I
- Os movimentos de libertação nacional tinham três objectivos principais: a
independência politica, a modernização do Estado e industrialização da
economia. Esta necessitava da construção de um mercado nacional e de
tecnologia, que só poderia ser adquirida pela importação e recorrendo ao aforro
nacional ou ao capital estrangeiro.
A
construção do mercado interno é o eixo de todas as políticas de
desenvolvimento. Na generalidade das políticas governamentais os Estados
africanos confundem este processo com estratégia de industrialização para
reduzir importações (e quem sofre são os consumidores, pois ou os produtos não
chegam á prateleira - por insuficiência da produção nacional - ou chegam mais
caros que os produtos importados, com a agravante de uma qualidade, geralmente,
inferior ao produto importado. O nacional não é - para desencanto dos
"nacionalistas da mercadoria" e para os sempre incompetentes
"empresários patriotas", criados nos gabinetes dos aparelhos
políticos e militares e que passam o tempo de mão estendida, indignados com os
"estrangeiros - obrigatoriamente bom). Construir mercado interno não é
pegar numa estratégia para a exportação e dar-lhe o nome pomposo de "Estratégia
Nacional para o Desenvolvimento" ou outro, tirado dos manuais de alcova do
marketing politico e/ou empresarial. A fórmula "a industrialização abre o
seu próprio mercado, o que permite substituir as importações + a expansão do
consumo final + expansão do consumo de bens intermediários e equipamentos
simples localmente produzidos + a procura gerada pelo gasto público corrente e
trabalhos de infraestrutura" das políticas elaboradas em Bandung atiraram
as economias africanas para os braços peludos do neocolonialismo e da
eternização periférica.
A
modernização, embora alicerçada na industrialização, não é só produção
industrial. Urbanização, educação, formação técnico-profissional, serviços
sociais, redes de saúde pública, comunicações e transportes, trabalhos de
infraestruturas, têm por objectivo parcial servir a industrialização com
mão-de-obra qualificada e competente, sem dúvida, mas são também objectivos que
têm outros fins: o da construção de um Estado nacional e a modernização da
sociedade.
O
fracasso da industrialização (e do processo de modernização do Estado e da
sociedade) apenas pode ser explicado no seu conjunto, o que implica uma teia
complexa de interações entre inúmeros factores inerentes às dinâmicas internas
nacionais, regionais e continentais e às complexas interações das dinâmicas
externas no cruzamento com as dinâmicas internas e dinâmicas da
economia-mundo. Tentemos pois...
II - 1.
Responsabilidades da colonização. A divisão internacional do trabalho que gerou
a desigualdade entre os centros industrializados e as periferias
não-industrializadas remonta ao século XIX, mais especificamente, á revolução
industrial na Europa. África possuía uma vantagem competitiva, os seus recursos
naturais que a Europa estava, agora, em condições de aproveitar, uma vez que
possuía a vantagem da produtividade. Desta forma África é atirada para o
comércio mundial, através da exportação de matérias-primas que abundam no seu
subsolo. A Conferencia de Berlim, em 1885, repartiu o continente saqueado entre
as potências europeias, que desta forma adquiriram um direito preferencial
sobre as riquezas naturais do continente.
Conquistado o continente havia que atribuir-lhe valor. Os recursos das diversas
regiões africanas foram quantificados e iniciaram-se os estudos sobre as
populações africanas, da história pré-colonial e a análise económica das
anteriores fases (pré-industriais, mercantilistas) da colonização. Legitimado e
valorizado o saque, inicia-se a exploração. Convém aqui retermo-nos brevemente
nos três modelos de colonização: economia de trato; economia de reservas;
economia de pilhagem.
A
economia de trato incorporou o camponês africano no mercado mundial de produtos
tropicais. O camponês africano foi submetido aos monopólios que cartelizavam o
mercado e que, com a incorporação do camponês africano na economia-mundo,
puderam esbanjar terras e reduzir custos de produção. A economia de reservas
foi um modelo utilizado, essencialmente, na África meridional e
caracterizava-se pela utilização da migração forçada provinda da agricultura
tradicional. Essa mão-de-obra era aplicada a muito baixo custo na extração
mineira. A economia de pilhagem, praticada pelas empresas concessionadas,
obrigava a que o camponês entregasse um décimo das colheitas á empresa
concessionária. Era praticada em regiões onde a economia de trato não tinha
condições sociais para a sua implementação e onde a ausência ou a fraca
concentração de recursos mineiros não proporcionasse condições para o
desenvolvimento da economia de reserva.
Os
resultados destes modos de inserção nos mercados mundiais revelaram-se
catastróficos. A valorização colonial é a principal responsável pelas
debilidades que fazem-se, hoje, sentir no continente. Atrasou qualquer esboço
de revolução agrícola. As condições naturais do continente permitem que se
possam extrair excedentes do trabalho dos camponeses, sem investimento na
modernização (máquinas e fertilizantes). Por outro lado o trabalho reproduz-se
no quadro da autossuficiência tradicional, pelo que não necessita de ser pago.
A valorização colonial encontrou um autêntico jardim do Éden, que nem
necessitava de custos para a manutenção das condições naturais de reprodução da
riqueza, uma vez que os solos agrários e florestais foram saqueados.
2.
Responsabilidades do neocolonialismo. As debilidades dos movimentos de
libertação nacional e dos Estados africanos independentes remontam à influência
colonial, não sendo um produto exclusivo da Africa pré-colonial. As burguesias
nacionais e as burocracias africanas corruptas, a deriva macroeconómica que
conduz o continente para a subserviência e a persistência das estruturas rurais
comunitárias forjaram-se entre 1880 e 1960.
Não
é de estranhar que o neocolonialismo se tenha perpetuado e estendido nas
dinâmicas políticas africanas. As elites africanas foram geradas no capitalismo
mundial e moldadas nas debilidades do capitalismo periférico. Através delas
África independente foi relegada para fornecedor de matérias-primas e
perpetuada a anterior divisão do trabalho. O conluio entre as elites dirigentes
e o imperialismo, ou a inserção das burguesias nacionais africanas e das elites
oriundas das burocracias continentais (que ainda não ascenderam á condição de
"burguesia", não porque não tenham dinheiro, mas porque ainda não adquiriram
a cultura de classe que caracteriza a burguesia nacional como classe social),
nas estratégias geoeconómicas do capitalismo mundial (a complacência do
capitalismo mundial para com estas elites subservientes contrasta com a
hostilidade que o capitalismo mundial encara as burguesias norte-africanas,
factor que é explicado pelos objectivos estratégicos geoeconómicos do
capitalismo mundial e pelos objectivos geoestratégicos e geopolíticos do
imperialismo, que contrastam com os interesses das estruturadas burguesias norte-africanas
e do Médio-Oriente).
3.
Outros factores. A corrupção da classe politica (factor que está ligado á
penetração neocolonial), a debilidade da base económica (causada pelo
colonialismo), a baixa produtividade agrícola, são resultantes dos dois pontos
anteriores. Isoladamente apresentados estes factores conduzem a uma análise
errónea (e comum) que apresentam como solução uma maior integração no
capitalismo mundial. África necessita de um forte, inovador e criativo nicho
empreendedor, sem dúvida, mas em que contextos sectoriais esse nicho se
desenvolveria? A partir da rotura com o casulo da autossuficiência rural,
através da promoção de uma agricultura comercial e da agroindústria? Este é um
raciocínio de vistas curtas (e - o que é grave - banalizado pelo discurso
oficial) que abstrai-se da economia-mundo, em cujo âmbito este processo iria
operar e ignora dois factores: a) a via capitalista na agricultura produz um
enorme excedente de mão-de-obra sem trabalho e que não poderia transitar para a
indústria, comércio ou serviços (África do século XXI não é a Europa do século
XIX); b) a construção do mercado nacional tem de começar pela realização de um
projecto realista de reforma agrária, que parta das condições existentes e não
de pressupostos ideológicos e demagógicos.
4.
A guerra fria. Foi uma página virada, na década de 80. Acompanhou os movimentos
desde os anos 50 e esteve presente na formação dos Estados africanos. Inseriu o
continente nos mecanismos concorrenciais da economia-mundo e definiu processos
de acumulação de capital, através do alinhamento num dos dois blocos
concorrentes (capitalismo de raiz liberal - mesmo que "social" - e
capitalismo monopolista de Estado), ou no "alinhamento" dos
"não-alinhados", reunidos em torno dos princípios de Bandung. A
solução seria o "desalinhamento" do projecto pan-africano (em
particular o seu desenvolvimento pragmático) mas os contextos em que se
desenvolveram os projectos de libertação nacional impossibilitaram essa leitura
dissidente (a leitura existia e em alguns casos estava subjacente á formação
dos movimentos e ao desencadear de algumas lutas e revindicações, mas estava
impossibilitada de expandir-se no seio dos movimentos e das lutas de
emancipação politica nacional).
5.
O factor guerra e o factor desestabilização politica. Em muitos dos novos
Estados africanos a desestabilização política (causada por processos dinâmicos
internos ou por aproveitamento externo desses processos) debilitou, ainda mais,
a frágil infraestrutura económica. A radicalização de alguns destes processos
(a Nigéria, com a guerra do Biafra, ou os sucessivos golpes de Estado em todo o
continente) conduziu a guerras civis ou a conflitos internos de alta
intensidade (guerra civil latente ou não proclamada). A estes processos não
foram estranhas as dinâmicas externas imperialistas ou as dinâmicas dos
mecanismos concorrenciais (guerra fria), nem as alterações nos processos de
acumulação de capital, registadas na fase final da ordem mundial do período
1945-1990.
III - O conjunto destes factores (sendo o primeiro deles - o colonialismo - o factor central e o segundo - o neocolonialismo - o factor gerador das diferentes amplitudes dos restantes) constitui o impeditivo principal do arranque industrial em África. A sociedade industrial é uma realidade estranha ao continente, curiosamente cantada, no outro lado do Atlântico (no Norte do Novo Mundo) pelos afrodescendentes da escravatura... basta ouvir um blues de B.B.King ou um solo de Charlie Mingus, um lamento de John Lee Hoocker ou um fraseado do Charlie "Bird" Parker, ou uma curta frase melódica, profundamente "industrial" de Miles Davis...
Basta
ouvirmos com os olhos secos, para nos apercebermos dos ecos da sociedade
industrial. Neto sabia-o...e Angola (mesmo durante na luta contra os títeres do
imperialismo e os seus agentes internos) foi um dos países africanos que quase
conseguiu. Faltou-lhe o Pessoano “quase”...talvez por herança colonial. Sozinha
continua a África do Sul…o arco-íris industrial.
Bibliografia
Aron, R. Dezoito lições sobre a Sociedade Industrial Ed. Presença, Lisboa, 1981
Dahrendorf,
R. Las classes sociales y su conflicto en la sociedad industrial Ed. Rialp,
Madrid 1977
Amir,
S. Os desafios da mundialização Ed. Dinossauro, Lisboa,2000
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