Problemas são
graves, descontentamento cresceu, é preciso mudar logo. Porém, os “barrios”
resistem e enfrentam hipocrisia das elites. Vencerão?
Greg
Granin, no The Nation –
Outras Palavras - Tradução: Rosana Pinheiro, na Agência Plano
Golpes
e contragolpes. Repressão. Crise econômica. Sete centavos por um tubo
de pasta de dente e 755 dólares por uma caixa de preservativos. Como resultado
deste último fato, diz a Agência Bloomberg: “A Venezuela tem uma das maiores
taxas de infecção pelo HIV na América do Sul” (é perturbador, mas a Bloomberg
não menciona: trata-se exatamente da mesma taxa de infecção dos Estados Unidos…). Queda dos preços do petróleo. Prisão de um líder da oposição. Complô em Washington. Twittes
da ONG Human Rights Watch. Manifestações na América do Sul.
O
que está acontecendo na Venezuela? Eu não faço ideia. Estive muito ocupado
tentando rastrear o cinegrafista que acompanhou o jornalista Bill O’Reilly em El Salvador , onde ele não apurou informações sobre o massacre de El Mozote.
Então perguntei a um grupo de estudiosos de confiança. Eis o que eles
disseram.
Acima
de todos, Miguel Tinker Salas, professor de História em Pomona e autor de The Enduring Legacy, que conta a história da indústria
petrolífera venezuelana, insiste em que temos de manter a perspectiva. O
México, país onde pilhas de corpos se acumulam, e que está em meio a uma crise
humanitária de proporções surpreendentes, recebe “passe livre” dos Estados
Unidos. Com a Venezuela é diferente (lá as coisas podem estar ruins, mas não
ruins a ponto de serem contabilizados 83 mil cadáveres em seis anos, devido à violência do
crime organizado). Tinker Salas, cujo oportuno livroVenezuela: What Everyone Needs to Know será publicado
em abril, escreve:
“Reportar
sobre a Venezuela nos EUA, considerando as descrições feitas pelo establishment político
de Washington, levaria alguém a acreditar que o país está mais uma vez à beira
de um precipício. A morte recente de um estudante na Venezuela é trágica. Mas,
ao contrário do México, onde reina a impunidade, o policial responsável pela
morte do estudante foi imediatamente detido, o que não impediu que o Departamento de Estado
Norte-Americano e o escritório de John Kerry emitissem uma nota de repúdio.
[Nota do editor: compare a resposta da ministra venezuelana do Interior, Carmen
Meléndez, à morte de Kliver Roa, com os eventos recentes nos EUA — em Ferguson,
Staten Island, Cleveland…]. No contexto atual, o governo de Nicolás Maduro na
Venezuela é descrito como uma administração que perde apoio popular e
supostamente conta com a repressão para permanecer no poder (mais uma vez,
compare com o México).
Manchetes
sensacionalistas geralmente concentram-se na falta de papel higiênico e
preservativos como forma de ridicularizar o país e a liderança política eleita
após a morte de Chávez. No México, onde mais de 50% da população vive na
pobreza, e milhões de pessoas pobres e indígenas não têm acesso a alimentos ou
serviços básicos, condições deploráveis passam desapercebidas. Milhões emigram
ou tornam-se refugiados, e dezenas de milhares de mortes são atribuídas aos
cartéis de drogas, isentando o aliado e financiador — Estados Unidos da América
— de responsabilidade. A maioria dos relatos não reconhece a mudança política e
social que ocorreu na Venezuela nos últimos quinze anos ou a capacitação de
milhões de pessoas. O futuro da Venezuela não é claro, a crise é profunda, e a
insatisfação cresceu, mas o governo ainda tem apoio.”
Então,
qual é a base de apoio do governo? Sujatha Fernandes,
que leciona no departamento de sociologia e no Centro de Pós-Graduação do
Queens College da City University of New York (CUNY) e é autora de Who Can Stop the Drums? Urban Social Movements in Chávez’s
Venezuela, aponta para os bairros pobres, onde, apesar da carência
econômica e longas filas para comprar bens básicos, os moradores estão cientes
do papel desestabilizador da oposição:
“Muitos
desses moradores dos bairros pobres, que compõem o reduto do processo
bolivariano, estão cientes do papel desestabilizador que está sendo desempenhado
pela oposição em várias frentes, e não estão entre aqueles que expressam
descontentamento. E falando com venezuelanos comuns, não se tem a sensação de
grande calamidade econômica, apesar das dificuldades. Os laços de solidariedade
que se desenvolveram nos últimos tempos têm dado origem a respostas inovadoras,
como a economia de escambo.”
A
antropóloga Naomi Schiller, que fez uma extensa pesquisa de campo nos
bairros, focando no ativismo comunitário online, coloca a crise atual em
contexto: “Houve poucos períodos em que o bolivarianismo esteve em apuros
profundos.” E a crise tem seu preço:
“A
pressão constante reduziu os espaços para reflexão, crítica construtiva e
reparação. No meio da crise econômica, o financiamento estatal para as
iniciativas de mídia comunitária tem sido muito reduzido. Catia TVe, uma
proeminente emissora de televisão comunitária em Caracas, cortou a sua equipe
pela metade. A constante redução do poder de compra do salário mínimo significa
que todos devem manter vários empregos. Em toda a Venezuela, novas disparidades
surgiram entre os que têm acesso a dólares por meio de familiares no exterior,
viagens internacionais ou outros canais. Mas, em vez de abandonar o projeto de
construção do socialismo bolivariano, muitos produtores de mídia comunitária
continuam a fazer televisão e rádio voltados ao objetivo de construir uma ordem
social mais justa e igualitária, procurando fazer o que podem com recursos
muito limitados.”
E,
apesar da crise em curso, os cidadãos organizados em movimentos sociais e
“politicamente mobilizados, tais como aqueles que trabalham nos meios de
comunicação comunitários, continuam, em sua maior parte, a acusar a oposição e
a contínua intromissão do governo dos Estados Unidos:”
“Mesmo
quando frustrados com a corrupção e a má gestão, e céticos quanto a algumas
alegações expressas pelo governo Maduro, eles continuam convencidos de que, se
a oposição ganhasse poder, suas condições sociais e econômicas seriam muito
piores. O chavismo sempre foi dividido internamente, com várias correntes
conflitantes – algumas mais comprometidas com a democracia participativa e a
construção de um Estado comunitário do que outras.
Apesar
de mais de uma década de agitações, Schiller acredita que o momento atual
“parece ser a crise mais grave por que o chavismo passou até agora”.
Ao
longo dos anos, venezuelanos chavistas e pobres, diz Schiller, ecoando
Fernandes, provaram-se notavelmente resistentes e ativos em assumir o controle
de suas vidas, com o melhor de sua capacidade. Partidários de Chávez e agora de
Maduro são frequentemente descritos como “‘clientes’ improdutivos que esperam
doações na forma de alimentos subsidiados e preços da gasolina irracionalmente
baratos” (versões tropicais da famosa declaração dos “47%” de Mitt Romney). Mas, ela diz: o
“movimento bolivariano foi construído por pessoas que usaram recursos do Estado
para educar-se, construir alianças, participar da governança local, alimentar
os seus vizinhos, fazer a sua própria mídia e cuidar dos doentes. Eles
procuraram transformar dólares do petróleo em comunidades prósperas.” Esse
modelo pode não ser mais sustentável.
Mas
nem todos na Venezuela são “organizados”. Daniel Hellinger, professor de Relações Internacionais na Universidade
de Webster, autor de uma série de livros e de um boletim mensal, Caracas
Connects, aponta que ambos, desestabilização planejada e descontentamento
popular real, podem existir simultaneamente: “má gestão econômica e sabotagem
econômica não são hipóteses mutuamente excludentes para explicar as longas
filas”. Ainda assim, “a desaprovação de Maduro não eleva automaticamente a
força da oposição:
“Enquanto
as pessoas nos bairros pobres não aderirem aos protestos, o governo Maduro
provavelmente não cairá. Mas, se a base chavista das cidades vai sair e votar a
favor do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) em dezembro [eleições
para a Assembleia Nacional], apesar da organização superior do partido, é muito
mais problemático… Ainda que o governo venha a apresentar provas concretas
contra Ledezma [o prefeito de Caracas, Antônio Ledezma], a preocupação com a
sua detenção [acusado de tramar um golpe de estado] não se limita à oposição.
‘A criminalização da dissidência’, como denominam alguns comentaristas, é
motivo crescente de preocupação também para a ala esquerda do chavismo.”
Hellinger
observa ainda que “a detenção de integrantes da segurança e as declarações
sobre golpes por parte do governo” – mesmo que sejam reais – podem sair pela
culatra, “simplesmente por tornar um golpe mais plausível.”
E
o que dizer sobre a tentativa de golpe relatada? O que anda fazendo a oposição? Steve Ellner, co-editor do
recém publicado Latin America’s Radical Left: Challenges and Complexities of
Political Power in the Twenty-First Century e professor da Universidad
de Oriente, em
Puerto La Cruz , Venezuela, escreveu que:
“O
discurso dos principais membros da oposição venezuelana é deliberadamente vago,
mas suas intenções são evidentes. Eles se envolvem no que o presidente Maduro
chama de “banda dupla”: juram apoio a soluções pacíficas, mas, ao mesmo tempo,
encorajam um caminho não-democrático ao poder, juntamente com táticas
revolucionárias e até mesmo violentas. De fevereiro a maio do ano passado, a
dupla abordagem serviu para justificar as manifestações antigovernistas
generalizadas, que incluíram a destruição em massa de bens do Estado e
numerosas mortes, inclusive de seis guardas nacionais. O slogan “saia agora”
(lançado pela primeira vez por Leopoldo López, atualmente na prisão) era um
eufemismo para a mudança de regime por qualquer meio, mesmo enquanto os líderes
da oposição afirmavam que estavam simplesmente pressionando o presidente Maduro
a demitir-se. (Os mesmos líderes tinham convidado Chávez a demitir-se nas
semanas que antecederam o golpe de abril de 2002.) Em outro exemplo de
ambiguidade intencional, a oposição insistiu na libertação dos “presos
políticos” dos protestos do ano passado, sem fazer distinção entre
manifestantes pacíficos e violentos.
“Agora,
os líderes da oposição estão pedindo uma “transição” distanciada do atual
governo, a fim de realizar novas eleições, reformar a administração pública,
negociar com os organismos financeiros multilaterais, rever as expropriações de
empresas feitas pelo governo chavista, libertar “presos políticos” e, de forma
significativa, aumentar a produção de petróleo (em aparente violação das quotas
da OPEP). O governo Maduro afirmou que a proposta de formar um governo de
transição estava ligada a uma tentativa de golpe envolvendo oficiais da Força
Aérea, bem como o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, que foi preso por isso.
Se o objetivo real desses líderes da oposição é pressionar Maduro a demitir-se,
por que não limitam seus slogans a referências em favor desse objetivo? Todos
os venezuelanos sabem que Maduro, que conta com considerável capacidade de
mobilização do maior e mais organizado partido político do país, não está
prestes a renunciar. A estrada não-eleitoral para o poder envolve,
necessariamente, a violência e, eventualmente, um golpe militar.”
Grande
parte da discussão da Venezuela tem a ver com a sua economia. Aqui está a
opinião de Mark Weisbrot, codiretor do Center for Economic and Policy
Research, de Washington D.C., nos Estados Unidos.
“Por
15 anos, a maioria dos meios de comunicação ocidentais tem dito que a economia
venezuelana estava à beira de um colapso. Esta foi a análise, em grande parte
da imprensa financeira, mesmo quando a economia estava crescendo e a inflação
estava sob controle. Eles finalmente estão certos? A inflação foi de 68,5% em
2014, e o PIB da Venezuela encolheu 2,8%. A economia também tem sido afetada
pela falta de bens de consumo e outros produtos, incluindo alguns medicamentos.
Títulos do governo da Venezuela têm as maiores taxas de juros do mundo. É claro
que há problemas graves a serem resolvidos.
“A
inflação e a escassez são os principais resultados de um sistema de taxa de câmbio disfuncional. Um corte no fornecimento de
dólares, no segundo semestre de 2012, desencadeou um movimento de aumento de
participação do mercado negro, empurrando para cima a inflação, que por sua vez
aumentou ainda mais a taxa de participação do mercado negro. Atualmente existem
duas taxas fixas (6,3 bolívares fuertes, ou BFS , por dólar para alimentos e
medicamentos, e 12 BFS para outras mercadorias) e uma nova taxa flutuante, que
começaram a ser negociadas em 15 de fevereiro, além do mercado negro. Um ajuste
precisa acontecer para empurrar o preço do dólar a um nível que irá eliminar o
excesso de demanda. A nova taxa flutuante anunciada na semana passada é de
cerca de 172, não muito longe da taxa do mercado negro de 191 para transações em dinheiro. Ainda
precisamos ver se este novo mercado de câmbio vai deter o processo de
depreciação da inflação – e da fuga de capitais que vem junto com esse fenômeno
– e se poderia ser um passo em direção à unificação da taxa de câmbio.
“Os
problemas são solucionáveis. Nos últimos dois anos, a Venezuela cortou as
importações em 33%, quase tanto quanto a Grécia fez em seis anos de depressão.
Assim, a parte mais difícil do ajuste — mesmo levando em consideração a queda
do preço do petróleo — está feita. De acordo com a estimativa do Bank of
America, a Venezuela tem reservas e ativos que poderiam se transformar em
dinheiro, totalizando US$ 70 bilhões, uma vez e meia superiores ao nível de
importações anuais. Com apenas as reservas do governo em ouro, seria possível comprar
todos os títulos do governo e da PDVSA (a companhia nacional de petróleo) que
vencem nos próximos três anos; uma omissão da dívida é, portanto, extremamente
improvável. Em suma, os problemas econômicos da Venezuela são solucionáveis,
mas para isso é necessária uma reforma séria — principalmente no sistema de taxa de câmbio.”
Ainda
assim, existem sérias contradições sociais no modelo político e econômico
deixado por Chávez. Andrés Antillano, professor de criminologia na Universidade Central da Venezuela, diz
que:
“Sob
o chavismo, fomos de uma economia desregulamentada, nas mãos do setor privado,
ao capitalismo de Estado sustentado pela apropriação e redistribuição das
receitas do petróleo aos mais desfavorecidos. Não obstante o caráter social e a
natureza igualitária das políticas implementadas durante este período… o que
vemos hoje na Venezuela são sinais do esgotamento do modelo econômico rentista
e estatista. Ao mesmo tempo, temos assistido a escassez e o desmantelamento do
aparelho produtivo. Nesse contexto, as classes dominantes e seus órgãos
políticos, os partidos de direita, procuraram restaurar seu poder. Na esfera
econômica, eles exigem a privatização e o monopólio das receitas do petróleo.
Politicamente, a classe dominante procura derrubar o projeto bolivariano e
impor um governo neoliberal para servir os seus interesses.”
Neste
contexto, diz Antillano, especulação, acúmulo de capital privado e manipulação
de moeda estrangeira têm provado ser táticas de “sucesso” para “desacreditar o
governo e criar instabilidade social”. Por sua vez, o governo bolivariano de
Maduro provou-se “fraco e aguerrido”.
“Sem
a forte liderança de Chávez, que conseguiu unir um campo político heterogêneo a
uma orientação estratégica clara, o gabinete atual não tem sido capaz de
definir um caminho claro de ação e e tem adiado a tomada de decisões. Esta
indecisão, em parte, indica o seu desejo de evitar medidas que prejudicariam os
mais pobres – ações que setores conservadores defendem – como desvalorizando o
bolívar, acabando com o controle de preços e reduzindo a despesa social.
O
que vai acontecer, o que deve ser feito? Na opinião de Antillano:
“O
projeto bolivariano está numa encruzilhada. O esgotamento tanto do modelo
rentista e do modelo de desenvolvimento do capitalismo de Estado exige tomar um
rumo neoliberal através da desregulamentação da economia, onde a riqueza da
nação voltaria para os ricos; ou de tirar proveito da desilusão com o modelo
rentista de avanço em direção a um modelo pós-capitalista, em que as
capacidades produtivas são socializados nas mãos do povo.”
George
Ciccariello-Maher, que leciona na Drexel e é o autor do We Created Chávez,
diz que este novo modelo do qual Antillano fala já está sendo construído – ao
politizar e capacitar (ainda mais do que já ocorreu) o socialismo de autoajuda
descrito por Fernandes e Schiller. A Revolução Bolivariana está numa “situação
apertada”:
Mas,
com toda essa ênfase nas questões da economia e no conflito nacional entre
chavistas e antichavistas, corremos o risco de perder de vista o que é sempre
esquecido: os historicamente pobres, as bases revolucionárias, aqueles que
conheceram a escassez e a insegurança muito antes das elites ricas levantarem
essas bandeiras; aqueles que conhecem os perigos e as corrupções do poder do
Estado, mas que, no entanto, optaram estrategicamente por disputar espaço.
Apesar de apoiar Nicolás Maduro e a continuidade da Revolução, muitos têm
ajudado na construção de um “Estado comunal”, paralelo, contribuindo com seus
esforços para uma rede em expansão de comunidades autogovernadas.
Essas comunidades, embora tenham apenas começado a emergir, estão produzindo
bens à medida em que formam novas pessoas e novas relações políticas. Como me
disse recentemente uma liderança comunitária: “Este é o momento mais difícil da
Revolução Bolivariana, mas as comunidades estão onde a vitalidade está.” Contudo, a vitalidade só nos levará até certo ponto, e não está claro se existe
vontade política para que o projeto das comunidades avance: a elite política
chavista têm muito a perder se as comunidades tiverem sucesso. Mas talvez a
crise econômica prevaleça: o setor de importação privada provou ser o calcanhar
de Aquiles do governo, e a produção comunitária é muito mais eficiente do que
as fazendas e fábricas gerenciadas pelo Estado. A Venezuela encontra-se em um
ponto de inflexão: socialista demais para prosperar no sistema global, ainda
muito dependente de capitalismo para romper com ele. A única saída é para a frente,
e a única forma de avançar nessa direção é através dasorganizações comunitárias.”
Na
foto: Graffiti celebra revolução popular e lutas da América Latina, em Caracas
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