualquer outra coisa, esse é o resultado de uma intervenção contínua dos EUA e
do Ocidente e do apoio a ditadores, tanto antes quanto depois da “primavera
árabe”, sem qualquer restrição por um sistema internacional de poder ou de
direito.
Mas se o redemoinho do Oriente Médio é o
fruto de uma nova ordem mundial dominada pelos EUA, a Ucrânia é o resultado do
desafio ao mundo unipolar que se seguiu ao fracasso das guerras do
Afeganistão e do Iraque. Foi a tentativa dos falcões norte-americanos e da
União Europeia (UE), de levar a dividida Ucrânia para o lado ocidental após
anos de expansão da OTAN no Oriente, que deflagrou crise, a absorção da Crimeia
pela Rússia e as revoltas na região de Donbass ao leste, na qual o idioma
falado é o russo.
Oito
meses depois, com eleições nos dois lados, parece que a divisão no país
aumentou. A realidade, descartada continuamente como propaganda de Kremlin, é
que os EUA e a UE apoiaram a derrocada violenta de um governo eleito, apesar de
corrupto, e agora estão apoiando uma campanha militar que inclui milícias
de extrema direita acusadas de crimes de guerra — enquanto a
Rússia fica sujeita a sanções avassaladoras dos blocos ocidentais.
Há
algum tempo, no centro de debates denominado Clube Valdai, e
localizado próximo a Sochi, o presidente russo, Vladimir Putin, fez sua denúncia
mais feroz sobre este papel dos EUA no mundo, logo após Barack Obama
colocar a Rússia no mesmo grupo que o víruos do ebola e o Estado Islâmico
(ISIS), como as três principais ameaças globais à América. Após a guerra fria,
declarou Putin, os EUA tentaram dominar o mundo por meio de “imposições
unilaterais” e “intervenção ilegal”, desconsiderando a lei internacional e as
instituições, caso elas atrapalhem. O resultado foi conflito, insegurança e o
surgimento de grupos como o ISIS, enquanto os EUA e seus aliados “lutavam
constantemente contra as consequências de suas próprias políticas”.
Nada
disso é controverso, na maior parte do mundo. Durante uma sessão presidida
por mim no clube Valdai, Putin disse aos
jornalistas e acadêmicos estrangeiros que o mundo unipolar foi um “meio de
justificar ditaduras sobre pessoas e países” – mas o mundo multipolar emergente
provavelmente será mais instável. A única resposta – com a clara intenção de
uma abertura
ao Ocidente – era reconstruir as instituições internacionais, com base
no respeito mútuo e na cooperação. A opção era: novas regras, ou nenhuma regra!
O que poderia gerar uma “anarquia global”.
Quando perguntei a Putin
se as ações da Rússia na Ucrânia foram uma resposta à “ordem mundial sem
regras” — e, ao mesmo tempo, um sinal deste fenômeno, ele negou,
insistindo que o precedente de Kosovo indica que a Crimeia tinha todo o direito
à autodeterminação. Porém, ao reconhecer, de forma relutante, que as tropas
russas intervieram na Crimeia “para bloquear as unidades ucranianas”, ele
realmente admitiu ultrapassar a linha da legalidade – mesmo que nem chegue
perto das invasões, campanhas de bombardeio e intervenções veladas ilegais dos
EUA e seus aliados, nos últimos 15 anos.
Mas
há poucas chances de o lado ocidental responder ao apelo de Putin por um novo
sistema de regras globais. Na verdade, os EUA mostraram pouco respeito às
regras durante a guerra fria, realizando implacavelmente intervenções sempre
que tinham a oportunidade. Porém, havia o respeito pelo poder. Com o colapso da
União Soviética, essa restrição desapareceu. Foi apenas com o fracasso das
guerras no Afeganistão e no Iraque, e com o desafio russo à expansão ocidental
e à intervenção na Geórgia, Síria e Ucrânia, que o poder desenfreado americano
foi colocado em cheque.
Aliado
à ascensão da China, este fenômeno também criou algum espaço para que outros
países procurassem construir sua independência política — principalmente na
América Latina. Talvez o nacionalismo oligárquico de Putin não tenha muito
apelo global, mas o papel da Rússia, como contrapeso à supremacia ocidental, com
certeza tem. E é por esse motivo que grande parte do mundo tem uma visão
diferente dos eventos na Ucrânia, se comparada à dos ortodoxos ocidentais; e
por isso China, Índia, Brasil e África do Sul abstiveram-se da condenar a
Rússia, com relação à Crimeia, nas Nações Unidas.
No
entanto, a capacidade de Moscou frente à força militar dos EUA é limitada. Sua
economia é muito dependente de petróleo e gás, sofre com falta de investimentos
e agora está sujeita a sanções prejudiciais. Apenas a China oferece uma possível
contenção global ao poder unilateral ocidental, e isso ainda está longe de
acontecer. Segundo o que Putin
teria dito ao vice-presidente dos EUA, Joe Biden, talvez a Rússia não
seja forte o suficiente para competir pela liderança global — mas ainda pode
decidir quem será esse líder.
Até
mesmo Obama insiste que os EUA são a “nação indispensável”. E parece quase
certo que o sucessor de Obama, quem quer que seja, será consideravelmente mais
linha-dura e intervencionista. A elite norte-americana continua comprometida
com a dominação global e com a preservação da nova ordem mundial pós-1991.
Apesar
dos benefícios do mundo multipolar emergente, o perigo de conflitos, incluindo
guerras de grandes proporções, parece crescer. A pressão da opinião pública,
que fez as tropas ocidentais retirarem-se do Iraque e do Afeganistão, terá que
se fortalecer muito nos próximos anos, para que essa ameaça não nos destrua.
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