domingo, 1 de março de 2015

UMA EUROPA GERMANÓFILA?



Arnaldo Gonçalves – Hoje Macau, opinião

União Europeia começou como projecto de integração há sessenta e quatro anos como uma escapatória, uma solução de recurso, uma emergência para colocar os povos europeus a coberto de um terceiro mergulho num belicismo autofágico que dinamitasse o continente. Como espaço de liberdade, de encruzilhada de culturas, línguas e religiões, de convergência de identidades, a Europa afirmou-se, benignamente, pela sua diversidade, pluralismo e sentido de inclusão.

Os Pais Fundadores do que se consagrou dizer-se Comunidades Europeias e depois União Europeia, tiveram a ideia de pôr em comum as indústrias que alimentaram as guerras e as infra-estruturas económicas que possibilitassem, através da gestão conjunta e independente, o desenvolvimento sustentado do espaço de integração. No fundo, sem o que o dissessem explicitamente, quiseram criar mecanismos de auto e hetero-vigilância que dissuadissem os sonhos nacionalistas de rearmamento e anexação territorial que haviam partido de Berlim.

Afinal, nos séculos que o precederam, a história da Europa havia sido um ciclo interminável de criação e fim de impérios, de guerras religiosas e étnicas, onde à velocidade de cruzeiro se redesenhavam as fronteiras pela diletante vontade de príncipes e monarcas nos seus sonhos megalómanos de grandeza, poder e domínio territorial. O sistema absolutista, fundado no direito divino dos reis (e dos príncipes), foi o gramasso ideológico desta sedução pelo mando e pela hegemonia que esteve sempre nos pesadelos da Europa.

A democracia, na sua raiz etimológica grega ‘demo’e ‘kratia’, surgiu como alternativa de governo num arquipélago a sul do continente como forma de preservação da identidade étnico-cultural das cidades-estado que o integravam e de sobrevivência das suas elites. Afinal, o governo de ‘todos’ excluía os escravos, os prisioneiros, os veraneantes, os metecos dessas pequenas comunidades de pouco mais de mil habitantes. Um milénio e meio depois, a ideia de uma democracia representativa fundada no censos das propriedades afirmava-se numa ilha do Mar do Norte como afirmação da voz dos gentis-homens contra as apetências autocráticas de um soberano. Um rei que se via a governar pelo mando de Deus contra (se necessário) a vontade dos seus súbditos representados em Parlamento. A Magna Carta – cujo centenário se comemorou há pouco – simboliza a amarração da ideia de governo pelo consentimento ao projecto europeu. Valor fundacional que através das revoluções liberais se estendeu ao continente e por aí se ancorou.

Esteve sempre presente na incubação do projecto europeu que os governos, ainda que eleitos em eleições livres e universais, têm um mandato limitado no tempo e condicionando à vontade dos cidadãos reunidos em assembleia política. Vontade expressa através dos seus representantes eleitos. Como esteve presente que aqueles são mandatados para exercer o poder são responsáveis perante o povo e prestam-lhe contas, regularmente.

Corolário deste ideia central de um poder não ilimitado ficou impresso nos textos sagrantes da União Europeia que os Estados-membros mantêm o essencial dos seus poderes soberanos, que os governos nacionais subsistem como entes independentes com os seus parlamentos nacionais e que a última expressão do exercício da vontade soberana reside na Nação.

Sempre que a hipótese da união da Europa, através de uma federação, se colocou, quer como utopia quer como inevitabilidade, os europeus pronunciaram-se de forma clara contra esse projecto, contrapondo-lhe o paradigma de uma união voluntária de estados-nação escrupulosos da sua independência. Recorda-se os movimentos políticos dos anos 1950 que propugnaram a federalização da Europa e a fracassada Convenção para o Futuro da Europa de 2003. No arrebatamento pró-federalista isso foi lido como uma resistência irracional aos rumores do tempo e do ‘progresso’, uma recusa ‘egoísta’ das elites em aceitar a inevitabilidade da marcha para um qualquer reino neoplatónico de felicidade na Terra, simbolizado por uma bandeira azul multi-estrelada e pelo Hino da Alegria de Beethoven.

Este sonho idílico faria sentido se a Europa pudesse permanecer em paz sem ameaças visíveis nas suas fronteiras a Sul e a Leste, se o modelo económico de solidariedade institucional funcionasse como um carrilhão bem oleado, se os grandes potentados como a Alemanha e a França desistissem da sua apetência para a hegemonia no continente, a qual alimentara os sonhos imperiais de uma e de outra. Mas as nações raramente mudam os seus desígnios mais profundos a menos que a história e o destino lhes imponham que ajoelhem ou se contenham pela ameaça da derrota ou do aniquilamento.

Num precipitado movimento de alargamento para além do que poderia comportar, a União Europeia abraçou primeiro os países ibéricos e do Sul, depois os países do Centro e do Norte que resultaram da implosão da União Soviética e dos seus satélites e finalmente alguns dos componentes da antiga República Jugoslava. Como modelo escolheu a virtude laborista do protestantismo huguenote que levara à transformação da Prússia na Alemanha dos nossos dias, esquecendo que os valores culturais que animam esses povos das terras do frio e da neve não são compatíveis com a predilecção setentrional para o lazer, o consumo, a boa-mesa, o divertimento lúdico e o veraneio. Porque o capital, numa lógica da acumulação e multiplicação das rendas havia singrado para as praças financeiras do Norte da Europa, a Europa embarcou na aventura da moeda única que identificara como o terceiro símbolo da sua união de vontades. Fê-lo sem perceber (ou não o querer) que nem todos os Estados estavam em condições de respeitar os critérios de convergência da União Económica e Monetária, nem havia garantias de o garantirem no futuro.

O que é que mudou nos últimos quinze anos que fez estremecer as branduras de um casamento para toda a vida dos estados-membros da Europa? Desde logo, o facto de a queda do Império Soviético ter transformado a Rússia na Prússia de outrora, de regresso aos seus sonhos de grandeza imperial à custa dos vizinhos. A anexação da Crimeia, a constituição do arco sanitário russófono no leste da Ucrânia, o assédio às repúblicas do Báltico revela que o estalinismo escondido de Vladimir Putin incorpora, na verdade, desígnios de expansão territorial à custa de países que são hoje parte da União Europeia. Em segundo lugar, a quebra do eixo franco-alemão permitindo à Alemanha se apresentar, aos olhos de todos, como a única guardiã da unidade europeia, a garante das suas políticas económicas, financeiras e de integração. Um domínio matizado pelo controlo inteligente do Banco Central Europeu, pelo peso dos bancos alemães no sistema monetário europeu e pela liderança política alemã do Conselho Europeu.

A crise da Grécia é apenas uma pequena nota do que aí vem em termos de perturbação do projecto europeu, de erosão da solidariedade e coesão europeias, da periclitante sobrevivência do Euro e da relação político-estratégica com a Rússia de Putin. É a relação da Europa – no seu todo – com a Alemanha de Ângela Merkel que está hoje problematizada.

A Europa foi a bóia de salvação da Alemanha no doloroso processo de reconstrução do pós-guerra. Setenta anos depois não pode aceitar ser o parceiro acomodatício e silencioso perante o namoro germano-russo. Talvez como há sete décadas atrás a esperança resida num promontório delimitado por escarpas do outro lado do Canal da Mancha habitado por gente especialmente zelosa da sua liberdade. 

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