quinta-feira, 2 de abril de 2015

A PROPÓSITO DO KUITO KUANAVALE – II



Martinho Júnior, Luanda (ver texto anterior)

5 – A tornar mais complexa a abordagem, interessa desde logo definir a amplitude da batalha e as questões geo estratégicas intimamente associadas ao conjunto de dispositivos.

Para tal julgo ser evidente que toda a linha que preenche Kuito Kuanavale (no Kuando Kubango) até ao Ruacaná/Calueque (no Cunene) era formada dum lado e do outro das barricadas, por um sistema de vasos comunicantes, assistido por vias e meios de comunicação, capacidades de logística, movimento de unidades terrestres e aerotransportadas, bem como apoio aéreo multiforme, que abarcava uma área enorme a sul do Moxico, do Bié e da Huila: o que se passasse de excepcional num dos pontos (neste caso a leste), poderia assim vir a implicar alterações profundas na correlação de forças nos outros pontos (nos dispositivos no centro e a oeste do sistema).

Isso teve de ver com a gestão de reservas, com a decisão do aumento do contingente cubano, com o emprego por parte das FAPLA/FAR/PLAN de armamento mais moderno, assim como com a compressão e a distensão das linhas de logística, algo que também se torna necessário levar em linha de conta:

- Enquanto as FAPLA/FAR/PLAN conseguiram excedentes consideráveis que a qualquer momento poderiam pressionar ao longo dessa linha, as SADF/FALA/SWATF concentraram os seus esforços principalmente a leste, sem garantir reservas operativamente adequadas ao longo dessa mesma linha e na barricada geograficamente oposta;

- Enquanto distenderam as linhas de logística às proximidades de Mavinga, as FAPLA tiveram insuficiências de toda a ordem, mas quando as comprimiram com concentração de forças no triângulo de Tumpo, foi a vez das SADF/FALA sentirem o mesmo tipo de dificuldades, com a agravante de não possuírem reservas suficientes e manterem, ao nível na área do Cunene, insuficiências operacionais, o que possibilitou o contra-ataque das forças combinadas FAPLA/FAR/PLAN;

- A proliferação de campos de minas implantados pelas FAPLA/FAR no triângulo de Tumpo, articulando-os com a manobra táctica, fez diminuir as possibilidades de movimento, com alterações para menos na velocidade e força dos golpes, por parte das SADF/FALA, quer dizer, um das principais vantagens do ataque dessas forças ficou anulada, com a superioridade do emprego da arma de engenharia e, logo de seguida, com a superioridade aérea dos MIS-23ML;

 - O emprego dos Olifants na direcção do Kuito Kuanavale por parte das South Africa Defence Forces, revelou-se pouco a pouco contraproducente, pois contribuíram para perder capacidade e rapidez de manobra; os Olifants atolaram-se em campos de minas, aumentaram imenso as dificuldades operacionais da logística em suporte ao material pesado e terminaram por não permitir o emprego desses mesmos meios a oeste devido ao desgaste do material que sobrou e conseguiram retirar em direcção à Namíbia ocupada; essas unidades não puderam fazer chegar a tempo à Ovambulândia, quando a contra-ofensiva FAPLA/FAR se fez sentir no Cunene;

- A introdução dos MIG-23ML limitou o movimento das SADF/FALA/SWATF, quer em terra quer no ar, pelo menos durante o período diurno, o que lhes causou problemas de toda a ordem, quer nas operações ofensivas, quer nas linhas de logística aéreas e terrestres;

- Às baixas que as SADF/FALA tiveram no Kuando Kubango, acresceram ainda baixas mais volumosas no Cunene, o que, tudo somado, fez surgir na África do Sul um “síndroma do Vietname”especialmente quando do ataque dos 11 MIG-23ML a Calueque, uma reacção psicológica contra uma guerra desgastante, que cada vez produzia mais mortos e feridos, sem haver alguma vez a perspectiva de se poderem vir a alcançar os objectivos a que o “apartheid” se propunha.

- As FALA (UNITA) eram numerosas no Kuando Kubango, com todos os efectivos empenhados na defesa da Jamba, mas muito débeis no Cunene, precisamente ao contrário da SWAPO (PLAN), muito forte no Cunene e débil no Kuando Kubango e periferias do sudoeste da Zâmbia; tudo isso resultava das questões geo estratégicas que se apresentavam, bem como das características étnicas que se espelhavam na base de mobilização e recrutamento de cada um desses agrupamentos, que com o tempo obrigava a delimitar a sua implantação; a UNITA ficou acantonada no sudeste e a SWAPO tinha à sua disposição o corredor cuanhama- ovambo;

- O embargo de armas ao “apartheid” impedia esse regime de sublimar as respostas para além daquelas que já haviam sido conseguidas e, apesar das inovações tecnológicas (G-5, G-6 e os“drones” Seeker), tornou-se evidente que a partir de 1988 a derrota militar estava consumada, esgotados os recursos, o que recomendava imediatamente a negociações.
  
6 – De facto as SADF/FALA/SWATF na Ovambolândia e no Cunene, haviam sido quase substituídas pelas unidades policiais Koevoet, pelas unidades Romeo Mike e pelos dispositivos móveis que protagonizaram os conceitos de caça à guerrilha da SWAPO conhecidos como“Fireforce”, de unidades da South West African Territorial Force (SWATF), dispondo de muitos blindados Casspir, de alguns blindados Ratel 20 e 90, de poucas unidades Ratel ZT3 equipadas com mísseis anti tanque, de poucos Olifant, de muitos meios de intervenção aérea (sobretudo helicópteros Alouette e Puma), assim como de meios de ataque aéreo que se haviam tornado obsoletos (sem possibilidade de resposta face aos MIG-23ML), instalados sobretudo em Ruacaná, Oshakati, Ondangwa e Rundu.

Esses dispositivos, se bem que relativamente eficazes em relação ao combate à guerrilha da SWAPO (People Libertion Army of Namibia, PLAN), numa profundidade que chegou à Serra da Chela, abarcando ao mesmo tempo a Ovambolândia (no norte da Namíbia ocupada), eram manifestamente insuficientes perante forças regulares motorizadas conforme as introduzidas no teatro de operações Calueque/Kuito Kuanavale pelas FAPLA/FAR/PLAN em 1988, com a agravante que os MIG-23ML passaram a garantir o domínio do espaço aéreo com raio de acção que possibilitava já ataques dentro da própria Namíbia ocupada pelo “apartheid”, a partir do momento em que se reocupou território já relativamente próximo da fronteira de Santa Clara.

O ataque dos MIG-23ML a Calueque, que provocou inúmeros desgastes e a morte de dezenas de soldados sul-africanos, redundou na retirada das SADF/FALA/SWATF para a Namíbia ocupada, abandonando o território de Angola.

As bases aéreas de Ruacaná, Oshakati, Ondangwa e Rundu, bem junto à fronteira com Angola, ficaram à mercê dos MIG-23ML, conforme ao exemplo do que aconteceu em Calueque.

As forças coligadas do “apartheid” demonstraram também não possuir uma engenharia defensiva à altura, tornando-se vulneráveis em posições fixas: os meios garantiam uma excelente capacidade de manobra de intervenção em ofensiva, com possibilidades de rapidez nos movimentos e artilharia poderosa e precisa, mas as insuficiências quando passavam à defesa de posições, acabaram por vir ao de cima.

As posições da Cahama, Xangongo, Mupa e Cuvelai haviam sido reforçadas pela 40ª Brigada de Tanques das FAR, o que possibilitou a construção de pistas de aviação em Xangongo e Cahama, assim como o assentamento de radares nessas localidades, puxando o raio de acção dos MIG-23ML para sul e possibilitando a sua entrada na Namíbia ocupada (o que aconteceu pelo menos duas vezes).

Se as Operações sucessivas das SADF/FALA, Moduler, Firewood, Hooper e Packer, acabaram no atoleiro do triângulo de Tumpo, com uma ampla perda e desgaste de meios, sem possibilidades de alcançar os objectivos, as Operações Excite/Hilti e Displace, no Cunene e Namíbia, resultaram numa situação de perda de território e de domínio que culminava com o risco eminente de penetração das FAPLA/FAR/PLAN na Namíbia ocupada, pelo “miolo” geo estratégico do território e tentadoramente até Windoek.

O peso da situação significava logicamente a derrota das SADF/FALA/SWATF em toda a linha Kuito Kuanavale/Calueque, o fim da ocupação do Sudoeste Africano pelo “apartheid” e o colapso desse hediondo regime na África do Sul.

Por isso a diplomacia ocidental e do “apartheid” trataram de, com todo o empenho, evitar o próximo golpe que se adivinhava e de facto já estava preparado: a destruição dos aeródromos das SAAF junto à fronteira sul de Angola (Ruacaná, Oshakati, Ondangwa e Rundu).

Foto: Mapa que espelha uma parte do espectro de acção da UNITA e da SWAPO, na África Austral.

Artigos anteriores (os dois primeiros publicados em janeiro e o terceiro publicado em março de 2008, no Página Um, e retirados da blogosfera):

- Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – I; 
- Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – II;
- Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – III.
  
Sequência de operações das SADF/FALA/SWATF:


1 comentário:

Unknown disse...

Qué sería de la Historia, sobre todo, la que da cuenta de momentos decisivos para el África Austral, sin investigadores como Martinho. Las gracias, también a "paginaglobal" por su objetiva y valiente divulgación.

Mais lidas da semana